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Visite a página das feministas do cariri. O trabalho delas é excepcional. |
Era
uma cidade qualquer no interior de Goiás. Eu resolvera me aventurar e
dar aulas numa faculdade por lá. Seria a minha primeira experiência como
professora universitária e eu me encontrava pra lá de ansiosa.
Se
me perguntarem hoje, eu não saberia responder com exatidão quais foram
as turmas em que eu entrei naquele meu primeiro dia de aula. Mas eu me
lembro como se fosse ontem da minha estréia em uma daquelas turmas.
Cheguei
e antes de iniciar a lição, resolvi fazer a chamada. Nunca fui boa com
nomes, então sempre fiz questão de fazer chamada para ir me
familiarizando com xs alunxs. Obviamente, eu tinha preparado uma longa
dinâmica para conhecê-lxs melhor mas, naquele início, eu achei prudente
fazer uma chamadinha básica.
Chamei
alguns bons nomes até chegar naquela fatídica letra F. Acho que falei
um Fabiane, um Fábio, um Fabíola até chegar em... Fernando. A sala
explodiu em uma uníssona gargalhada. Eu, que já estava bem nervosa
(primeira vez em um curso universitário é de dar nos nervos de qualquer
professorx, presumo), fiquei sem saber direito o que fazer. Não entendi
nada. Não ri. Apenas observei a boa risada que xs alunxs davam e
perguntei qual a piada. Não se preocupe, professora, amanhã você vai
entender a piada. O Fernando deve aparecer por aqui.
Resolvi
não botar pilha. Terminei de chamar os nomes e me levantei. Continuei a
aula e tudo correu dentro dos conformes do meu plano de aula. Uns
ajustes aqui, outros ali e eu consegui dar uma aula razoavelmente dentro
da abordagem comunicativa, à revelia de se tratar de um grupo
visivelmente heterogêneo e numeroso.
Fui
embora e a tal da piada incompreendida não saiu da minha cabeça. Fui
andando para casa atordoada, imaginando quem seria o tal do Fernando. O
pior se abateu sobre mim: deve ser algum aluno muito, muito
indisciplinado. Daqueles capetas que simplesmente não deixam a aula
acontecer. Céus, teria eu que encarar problemas de disciplina até numa
universidade?
O
fato é que o “mistério” fora desvendado no momento em que pisei na sala
de aula, no dia seguinte. Olhei e de imediato identifiquei que a
“piada” era alta, tinha os cabelos longos, lisos e castanhos, olhos
amendoados, um lindo sorriso e roupa/maquiagem impecáveis. Caminhei em
direção a ela e me apresentei. Sou a teacher Flávia, e você é a...? Eu
sou a Fernanda, mas pode me chamar de Nanda.
Eu
sentia o olhar de ironia dxs alunxs ao redor, mas elxs não se atreveram
a gargalhar. Iniciei a chamada e ao chegar no nome dela, falei
simplesmente Fernanda, e dei seguimento com naturalidade. Dei a aula e
já pude identificar, naquele dia, que a Nanda era uma aluna excepcional.
E parece que era justamente o fato de se tratar de uma excelente aluna
que fazia com que xs colegxs se calassem perto dela. Mas, seria esse
silenciamento fruto de um respeito que a Fernanda, enquanto ser-humano,
merecia? Pelo gargalhar do dia anterior, parecia que não.
Enfim.
Não demorou muito e já éramos amigas. Eu nunca suportei a clausura da
sala de professores por lá, então eu ficava era no pátio mesmo. E
passava os intervalos com a Fernanda. Tivemos momentos de muita amizade e
cumplicidade. Ela me contava de seus casos amorosos, alguns bem
tristes, e eu lhe contava dos meus perrengues em relacionamentos
falidos. Falávamos também de música, livros e filmes. Ela despertou em
mim o gosto pela Thalia e sua evidente paixão pelo espanhol me fez ter
interesse pela língua e eu acabei aprendendo um pouco do idioma com ela.
Discutíamos, também, acerca de amenidades diversas, tais como cuidados
com cabelo e unhas.
Era
tudo lindo e eu me encontrava numa bolha cor-de-rosa. Até o dia em que a
bolha fora violentamente rompida por uma colega, professora de
literatura portuguesa naquela instituição. Estávamos organizando uma
Semana de Letras e eu pensei que talvez a Nanda pudesse cantar uma
música em espanhol. Alguma coisa da Celine Dion, pensei. Ia ficar diva
demais. Foi então que eu, alegrinha, propus a idéia pra essa professora,
antes mesmo de falar com a Nanda a respeito (my bad, eu empolgo às
vezes). Para minha surpresa, e horror, a professora começou
praticamente a gritar comigo. Parecia que ela estava botando pra fora
um rancor que já durava uns três meses (o tempo que eu estava por ali,
diga-se de passagem). Ela tinha muita coisa entalada na garganta. Muita
coisa preconceituosa.
De
tudo que ela disse, eu só consigo me lembrar com exatidão do sentido de
uma parte da bronca: “Aquele rapaz se chama Fernando, F-E-R-N-A-N-D-O, e
eu acho um absurdo quem não o chama assim. Na identidade dele tá assim e
eu não vou compactuar com essa pouca vergonha. Eu faço chamada todos os
dias e o chamo pelo nome que ele tem, por aquilo que ele é: um homem.
Sem-vergonha, com problemas mentais, o que seja: aquilo ali NÃO é mulher”.
Eu
sentei no banco (estávamos no pátio porque como eu disse, eu não
frequentava a sala de professores), em choque. Ela, sem ter mais o que
dizer, retirou-se do local pisando alto. Era muito ódio, era muito
preconceito, era muita transfobia. Olhei para os lados e, em meio a
muitos alunos que iam e vinham, eu avistei a Nanda. Ela veio correndo ao
meu encontro. Eu não queria falar exatamente o que ocorrera, então
tentei buscar indiretamente uma resposta. Pelo que a Nanda me disse, eu
era praticamente a única a chamá-la pelo nome devido. Aquilo foi
devastador pra mim. Percebendo o meu estarrecimento, Nanda mudou de
assunto.
Com
o ocorrido na cabeça, eu tentei uma aproximação com xs demais
professores da instituição. Cheguei em alguns e falei que talvez fosse o
caso de termos uma reunião pra explicar que a Nanda precisava ser
chamada pelo nome correto. O que eu ouvi foi desalentador: entendemos o
seu ponto de vista. Porém, se o Fernando realmente estiver preocupado,
ele que tente fazer outra identidade. Aliás, ele nunca reclamou disso.
Seria mais um desconforto seu, não?
Baita
mundo injusto. Será que tais professores não entendiam que, numa
dinâmica de poder e hierarquia tal como é a sala de aula, umx alunx
levantar a voz para reivindicar direitos poderia significar o fim de sua
vida acadêmica? Qual alunx em sã consciência, num lugar tradicional
daquele, poria em risco o seu futuro dessa forma? Qual alunx peitaria
toda uma construção ideológica a fim de ser respeitadx pra, no fim,
acabar perseguidx? Se existem alunxs assim, certamente não era o caso da
Nanda. E eu jamais a culparei por isso.
Porque
acabou também não sendo o meu caso. Eu, que na época não me declarava
feminista e não tinha idéia do que seria o cissexismo , deixei pra lá. Perguntei se aquilo a incomodava, se a atingia e ela me
disse incomoda, né teacher, mas isso não vai tirar de mim a condição de
mulher. Falem o que quiserem, eu vou é começar o meu tratamento hormonal
o mais rápido possível para ter seios lindos. Quem sabe um dia, operar.
A cabeça fechada dessas pessoas não vai me impedir.
O
ano passou, eu acabei indo dar aulas numa outra cidade, perdendo assim o contato que tinha com a Nanda. Ficamos
conversando online por um tempo e realmente o preconceito das pessoas
não a impediu de seguir sendo uma mulher. Entretanto, aquele episódio
nunca me fará esquecer 1. quão ignorante eu era; 2. que eu não devia ter
deixado isso pra lá.
Sabe
quando alguém te fala alguma coisa e você não tem resposta e depois de
um tempo você encontra todas as respostas e se sente um lixo por não ter
rebatido à altura em tempo? É exatamente assim que eu me sinto quando
me lembro de cada episódio machista, sexista, misoginista, cissexista,
elitista, especista e racista que eu já passei em minha vida. Entretanto, assim
como a Nanda, isso tudo não vai me impedir de viver o presente e tentar
fazer alguma coisa para desconstruir os preconceitos que as pessoas
carregam em si. Assim como não vai me impedir de continuar, sempre, a
confrontar meus próprios preconceitos.
Eu
estou contando essa história principalmente por um motivo: tenho visto
feministas às turras com representantes do transfeminismo por conta de
uma suposta confusão que o termo cissexismo geraria nas pessoas. Amgs,
acreditem: quando um grupo oprimido chega a criar um termo para
problematizar o opressor, é porque a coisa chegou a níveis críticos.
Digo crítico tanto com relação a difícil como com respeito à
criticidade, mesmo. Essas pessoas não só têm o direito de questionar as
nossas posturas, como também são as mais indicadas para tal.
Afinal,
quantas Nandas há por aí nesse mundo, sem ter o direito de serem
chamadas pelo nome que melhor se adequa às suas condições? Sem ter o
direito de usar o banheiro público que melhor lhes convém, sem ter
direito a inclusive dividirem celas com pessoas do mesmo gênero que
elxs? O que dizer do caso da Cece Macdonald? Não tá claro que tudo isso é cissexismo? Será difícil entender que
o termo não veio para confundir, e sim agregar? E que, infelizmente,
esse termo não precisaria existir se nós não cruzássemos os braços e
encarássemos as pessoas trans como uma exceção pitoresca a regras
injustas? Até quando vai isso tudo?
E
não, eu não escrevi sobre isso antes porque me dói muito lembrar dessa
história. E o nome Fernanda é, obviamente, uma modificação para
preservar-lhe a identidade.
Leia mais sobre o transfeminismo aqui e sobre a necessidade de um feminismo sem cissexismo aqui.