quarta-feira, 18 de junho de 2014

Guestpost: Blue Ivy e o racismo que vai até o fio de cabelo.


Semana passada surgiu na internet um abaixo-assinado pedindo que a Beyoncé e o Jay-Z penteassem o cabelo da filha Blue Ivy. O abaixo-assinado surgiu após a divulgação de uma foto da menina no colo do pai, ambos com caras de sono. 
Foda-se o seu padrão de beleza eurocêntrico!
A criadora é a estadunidense Jasmine Toliver e na página do abaixo-assinado, ela se diz uma "mulher que entende a importância de cuidados com os cabelos" e afirma ser "perturbador assistir a uma criança que sofre com a falta de cuidados do cabelo". A página afirma que Beyoncé e Jay-Z falharam em várias tentativas de cuidar dos cabelos de Blue Ivy, levando ao "desenvolvimento de dreads emaranhados e bolas de pêlos". E sugere o envio de um bilhetinho, como o pedido: "penteie os cabelos de Blue Ivy". Uma página inteira cheia de comentários racistas de gente que não entende que cabelo black é penteado e é questão de escolha. 

Tenho primas e amigas com lindos cabelos crespos e todas dizem que o processo para pentear os cabelos crespos é doloroso e muitas vezes é penteado a seco causando enorme desconforto. Por que uma criança de 2 anos precisa passar por isso só para deixar o cabelo “arrumado”? Lembrando que o conceito de arrumação é totalmente relativo. Cabelo arrumado é o que, aquele que não tem fios fora do lugar?

Também li comentários dizendo que a Beyoncé deveria logo alisar os cabelos da filha. Submeter uma criança de 2 anos a um procedimento químico no cabelo é algo criminoso, não é? Além de fazer mal para a saúde também prejudica a identidade da criança, que vai crescer achando que alisar o cabelo é um procedimento normal. Tenho uma priminha de 6 anos que já alisa o cabelo há algum tempo e um dia eu perguntei por que ela deixava o cabelo dela livre e ela respondeu “cabelo liso que é bonito, prima”. 

Acho importante falar que quando a Beyoncé resolve deixar de ter os cabelos loiros compridos para ter tranças rastafáris ou black power também chove comentários contra ela. Beyoncé é uma mulher negra que tem muito orgulho da sua identidade e cultura, mas pelo jeito as pessoas esquecem desse fato e só aceitam a beleza dela quando está dentro dos padrões.  

Por que toda essa cobrança em cima de uma menina de 2 anos? Não tem nada errado em deixar o cabelo da Blue Ivy livre. A Beyoncé sabe da sua representatividade e o fato dela deixar o cabelo da filha livre influencia outros pais a fazerem o mesmo. Deixem as crianças serem livres, deixem elas se conhecerem e se amarem do jeito que são. É muito importante para a construção de identidade de uma menina saber que o cabelo dela é lindo, saber que ela é linda e que ela não precisa se submeter aos padrões de beleza. A construção da autoestima é de extrema importância, porque cria estrutura para a mulher poder lidar com as questões da vida. 

Toda mulher sofre com a constante opressão de não estar “boa” e “bonita” o suficiente para todos os estereótipos que são estabelecidos pela sociedade patriarcal e machista, porém a mulher negra sofre duplamente por conta do racismo. E acontecimentos como esse envolvendo a Blue, piadas, papéis em novelas, filmes e séries influenciam diretamente na construção de identidade que a mulher negra cria sobre si mesma, sobre seu papel e lugar na sociedade. As mulheres negras vêem tantas representações negativas que acabam acreditando que é a realidade. 

É importante ressaltar a beleza negra, ressaltar que um black power é poder e não “desleixo”, ressaltar que a mulher negra não precisa se adaptar aos padrões, ressaltar que a mulher negra é linda como ela é. Uma das coisas maravilhosas do feminismo é que ele te ajuda a se libertar dos padrões de beleza. O feminismo dá empoderamento, ajuda a mulher a descobrir o amor por si mesma e mostra que ela não precisa se adequar ao padrão de beleza que as mídias vendem. 
"O cabelo da mulher negra, especialmente, não é somente um símbolo de seu próprio empoderamento e identidade, é também uma fortaleza que outras mulheres negras percebem e adotam como extensão da conscientização política. Isso precisa ser preservado e não pode, sob hipótese alguma, encontrar limites." - Em terra de chapinha, quem tem crespo é rainha? - Jarid Arraes


Cabelo veio da áfrica
Junto com meus santos

Benguelas, zulus, gêges
Rebolos, bundos, bantos
Batuques, toques, mandingas
Danças, tranças, cantos
Respeitem meus cabelos, brancos

Se eu quero pixaim, deixa
Se eu quero enrolar, deixa
Se eu quero colorir, deixa
Se eu quero assanhar, deixa
Deixa, deixa a madeixa balançar"

Chico César

domingo, 15 de junho de 2014

Dos esqueletos que a Irlanda guarda no armário

Então que eu estou vivendo na Irlanda há um ano. Tenho realmente muitas coisas positivas a dizer sobre o país. Além de ser um lugar lindíssimo, eu estou gostando muito de morar em uma cidade pequena (cerca de 75 mil habitantes) em que posso andar pra tudo quanto é lugar, sem precisar dirigir. Aqui em Galway praticamente não tem verão mas, apesar do frio, a cidade é charmosa, artística, vibrante e feliz

Uma coisa, entretanto, me chamou atenção desde o momento em que coloquei meus pés aqui: a luta pelos direitos das mulheres ecoa e muito as pautas brasileiras. Também não era pra menos: tratam-se de dois países profundamente influenciados pela Igreja Católica, que tanto cá quanto aí, manda e desmanda na sociedade em geral, dando as cartas na política e cultura locais. 

A influência da religião na vida da população se reflete no tratamento misógino dado às mulheres: a Irlanda é um dos países com as leis mais rígidas do mundo no tocante ao aborto. Teoricamente, por aqui só se aborta em casos em que há risco de morte para a gestante. Trata-se de uma lei nova que ainda vai levar um tempo para ser absorvida pela sociedade. É parcialmente resultante do caso que narro abaixo.


Em 2012, a morte de Savita Halappanavar causou furor em boa parte da sociedade. Ativistas pró-escolha foram às ruas protestar contra a negligência do Estado para com as mulheres. O que aconteceu com Savita exatamente? Bom, sintam-se livres para googlar o nome dela, porque eu vou fazer um resumão bem resumido aqui: a Savita estava grávida de 17 semanas quando entrou em processo de abortamento natural. Ela procurou o hospital local, aqui em Galway, e os médicos se recusaram a fazer a interrupção da gravidez nela, porque "a Irlanda é um país católico". Sim, foi essa a justificativa. Em pleno 2012. Savita morreu de complicações decorrentes de uma infecção generalizada. 

Espero que tenha ficado claro que o caso acima aconteceu em um país europeu, em uma cidade "moderninha" em que as pessoas são altamente educadas e extremamente descoladas em suas aparências. Acontece que as aparências, amigues, elas enganam. Mas isso é o tipo de nuance que você só vai entender quando passa um bom tempo em determinado lugar. A mente irlandesa ainda é muito conservadora e fechada no tocante à sexualidade. No que diz respeito à sexualidade da mulher, então, a desinformação/preconceito rolam soltos. Eu lembro do meu choque ao ir em uma palestra da fundadora de uma ONG local de saúde reprodutiva. Na década de 90, NOVENTA, ela enfrentou uma forte reação conservadora da sociedade, por ousar distribuir camisinhas e pílulas anticoncepcionais às mulheres. 

Toda a narrativa acima serve de pano de fundo para o que eu quero discutir no texto que vos fala: foram encontrados esqueletos de cerca de 800 bebês e crianças que morreram em um asilo para mães e bebês aqui da Irlanda. Asilo que fazia parte de uma rede imensa que tinha instituições do tipo por toda a Europa. Estima-se que seja a ponta de um imenso iceberg de descarada violação de direitos humanos. Há várias narrativas populares apontando para outros casos de bebês que foram simplesmente jogados em valas comuns, sem identificação, sem velório, sem nada. E a Igreja Católica está envolvida até o pescoço nisso.

O asilo para mães e bebês que funcionava em Tuam, onde as ossadas foram encontradas. 

Mas do que se tratam os tais asilos? Bom, eu vou novamente resumir bastante, mas deixo um link informativo aqui, caso interesse.Tratam-se de instituições de ""reabilitação"" de mulheres consideradas desviantes. Pra ICAR, obviamente, o desvio está em ser humana, em fazer sexo, basicamente. Mulheres pobres, estrangeiras, ciganas também entravam na roda da humilhação. Eu li bastante coisa, mas os relatos que ouço das minhas amigas irlandesas me deixam ainda mais horrorizada: essas mulheres eram forçadas a trabalhar em lavanderias gerenciadas por freiras. Trabalho exaustivo, pouca comida, tratamento médico zero, muitas doenças (parece que as lavanderias que tratavam de roupas de hospitais eram as piores) e um frio de lascar. Era assim que a Igreja imaginava que reabilitaria essas mulheres, cujo grande crime foi ter feito sexo: na maioria dos casos, antes do casamento.


O sadismo era tanto que essas mulheres tinham tratamento médico negado no pós-parto. Muitas morriam de infecção generalizada, pois as freiras se negavam a prover-lhes antibióticos. As crianças eram extremamente mal-cuidadas e mal-tratadas. Acreditava-se por aqui que filho bastardo coisa boa não poderia ser, então a política era deixar morrer. As que tiveram sorte suficiente de sobreviver eram enviadas pelas freiras à escolas católicas, e tinham que se sentar distante das crianças "legítimas". A separação entre "legítimas" e "bastardas" era total, e dizem que as tais legítimas eram ENCORAJADAS a humilhar as bastardas. Li uma história de uma mulher que enrolou uma pedra num papel de bala e deu para uma dessas pobres crianças, só para morrer de rir da carinha triste dela. A mulher se arrependeu amargamente de ter feito isso, e o resultado é que ela é hoje a historiadora que investigou o ocorrido.

Tem um filme rodando por aí, chamado Philomena, que mostra a busca de uma mulher por seu filho, que nasceu em uma dessas lavanderias, que eu ainda não tive a chance de assistir. Mas, eu li uma entrevista que a Philomena deu recentemente, expressando choque e horror com relação ao caso que ficou conhecido como "os bebês de Tuam". Ela disse: "Como pode eles terem feito isso? Como que mulheres que professaram seu amor por Deus, que eram Cristãs, podem ter pensado que agir assim era o certo? (...) É de uma crueldade impensável. Meu coração dói por essas crianças e suas pobres mães. Eu poderia chorar hoje. Elas foram alimentadas com água e açúcar e eu imagino que ficaram tão desnutridas que acabaram morrendo e sendo jogadas fora". A entrevista completa, em inglês, pode ser lida aqui.


Eu traduzi a fala acima para abrir um pequeno parêntese: a comoção em torno do caso acabou colocando as freiras na posição de bode expiatório. O que é até previsível, considerando o grau de misoginia da sociedade. Os líderes da igreja, que são todos homens, estão sendo poupados de críticas e isso é bem sintomático de um sistema que demoniza as mulheres. Como essas lavanderias eram administradas por freiras, o primeiro instinto é justamente pensar como a Philomena pensa, e isso agrava ainda mais a situação de ódio contra as mulheres no país. Estão xingando as freiras enquanto a estrutura patriarcal da igreja continua intacta. 

O assunto mexe muito com os brios dos irlandeses. Praticamente todo mundo que tem a cabeça no lugar se envergonha desse passado não muito distante (as tais lavanderias, olha só, funcionaram até a década de noventa). E a igreja católica, como se posiciona? Tergiversando, óbvio. O bispo local veio com a velha e manjada ladainha que temos que analisar o "passado" com os olhos no "passado". Sabe, aquela historinha do contexto? Um contexto que só serve pra justificar as merdas que a igreja faz, e não necessariamente aquilo que o povo faz? Então. É isso, gente: os padres dizem que temos que analisar as coisas sob uma perspectiva histórica, sendo que os fatos são tão recentes que muitas vítimas ainda estão vivinhas da silva. Sendo humilhadas por um silêncio que já dura décadas.

Daí que pelo tom desse texto já deu pra ver que eu estou emputecida, né? Pois bem. Reuni minhas amigas feministas e resolvemos planejar um protesto. Tive a idéia de cortar 796 bonequinhas de papel e distribuir na praça principal da cidade, que fica em frente de casa. Uma amiga tinha o contato da organização pró-escolha de Galway, e as meninas da organização ficaram felizes em nos encontrar. Nos reunimos para um chá e decidimos como seria o evento. Resolvemos que não seria um protesto propriamente dito, mas uma vigília, uma solenidade para relembrar as vítimas e exigir atenção do Estado ao caso. 

O evento aconteceu na quarta-feira, dia 11 de junho de 2014, e eu posso dizer com certeza que foi um dos momentos mais marcantes da minha vida. Galway é uma cidade pequena, e nós não tivemos tempo e nem muito espaço na mídia para divulgar o evento. Ainda assim, umas 200 pessoas compareceram ao local. A Rachel, ativista pró-escolha e apresentadora do evento, foi muito aplaudida quando pediu pela total separação de Estado e Igreja. As pessoas levaram flores e colocaram próximo às bonecas de papel. 

Euzinha lendo o poema. Maria ao meu lado (de perfil)
Quando eu e Maria estávamos cortando as bonecas, nós tivemos a compreensão da dimensão do horror: era boneca que não acabava mais! As nossas mãos doíam, acabou que nem conseguimos numerar todas em casa, tivemos que abrir as correntes de boneca na praça, e ali mesmo conseguimos mais voluntárias para numerar as bonequinhas. Cada número era uma lembrança da triste realidade de que seres humanos foram tratados daquela forma impessoal - apenas um número, apenas mais um corpo a ser jogado numa fossa. A tristeza foi tanta que eu escrevi um poema, e acabei tendo a chance de ler o mesmo durante o evento, e o pessoal gostou bastante. Deixo o link para o poema, em inglês. 

A descoberta das ossadas revela mais que um capítulo sombrio da história da Irlanda: ela demonstra como a influência da religião pode ser perniciosa para as mulheres. Ela demonstra que a mulher na Irlanda não vale nada. Essas mulheres que foram enviadas às tais instituições tiveram a escolha roubadas de si. Por que será que é tão mais fácil se relacionar com bebês de forma abstrata (afinal, todo o conceito de 'pró-vida' é isso: uma abstração) do que cuidar da materialidade de seres humanos que já existem? Por que será que a igreja achou (e pelo visto, ainda acha) normal considerar o aborto algo errado ao mesmo tempo em que incita tamanha violência contra crianças indefesas que só precisavam de um pouco de amor? Qual o problema desse mundo?

A vigília foi notícia em vários jornais locais, e online eu encontrei essa reportagem e essa aqui

quinta-feira, 12 de junho de 2014

"O valente não é violento": prós e contras da campanha.


A campanha "O Valente não é violento" é uma iniciativa que faz parte da campanha "UNA-SE - Pelo fim da violência contra as mulheres" que é coordenada pela Organização das Nações Unidas (ONU). Uma iniciativa louvável que tem o objetivo de questionar os papéis de gênero e assim estimular uma mudança de atitudes que busca dar fim ao machismo. 

De cara, o uso da palavra "Valente" utilizado em todas as frases da campanha me incomodou. Ser valente é ser audacioso, destemido, um elogio. Por isso, inicialmente entendi que a utilização da palavra na campanha era uma forma de parabenizar o homem que respeita as mulheres e as trata como gente, o que apesar de bem intencionado, me parece bem negativo. Afinal, por que chamar de "valente",  o homem que faz o mínimo, que é tratar mulheres com respeito, sendo que isso deveria ser tratado como uma obrigação? 

Ao assistir um dos vídeos da campanha e ler a mensagem "Um homem que chora é um valente. Um homem que faz uma mulher chorar é um covarde" entendi que a palavra foi utilizada pra fazer um contraste com "Covarde".

A masculinidade é construída de forma que padroniza-se que os homens devem ser corajosos, audazes e ativos. Nessa construção, também enaltece-se a agressividade. Covarde é uma palavra oposta ao papel de gênero masculino e por isso, vista como tão ofensiva. 

A cultura em que estamos inseridos é patriarcal, logo valoriza mais as características colocadas como masculinas na construção dos papéis de gênero. Vincula-se a palavra valente à agressividade cobrada de um herói de guerra. E a palavra covarde, à passividade, ao medo. Vejo que a campanha quer desvincular a agressividade e a violência como algo masculino, ao tentar desvinculá-la de uma palavra que tem tanto clamor para a masculinidade e vinculá-la ao que considera-se ruim, que é a covardia.

Inegável que a campanha é bem intencionada, ela quer desconstruir o vínculo da valentia com a agressividade, afastando assim, a ideia de que homens devem ser grossos, agressivos, insensíveis. Mas me questiono: Como desconstruir os papéis de gêneros e modificar a cultura partindo de uma dualidade que só reforça a masculinidade?

A campanha afirma:
A iniciativa convida as pessoas a repensar e transformar os estereótipos, ou seja, as ideias pré-concebidas dos papéis sociais denominados femininos ou masculinos e das crenças sobre o que as mulheres e os homens devem ser ou fazer. Afinal, essas ideias profundamente arraigadas em nossas culturas são a base da desigualdade de gênero, da discriminação das mulheres e, consequentemente, da violência exercida contra elas. “O Valente não é Violento” quer contribuir para a erradicação das práticas culturais danosas e dos comportamentos prejudiciais às mulheres e meninas gerados por pressões de grupos sociais machistas.
Apesar da campanha ter a finalidade de repensar os estereótipos de gênero, ela parte de um. A campanha sabe o quanto essa padronização de gênero é nociva e origina discriminações e violências contra a mulher, mas ao mesmo tempo utiliza-se dela. 

Numa sociedade onde o homem que não chama mulheres de vadias e vagabundas é visto como "menos homem", em que o cara que acha que assediar mulheres na rua é algo errado é visto como um "maricas" e que para ofender um homem basta questionar sua sexualidade de forma bem homofóbica, essa campanha é um passo para a transformação ao tentar desconstruir uma série de comportamentos vistos como normais e másculos.

Excelente vídeo que chama os homens para questionar a cultura do estupro.

A questão é: continuar reforçando a masculinidade utilizando da dualidade covarde/valente tem poder transformador? Fazer uma campanha que enaltece uma característica considerada masculina não seria uma forma de continuar perpetuando ideias machistas que são tão danosas na busca de uma sociedade igualitária de fato? Sabendo que em nossa cultura valentia é algo visto como masculino e covardia, como feminino, utilizar essa dualidade não seria uma forma de reforçar a ideia de que tudo que se relaciona ao feminino é ofensa para a sociedade?

Apesar da crítica, não tiro o valor da campanha, já que o público-alvo é o típico machão que tem orgulho de ser grosseiro, assediar mulheres, ser machista e que acha que lugar de mulher é na cozinha. As frases principais da campanha são bem pensadas e tentam desconstruir comportamentos considerados normais dentro de relacionamentos, por exemplo, "O Valente não intimida, confia", "O Valente não discute, dialoga" e  "O Valente compartilha as responsabilidades do lar". Só questiono o porquê das campanhas contra a violência contra a mulher insistirem nessa fórmula de enaltecer a masculinidade para desconstruí-la. 

"O valente não é violento" perde pontos na má escolha da palavra, mas é uma campanha bem articulada que propõe que cada um faça sua parte no combate ao machismo cotidiano e que reconhece a importância de transformar a cultura. No site da campanha, é possível encontrar dados da violência contra mulheres e meninas, textos que reconhecem essa luta como uma bandeira dos direitos humanos e imagens da campanha. Um pouco melhor que o velho "homem que é homem não bate e mulher", mas ainda falha.

Questionando a campanha "Homem de verdade não bate em mulher"

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Direitos das mulheres: entenda melhor quais direitos estão sendo ameaçados

Arte de Aline Valek.

No Brasil, o aborto é legalizado para os casos de gravidez decorrente de estupro, risco de vida da mãe e gravidez de feto anencéfalo. Apesar disso, mulheres encontram vários entraves na hora para realizar o procedimento mesmo nesses casos previstos no Direito brasileiro. A matéria "Dor em dobro" expõe a realidade das mulheres brasileiras que buscam o procedimento por terem engravidado de um estupro e mostra como o fundamentalismo religioso é um fator que dificulta o acesso dessas mulheres por seu direito ao aborto legal. A fim de mudar essa realidade, a portaria 415/2014 foi publicada, mas imediatamente revogada por pressão de fundamentalistas religiosos. A Lei 12.845/13, uma conquista recente, também veio para extinguir algumas dessas dificuldades relatadas e tem sofrido ataques no Câmara dos Deputados, através de um Projeto de lei que visa revogá-la. 

O que era a Portaria 415/2014? 

A Portaria 415 retirava um dos obstáculos ao acesso a esse direito, visto que garantia a gratuidade do procedimento, por prever a realização do abortamento legal pela rede pública de saúde. Era um complemento da lei 12.845/13. 

Além disso, a Portaria garantia para a gestante que buscava o procedimento, o direito ao acompanhante e permitia a identificação do procedimento como "Interrupção da gestação prevista em lei" e demais informações, que é um importante instrumento para monitorar políticas públicas de saúde reprodutiva. Saiba mais aqui.

Sem a Portaria 415, qual é a situação? 

A busca pelo procedimento continuará sendo árdua e com a dificuldade de não ter a gratuidade garantida. Além disso, os números referentes ao aborto legal continuarão subnotificados e a humanização do procedimento, através do direito ao acompanhante, dependerá da boa vontade de cada hospital. 

E a lei 12.845/13? Do que se trata?

Essa lei dá a garantia de atendimento obrigatório, integral, multidisciplinar e emergencial às vítimas de violência sexual. Ela prevê uma série de procedimentos que tem como objetivo tratar, tanto fisicamente, quanto psicologicamente, a vítima. Entre eles, a profilaxia da gravidez, que na maioria das vezes é a disponibilização da pílula do dia seguinte, mas se ela não for mais efetiva, é a disponibilização do aborto legal, e também a realização de exames para detectar doenças sexualmente transmissíveis e a disponibilização de medicamentos que visam evitar o desenvolvimento delas. 

A pílula do dia seguinte sequer pode ser considerada abortiva, porque o máximo que ela evita é que ocorra a nidação, que é impedir a fixação do ovócito no endométrio. Um dos objetivos da disponibilização dela no atendimento à vítima de violência sexual é justamente evitar que ela, no futuro, se descubra grávida em decorrência da violência que sofreu. 

Qual é o ataque que a lei 12.845/13 sofreu? 

Ela não foi revogada, mas há um Projeto de Lei tramitando na Câmara Federal que quer revogá-la. O número dele é 6033/2013.

Por que é tão importante impedir essa revogação?

Antes da lei 12.845/13, as mulheres que buscavam atendimento após serem vítimas de violência sexual dependiam de como cada médico interpretava a lei penal sobre abortamento em caso de estupro, deixando a vítima à mercê da subjetividade de cada médico, porque não havia nenhuma padronização obrigatória dos procedimentos a serem feitos nesses casos, apenas diretrizes feitas pelo Ministério de Saúde que não tinham efeito legal. Logo, estados e municípios muitas vezes não implantavam os procedimentos defendidos nas normas técnicas de caráter não obrigatório. Deixando as vítimas de violência sexual a mercê.

Com a lei, a vítima de violência sexual tem a garantia de receber um tratamento que visa a impedir que ela engravide da violência que sofreu, nisso, garante-se também, que ela saiba que tem direito ao abortamento legal, caso mesmo assim venha a engravidar dessa violência. Informação que na maioria das vezes não era dada antes da lei e que agora deve ser dada, para proteger a saúde psicológica da vítima da agressão. Afinal, pode ser um alívio saber que caso você engravide daquele evento traumático, você não é obrigada por lei a seguir com a gestação.

Além disso, a padronização do procedimento de assistência às vítimas de violência sexual acaba por inibir, ao menos um pouco, as culpabilizações que as vítimas muitas vezes ouviam ao buscar atendimento médico, visto que hoje há toda uma série de procedimentos definidos em lei e que devem ser respeitados independente da subjetividade do atendente. 

O que são direitos reprodutivos e direitos sexuais?

São direitos humanos que visam garantir o acesso aos contraceptivos, à privacidade, intimidade, autonomia individual, liberdade sexual, entre outros direitos que se relacionam a isso. Reconhecer tais direitos é dizer que o Estado deve garantir, através de políticas públicas e normas jurídicas, o direito à saúde, incluindo sexual e reprodutiva. A Portaria 415 e a lei 12.845/13 são essenciais, visto que permitem a autonomia individual e protegem a saúde psicológica da pessoa humana. 

Os ataques aos direitos reprodutivos e sexuais não se restringem à revogação das normas protetoras citadas, mas ocorrem também quando o uso de métodos contraceptivos são condenados pela Igreja e quando a educação sexual e o acesso aos contraceptivos encontram óbices fomentados por dogmas. 

"o efetivo exercício dos direitos reprodutivos demanda políticas públicas, que assegurem a saúde sexual e reprodutiva. Nesta ótica, fundamental é o direito ao acesso a informações, meios e recursos seguros, disponíveis e acessíveis. Fundamental também é o direito ao mais elevado padrão de saúde reprodutiva e sexual, tendo em vista a saúde não como mera ausência de enfermidades e doenças, mas como a capacidade de desfrutar de uma vida sexual segura e satisfatória e reproduzir-se com a liberdade de fazê-lo ou não, quando e com que frequência. Inclui-se ainda o direito ao acesso ao progresso científico  e o direito de receber educação sexual. Portanto, aqui é essencial a interferência do Estado, no sentido de que implemente políticas públicas garantidoras do direito à saúde sexual e reprodutiva" - Flávia Piovesan - Direitos reprodutivos como direitos humanos.
Por que é tão importante lutar contra esses retrocessos? 

Lutar para que mulheres tenham acesso aos seus direitos garantidos e que eles não sejam restringidos por violações ao Estado Laico é simplesmente respeitar mulheres como pessoas. Afinal, os direitos humanos também são endereçados às mulheres, porém na prática, a gente percebe que se somos mulheres, nossos direitos serão violados com maior frequência e serão tratados como moeda de troca. 

Os direitos reprodutivos e sexuais são uma extensão do direito à saúde. Lutar contra retrocessos nessa área é lutar pelo direito à saúde das mulheres. Os pequenos avanços na legislação da área são raras vitórias e é inaceitável perder o pouco que foi conquistado. 

No dia 07/06, às 14 hs, na praça da Sé, em São Paulo - SP haverá ato contra a revogação da #Portaria415 e contra a possível revogação da lei 12845/13.

No dia 06/06, a partir das 16 horas, haverá tuitaço para conscientizar a galera sobre o tema e divulgar o ato em São Paulo. A hashtag será #AbortoLegal, mas outras hashtags como #Portaria415 e #Lei12845 também são bem-vindas. 

Saiba mais no tumblr #AbortoLegal. E mande sua foto para nós, ativismodesofa@gmail.com ou para o tumblr "Para não morrer".

*Aborto legal, seguro e gratuito não é apenas direito das mulheres, homens trans e pessoas não binárias com útero também podem engravidar.  A reivindicação é para todas essas pessoas. E nem todas as mulheres podem engravidar e tem útero. 

Vídeo: #Aborto Legal: conheça seus direitos! 

Revogação da Portaria 415: e o aborto permitido por lei, não será seguro e gratuito? 

Nossos direitos reprodutivos, eterna moeda de troca. 

Direitos das mulheres sob ameaça