sexta-feira, 27 de abril de 2012

Guestpost: Minha cor não é insulto, seu racismo sim


Diante da decisão favorável de ontem do STF sobre a constitucionalidade das cotas para negros  que julgou improcedente a ação movida pelo DEM e da proximidade do mês de maio,  em que a abolição da escravatura vergonhosamente completa apenas 124 anos, o Ativismo de Sofá inicia uma série de textos sobre a questão racial. O primeiro post, não poderia deixar de ser um guestpost de uma leitora muito querida, a Laís.

Minha cor não é insulto, seu racismo sim

Durante a minha adolescência, em uma discussão com alguém que eu detestei durante meses à época, vomitei furiosamente todos os motivos que me levavam a não suportar a sua presença na minha vida:

“Você sempre mentiu, foi arrogante e nunca teve escrúpulos e nem o mínimo de competência pra pelo menos passar despercebida quando fazia intriga. Até porque o que te sobra em inveja, falta em cérebro, né?” – concluí, abusando de todos os clichês que fazem uma adolescente desprezar alguém.

Ela corou de raiva. A respiração ficou mais intensa e eu já estava ansiosa para saber quais eram os meus defeitos mortais aos seus olhos. Afinal, meus amigos sempre me mostravam minhas qualidades, mas ninguém melhor que um inimigo pra apontar meus defeitos. A princípio ela gaguejou, ameaçou três ou quatro vezes dizer algo e parou. Até que berrou de vez:

“Sua preta! Você pode falar o que quiser de mim, mas eu sou branca, tenho cabelo liso e não fico com a perna russa quando sento no chão. Nem tenho suvaco preto.”

Eu parei um instante. Era isso mesmo? Ela estava realmente achando que dizer que eu sou negra ia me ofender? Era essa a brilhante resposta e o maior dos meus defeitos? Pois é, era. Obviamente depois de ouvir aquilo eu dei uma das gargalhadas mais gostosas da minha vida. E parei de detestá-la, porque a única coisa que ela merecia era pena, e orientação, é claro.

 Nesse estranho mundo hipócrita em que vivemos, há a certeza de que chamar alguém de preto, crioulo, neguinho, é a maior das ofensas, desqualifica o caráter, reduz o interlocutor à sua posição de “direito”, porque ele DEVE lamentar todos os dias ter nascido negro.

Imagem da exposição "Olhares cruzados"
Bem, deixe-me então esclarecer uma coisa: isso não é ofensa. Sou negra, preta, neguinha, e não tenho o menor problema com isso. Apontar o dedo e informar que essa é a minha cor ofende tanto quanto dizer que eu tenho um nariz, por exemplo. Não há xingamento, não é humilhação. O que incomoda é o racismo, é saber a carga de ódio infundado que há por trás de quem profere essas palavras em tom de insulto. O que ofende é a ignorância de quem sustenta o dedo que aponta.

Mas quem dera que apenas os meus inimigos chegassem à conclusão de que dizer que alguém é negro é ofensivo. Quem dera que esse conceito fosse apenas dos ignorantes e dos assumidamente racistas. Infelizmente, meus amigos mais íntimos e até a minha família – que tem a mesma cor de pele que eu – demonstram constantemente o outro lado da moeda desse tipo de preconceito.

“Ah, mas você não é negra, você é moreninha” – essa é clássica, as pessoas realmente acreditam que negro é uma palavra forte, de carga negativa, e usam esses eufemismos para parecer mais carinhoso com uma pessoa querida. Então... não é.

“Seu cabelo é bom, não é cabelo de preto” – eu sei que meu cabelo é bom, ele nunca maltratou ninguém. Mas por favor, né? Já deu desse papo de chamar cabelo crespo de cabelo ruim. E também de achar que esse tipo de fios não nasce na cabeça gente branca, e que fios menos encaracolados não nascem em gente negra.

“Mas seu bisavô era branco, então você não é negra, é mestiça” – teoricamente quase todos somos mestiços, pelo menos no Brasil. Mas ter um parente distante de outra etnia não muda a forma como eu sou, como a sociedade me vê e, principalmente, como EU me identifico. Minhas vivências e a minha aparência física são de uma mulher negra, então é isso que eu sou.

“Mas a sua gengiva é rosinha, quem é negro tem a gengiva mais puxada pro roxo e pro marrom” – Ok, acho que essa eu nem preciso justificar, né? Mas é só pra compartilhar com vocês o tipo de coisas que somos obrigados a ouvir, e as risadas que algumas delas causam também, é claro. Ah! Essa pérola foi dita em sala de aula por uma professora... negra. De gengiva rosinha também.

Bom, piadas à parte, o assunto é sério. O racismo é rodeado de facetas, de mitos esdrúxulos e de boas intenções. Seja no dedo em riste de quem vocifera “crioulo!” ou no sorriso meigo de quem chama uma negra de “moreninha linda”, ele se manifesta e se propaga no nosso cotidiano, nos nossos adjetivos, no nosso caráter. Negro não é xingamento, negro não é elogio também. É apenas uma característica, e a carga que se dá a ela vem do racismo nosso de cada dia, esse sim deve ser jogado fora JÁ, independentemente da forma como ele se mostra em cada um.

*Sou Laís Rangel, mulher, negra, 22 anos, estudante e estagiária de jornalismo e fã nº 1 do Ativismo de Sofá, é claro.

terça-feira, 24 de abril de 2012

E onde está o meu consentimento?

"Quanto tempo os homens querem que o sexo dure?", "10 coisas que ele nunca quer ouvir você dizer" e outras frases afins. A frase no meio é "Por que uma revista que é feita pra mim fala tudo sobre ele?"
Me preocupa a forma que as revistas destinadas ao público feminino falam sobre sexo. As principais chamadas são “Como agradar o seu parceiro?”, “Descubra o que os homens gostam na hora H” e coisas do tipo.

O prazer feminino é sempre deixado de lado e quando é falado se resume ao orgasmo. E pra ilustrar o quanto a qualidade essas reportagens anda ruim, já vi numa dessas revistas até um manual para mulher aprender a fingir orgasmo. (Afinal, o orgasmo feminino muitas vezes assume o significado de uma prova da virilidade masculina, uma amostra do poder dele. Ou seja, até mesmo o orgasmo feminino é visto como algo pra agradar o homem).
Coerção/coação não é consentimento
Lembro de um episódio de The Big Bang Theory que ilustra bem como o prazer feminino é visto pela sociedade. A cena é a seguinte: Leonard e Penny fizeram sexo. Ao comentar sobre a experiência, Leonard falou que foi “just nice”, que seria algo meio que “foi bonzinho”. E o personagem Howard disse algo como “Foi bonzinho pra você ou só pra ela? Porque se foi só pra ela tá tudo bem”.

 A invisibilidade do desejo sexual feminino e o tratamento dele como algo sem importância é rotineiro e revoltante, mas além dele me preocupa também esse discurso que o sexo é um instrumento para a mulher conseguir o que quer e manter um relacionamento. Parece que nenhuma mulher pode realmente gostar de sexo. Mais uma vez nos deparamos com a questão de “feminilidade” e da “masculinidade”. O sexo para a mulher seria algo íntimo, afetivo, enquanto que para o homem seria uma forma de se provar másculo e viril. As revistas femininas colocam o sexo como uma obrigação numa relação heterossexual, a obrigação parte da ideia de que a mulher precisa daquele relacionamento, precisa do afeto, do carinho, enquanto o homem precisa do sexo em si. E todo o relacionamento heterossexual parte (supostamente) dessas “diferentes necessidades”. A mulher oferece sexo para ter carinho e afeto, enquanto o homem oferece o carinho e o afeto para ter sexo.

O consentimento feminino é tão manipulado que até a hora de dizer sim ou não para o sexo é ditada pelas revistas. Sexo no primeiro encontro é repudiado, muitas vezes a mulher adia o sexo com medo de ser mal vista, conforme as dicas das revistas afirma que vai acontecer. A sociedade diz  "a mulher não deve se entregar aos seus desejos sexuais" porque isso mancharia a reputação dela. E a "hora do sim" que deveria ser quando os dois querem, sentem desejo e tesão é transformado pela sociedade patriarcal em o homem quer e a a sociedade acha que tá tudo bem, ou seja, quando a mulher já tem "o respeito" dele. Por exemplo, dentro de um relacionamento sério considera-se que a mulher deve fazer sexo quando o cara manifestar vontade ou será trocada.

O desejo sexual feminino é considerado como um apêndice do desejo sexual masculino. E toda mídia coloca a boa namorada/boa esposa como uma mulher que não nega fogo, que entende os desejos sexuais do marido e cede. E eu me pergunto onde está o nosso consentimento quando essas revistas tratam o sexo hétero como uma obrigação num relacionamento. Se uma mulher faz sexo com o parceiro porque teme ser largada, trocada, traída, tem algo muito errado ai, se uma mulher se depila de uma forma que ela não gosta porque o parceiro pede, tem algo errado ai. Se a mulher cede e faz posições que não gosta pra agradar o parceiro, tem algo errado ai.
Não é consentimento se você me faz ter medo de dizer não.
Em relação ao próprio prazer, o homem é hipersexualizado, enquanto a mulher é educada pra ser pouco sexualizada e sempre agir de forma passiva a respeito. As revistas exploram esses estereótipos dos papéis de gênero e lotam suas páginas com depoimentos onde homens falam que num relacionamento monogâmico buscam sexo fora do casamento porque a esposa não faz tanto sexo quanto eles querem, colocam o sexo deles como uma necessidade fisiológica. 

Numa sociedade que explora, produz e intensifica as inseguranças femininas, principalmente em torno do corpo e do padrão de beleza e é heteronormativa e monogâmica, esses depoimentos tem um poder de coação enormes. Se nós mulheres sentimos que seremos trocadas ao recusar sexo e fazemos sexo sem vontade, não há consentimento.

sábado, 21 de abril de 2012

Da amizade entre mulheres


Vamos falar sobre a amizade entre mulheres? Parece um assunto banal, mas acreditem, as “banalidades” são cheias de lugares-comum que acabam por reforçar estereótipos. E estereótipos, na massiva maioria das vezes, perpetuam preconceitos.

Quem nunca ouviu a frase: “não dá pra ter amizade com mulher” vinda, muitas vezes, de outra mulher? Pois é. Variações como “mulheres não fazem amizade entre si, é só competição”, ou “a mulher só se veste para outras mulheres”, ou ainda “mulher só se junta para fofocar” também contam.

Você, carx leitxr, não fica também perplex@ diante de tanto clichê que não leva a nada? Eu fico. Principalmente porque, se analisarmos bem, não se trata de um clichê que não leva “a nada”. Manter preconceitos não é, ou pelo menos não deveria ser, sinônimo de “nada”. Inclusive, ao tentar discutir o assunto com as pessoas, muitas vezes o que ouço é: “desencana, isso não é nada, as pessoas falam por falar”.

Eu confesso que a frase acima, terminada com um “as pessoas falam por falar”, dão tilt no meu cérebro. E eu só consigo visualizar a imagem acústica de um QUÊ seguida de um ponto de interrogação bem grande na minha cabeça. Pra quê falar as coisas só por falar? É mais fácil viver assim, no modo automático, sempre? É mais fácil colocar rótulos que geralmente CERCEIAM as liberdades individuais porque “é assim que as coisas são”? Pelo que tenho visto por aí, é isso mesmo, infelizmente.

Daí que, sem ver que estamos apenas seguindo padrões impostos, vamos deixando uma essência boa de nós mesmxs de lado, pelo bem da “adequação”. E tomamos muito cuidado ao fazer novas amizades, porque “mulher é um bicho traiçoeiro”. Lembro do meu choque, anos atrás, ao ouvir de  uma amiga querida a seguinte frase: “não, eu não te considero minha amiga, porque não existe amizade entre mulheres”. E arrematou com um “somos apenas colegas, com interesses comuns”. Não é triste ver que as pessoas pensam assim? Ainda bem que, com o tempo, ela mudou de idéia :)

Eu não sei vocês, mas minhas melhores amizades são com mulheres. Eu nunca entendi quando me diziam que não é possível ter amizade com garotas (se a mina for lésbica então, corra, pois ela vai dar em cima de voczzzZZZZZZZ). Porque pra mim sempre foi muito claro que ok, você vai se decepcionar com alguém. Alguém vai fazer uma trairagem e te deixar na mão um dia. Mas me explica AONDE isso tem relação com o sexo ou gênero da pessoa?

Pra mim, e para as demais autoras deste blog, está mais do que na hora de desconstruirmos essa noção de que mulheres só servem para competir. Vamos parar e pensar nos bons momentos que tivemos na vida. Naqueles episódios agradáveis que passamos ao lado de uma amiga, ainda que a amizade tenha se extinguido ou tomado outros rumos. Será que lembrar desses momentos não conta nada, nadinha?

Porque, pelo que eu tenho visto por aí, parece que as pessoas fazem questão de focalizar em uma frustração, à revelia de tantas amizades boas que lhes ocorreram na vida. Não é raro alguém postar alguma indiretinha no facebook falando da trairagem que sofreu, ou do quanto é alvo de inveja e blábláblá. E isso é triste. Mais triste ainda é ver a insistência em diminuir a outra pessoa atacando a sua sexualidade. É a fulana que foi vítima da pervesidade da ciclana e atacou-a publicamente com um puta, piranha, vagabunda, piriguete ou coisa assim.

Pra finalizar o texto que já se alonga muito, fiquemos com a alegria de saber que, à revelia de tudo que nos passam com relação à “natureza competitiva” das mulheres, nós continuamos vivendo e nutrindo amizades verdadeiras. Amizades que algum dia podem se acabar, pois nada na vida, repito, nada é 100% de certeza. Amizades que contam com empatia, respeito e solidariedade mútua entre mulheres. Este blog, vocês já devem ter percebido, é de um grupo de amigas. Somos gratas umas às outras por termos este grupo. E é por tudo que partilhamos que podemos dizer, hoje, em alto e bom tom: REJEITAMOS a idéia de que mulher só sabe competir.

terça-feira, 17 de abril de 2012

"É só uma piada"

Piadas de estupro não são engraçadas.
Já há algum tempo tem causado polêmica a trupe daqueles que se autointitulam “politicamente incorretos” (nome que ainda busco compreender, já que qual é a novidade em ser politicamente incorreto? Não é assim que grande parte das pessoas sempre foram?) com suas belas piadas destinadas as mais diversas minorias políticas.

Mas não é deles que eu vim falar não. Esse povo que está realmente interessado em fazer piada para desmerecer, ridicularizar, menosprezar as pessoas não me interessa nem um pouco. Sigo achando que o lugar deles é na cadeia e ponto. Vim falar de gente mais perto da gente. De gente como um amigo seu, ou mesmo como você quando compartilha algo, fala algo, ri de algo na vida, nas redes sociais, enfim.

Também não pretendo ficar por muito tempo aqui repetindo sobre o poder do discurso. E, sim, a piada é um discurso. É um discurso com o objetivo de ironizar, brincar, despertar o interesse em rir do outro. Sendo assim, tem suas particularidades, já que o objetivo é diferente de um discurso como esse, deste texto, por exemplo, mas de qualquer forma não deixa de ser produtor ou reprodutor de conteúdo.

Portanto não é “só uma piada”. Não é por algo ter caráter de piada que o discurso utilizado ali não possa ser analisado de forma mais profunda. Não é por algo objetivar ser engraçado que está desprovido de contexto social, muito pelo contrário.

Mas voltando ao foco: E aí quando um grupo de pessoas se sente ofendido com determinada piada dizem apenas que não tem senso de humor, que não sabem aonde foram ofensivos e que “tem até amigos que são” (essa é ótima). O “direito de resposta” costuma demonstrar um lado mais obscuro da pessoa do que a própria piada em si.
Sim, meu querido, porque se todo um grupo de pessoas se sente ofendido com determinada piada feita por você, algo tá errado nisso daí. Uma dica: Se você em algum momento da vida foi chamadx de preconceituosx, provavelmente naquele momento era exatamente isso que você estava sendo.

 Quando existe resistência com relação a uma piada que você fez eu te digo: Em 80% dos casos o que acontece é que para aquela pessoa aquilo não é “só” nada. É real. Não é engraçado quando você é a pessoa que tem medo de andar na rua e ter seu corpo violado, não é engraçado quando você é o gay que já foi expulso de casa, não é engraçado quando você é o negro que já foi humilhantemente não apenas chamado, mas tratado como macaco, não é engraçado quando você é a transsexual que é chamada no masculino todos os dias. Para você pode ser super engraçado, porque não tem nada a ver com a sua realidade. Mas não é nada divertido quando é vivido na pele, dia-a-dia.



Portanto aqui vai um guia básico de etiqueta: Quando uma pessoa, ou um grupo de pessoas reclama por se sentir ofendida com uma piada sua, peça desculpas. É simples assim. Depois pergunte, tente pesquisar, analise porque daquilo. Mas a princípio, apenas desculpe-se. Porque, torno a repetir: Provavelmente você está realmente sendo ofensivo. E, bem, sinto te informar, mas contra-atacar com mais ofensas como “vocês não tem senso de humor”, “para, é só uma piada” não acrescenta nada em sua vida e só realça a ofensa anterior (além de comprovar sua ignorância).

Todos nós temos preconceitos enraizados. Entretanto, vai de cada um saber se quer evoluir ou se prefere continuar estagnado em u ma mentalidade retrógrada. Por vezes o próprio desconhecimento de causa é nosso erro e mudar isso é bem simples, basta se preocupar em ouvir o outro lado.

E para os que dizem que "é impossível fazer humor sem ofender" (what?) aqui, aqui, aqui, aqui e aqui estão cinco exemplos de coisas que me fazem rir muito de forma bem simples, sem precisar ofender nenhum grupo social. E para os ironia lovers recomendo fortemente este e este tumblrs.

sábado, 14 de abril de 2012

Uma vitória de todas as mulheres.



Em 12 de abril de 2012, o STF tomou a decisão histórica de descriminalizar o aborto de fetos anencéfalos (interrupção terapêutica da gravidez). Não entraremos nos pormenores da decisão, já que tais detalhes estão mais do que espalhados pela internet. Deixaremos, ao final deste texto,  alguns links que consideramos de suma importância pelo caráter informativo que encerram.

Não há dúvidas que tal evento representa uma vitória das mulheres. Mesmo daquelas que se posicionam frontalmente contra o aborto. Mesmo daquelas que nunca tiveram ou terão que se preocupar com tal infortúnio em suas vidas. Porque, de agora em diante, todas nós poderemos falar efetivamente em escolha, pelo menos com respeito aos casos de anencefalia.  

Por outro lado, existe sempre o outro “lado”, não é mesmo? Não, não era preciso ter uma bola de cristal para prever que reações negativas à decisão do STF inundariam blogs e redes sociais. A grande maioria oriunda de pessoas ditas religiosas. Repetiu-se ad nauseam aqueles velhos argumentos reacionários de sempre, em cartazes tão agressivos que em algum momento tivemos a impressão de que foi criada uma trincheira. Colocou-se aquele que deveria ser um pilar da cristandade numa berlinda bizarra: o livre-arbítrio.

Liberdade de escolha. Um valor tão caro ao mundo ocidental, e ao mesmo tempo tão mal-interpretado. É muito triste ver que as pessoas não fazem cerimônia ao bradar “argumentos” essencialmente religiosos para embasar o inexplicável. Porque não há explicação plausível para um Estado que se diz laico se basear em questões religiosas para aplicar a lei a suas cidadãs. Nem que tal religião represente a maioria. Porque, sendo laico, o Estado é neutro. E isso significa que o Estado deveria garantir direitos a pessoas oriundas dos mais diversos credos, ou credo nenhum, de forma igualitária. O nome disso, carxs leitorxs, não é capetice, satanismo nem anti-cristianismo. O nome disso é democracia.

Ademais, como foi bem lembrado pelo ministro Celso de Mello, não dá nem pra clamar que a decisão do STF tenha sido anticonstitucional. Sim, porque se aos religiosos não foi dada a oportunidade de argumentar com a bíblia em punho (oh, coitadinhos), caberia a eles argumentar à luz da Constituição brasileira. Como o fez, muito verborragicamente e em um discurso tão floreado quanto vazio, o ministro Ricardo Lewandowski. Porque, voltando a Mello (e Ayres Britto também falou disso), a Constituição não delimita onde se inicia a vida. Mas delineia o que é a morte. E como a morte é ausência de atividade cerebral, o feto anencéfalo seria praticamente um natimorto cerebral, dada a limitação da atividade cerebral apresentada. E, conforme podemos verificar aqui , para o Conselho Federal de Medicina,  os sinais de reatividade infraespinal, ou seja, respiração e batimento cardíaco, não excluem o diagnóstico de morte cerebral.

Nesse debate todo (que deveria ter acontecido no Brasil há no mínimo 30 anos atrás), fica sobressaltada não apenas a questão da intolerância que a maioria religiosa do país tem para com aqueles que divirjam de suas crenças. Porque a questão do anencéfalo é isso: uma questão de crença. Pulularam relatos, dos mais emocionantes, de mães que resolveram levar a gravidez adiante e enterrar suas crias. Relatos belíssimos, cuja validade ninguém está tentando contestar. O que se está em pauta, e o ministro Ayres Britto colocou brilhantemente, é que ninguém é obrigado, por convicção de outrém, a se martirizar.

Pois bem. Além dessa intolerância que salta aos olhos, ficou mais do que clara uma outra triste particularidade de uma sociedade patriarcal como a nossa: a misoginia. Um ódio irracional e injustificado às mulheres. As pessoas reagiram como se, de agora em diante, o aborto de anencéfalos fosse uma obrigação. Oh, essas feministas maldosas. Insultos diversos, que nem tinham relação direta com o caso da anencefalia (na hora de abrir as pernas você quis, né minha filha?) forneceram o esteio necessário a um sistema brutalizante que, por suas raízes culturais, ainda permanecerá por um bom tempo entre nós. E contará com a nossa resistência. Sempre.

Links interessantes:

ADPF-54 O julgamento do STF e a anencefalia

Especialistas comentam julgamento de aborto de fetos anencéfalos 

Médico pode se negar a interromper a gravidez de feto anencéfalo mas deve orientar paciente

Depoimentos sobre anencefalia e bebês malformados 

Pela morte da tristeza clandestina

Lei é eficaz para matar mulheres, diz especialista. 


quarta-feira, 11 de abril de 2012

Relato de uma amiga a respeito de uma violência diária à coletividade

 Relato verídico de uma amiga e de uma cidadã brasileira, um relato que podia ser assinado por várias mulheres.

Escrevo para contar o que aconteceu hoje. Pensei que aconteceu tantas vezes, mas hoje foi mais forte e me indignei mais. Pensei que isso acontece todos os dias e que ao invés de educação, nos dão dois vagões no metrô/trem por cerca de 5 horas por dia. Contra a violação diária do direito aos nossos corpos ganhamos dois vagões nos horários de pico. Não tem educação. Não tem nada. Tem cartaz no metrô falando pr'a gente não colocar o pé na parede, tem cartaz no metrô falando pra não jogar lixo no chão, mas não tem cartaz no metrô falando pra não mexer na genitália das moças.

Hoje peguei o metrô para ir a faculdade. Peguei como pego todo dia. Quem é do Rio sabe o que é pegar a linha 2 (Pavuna) às 19h. Na verdade, quem é do Brasil sabe o que é pegar transporte público àas 19h.

Hoje um cara achou que seria bacana enfiar a mão na minha genitália. Não aquela roçada que vez ou outra a gente leva. Foi a mão. Quase embaixo da minha saia. E eu gritei. E esperneei. E sabe o que aconteceu? Nada. Ele saiu sorrindo numa estação depois da que eu comecei a gritar e eu fiquei lá. Talvez devesse ter descido e chamado a segurança.

Eu segui minha viagem (não sei se deveria ter descido, se deveria ter descido a mão na cara dele...) e ouvi, até descer no Maracanã que "Aposto que é baranga que está reclamando". E ver ou as pessoas rindo do que aconteceu ou completamente indiferentes. Nenhum olhar de indignação, nenhum olhar de compreensão com o que aconteceu.

E é isso aí. Ser mulher é isso aí. A qualquer momento alguém que você não conhece, não deseja, em uma situação que você não conhece e não deseja pode enfiar a mão na sua genitália e é tudo normal. Pq, né, foi só uma mão, não é como se o cara tivesse me violado ou algo assim, né?

Não. Ele me violou. Violou meu direito de dizer "não". Violou meu direito de escolher quem toca a minha genitália. Quem toca EM MIM.

E ele sorriu. Os companheiros homens riram, as outras mulheres, talvez tão acostumadas e preocupadas em não terem tocadas as suas próprias genitálias, sequer fazem coro com o meu grito de indignação.

E é isso.

Ainda hoje a mulher e seu corpo são tratados como propriedade pública. No Rio de Janeiro, neste centro urbano, nesse turbilhão de ideias, eu sou tratada como objeto.

Escrevi essa nota de maneira anônima pq tenho medo da reação das pessoas. Na internet as coisas tomam proporções gigantescas e isso vira faroeste, terra sem lei onde você é conhecido, ameaçado, ridicularizado. Sou feminista, universitária, independente, fui a vítima e ainda assim tenho medo.

Mas denuncio. Denuncio a violência que eu e todas as mulheres sofremos diariamente quando nosso único crime é estar lá, disponível com um corpo feminino.

Shame on us.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Eu não quero uma filha temente a Deus

Eu sou uma pessoa espiritualizada. Por algum tempo tentei fugir desse estigma, já que não me enquadro em religião alguma que conheço. Sei que acredito em espiritualidades em seres bons que ficam aqui ao nosso redor e com quem a gente pode conversar voltemeia. Não me agrada a ideia desse Deus único monarquista. Sempre me identifiquei um pouco com a Umbanda e o Candomblé pela pluralidade e ao mesmo tempo me encanta a possibilidade de uma Deusa-Mãe-Mulher-Terra. Em resumo, um pouco aqui um pouco ali ainda não encontrei entre as religiões algo que realmente me represente.


De qualquer forma, essa espiritualidade me faz bem. E é para isso que eu acho que qualquer crença deve servir: Para nos deixar bem. Pode ser porque gostamos de nos sentir seguros, de confiar, de falar sozinhos, ou mesmo de crer apenas por crer. Mas tem que ser algo prazeroso, positivo, que nos anime e nos inspire. E para isso, é claro, é necessário que seja arbitrário.

Entretanto quem cresceu em família religiosa deve se lembrar muito bem que: Não é. A doutrinação infantil acontece desde muito cedo. Somos obrigadxs a ir na igreja e assombrados o tempo todo com a ideia de um Deus e um Diabo que regem o universo. Um deles é bom o outro é mal e nós temos que decidir de que lado estamos e é melhor que seja o dos que obedecem a Deus, antes que seja tarde demais e tenhamos que passar a eternidade queimando no fogo do inferno.

Falando assim parece assustador, né? E é. Dentre outras, as frases “Deus tá vendo” e “Papai do Céu não gosta” são utilizadas para controlar o comportamento das crianças. Doutrinar desde cedo é uma forma de criar seres humanos obedientes e tementes a Deus. O que, teoricamente, serviria para que fossem pessoas melhores. Como se as milhares de guerras e segregações que já aconteceram em nome da religião não fossem o bastante para desmistificar a relação entre religião e caráter.

Acontece que é fácil criar pessoas obedientes. Em compensação é muito, muito difícil conscientizar. Demanda tempo, energia e paciência explicar para uma criança que fazer o bem é bom simplesmente porque o é. Que é gostoso viver de maneira honesta, cuidando bem de nós mesmos, das pessoas e do ambiente ao nosso redor. Crianças precisam aprender a conviver em sociedade de forma alegre, produtiva e compreensiva, não agirem de forma “correta” por conta do medo. O contrário disso não é educar, é meramente controlar e cercear a verdade, algo como "tapar o sol com a peneira".

É simplismo demais perpetuar determinado comportamento simplesmente porque "funciona". O que fazemos é tão importante quanto o porque fazemos. Mesmo as atidudes mais positivas, se partem de fundamentos como a repressão e o medo não são tão positivas assim.


Toda pessoa precisa se sentir livre para se espiritualizar ou não de acordo com aquilo que deseja e de forma que se sinta bem. Crença é algo pessoal e por isso essa escolha deve ser a mais arbitrária possível, podendo assim influir na consciência e na vida de forma construtiva.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Fratura exposta, sentimento oculto.

Quando minha filha chora muito em outro colo e se acalma no momento em que eu a pego, dizem que está de “manha”. “Isso não é choro, isso é manha”. Para essas pessoas só devem ser atendidas as necessidades básicas: Fome, frio e dores físicas. As dores emocionais, como a saudade da mãe, a necessidade do colo são tidas como desimportantes e devem ser ignoradas gradualmente de forma que a criança se acostume com elas.


Esse desprezo pelo lado sentimental humano se inicia na infância e perdura por toda a vida. O nome “manha” passa a ser “drama” e continua não devendo ser atendido. Muito disso se dá pelo fato de que por muito tempo relacionamos os sentimentos a um conceito abstrato. As dores emocionais foram sempre vistas como “dores da alma”, quando na verdade, o responsável por estas é exatamente o mesmo que causa as dores físicas: o cérebro. São muito recentes os estudos que se dedicam a compreender a área do cérebro associada ao nosso lado emocional.

É uma forma, também, de desde o começo nos fazer engolir a “civilização” e sair de nosso estado primitivo. A emoção é inerte e quase que animalesca, dar vazão ao que se sente significa admitir nosso lado primário e por isso é algo tão desestimulado. Os sentimentos são sempre vistos de forma vergonhosa, demonstrar tristeza, angústia, frustração ou mesmo amor é sinal de fraqueza.

Além disso, é improdutivo que tenhamos emoções. Em um sistema de produção que compreende que tempo é dinheiro, é muito mais funcional que nos mostremos maquinários. Dessa forma robotizada não temos falha alguma aceitável que não nossas “peças”.

É um absurdo, por exemplo, que tenhamos direito a quantos dias de atestado a medicina julgar necessários, porém legalmente só nos dão direito a dois dias (!) de luto diante da morte de parentes em primeiro grau. Como estipular um prazo – e tão pequeno – para a superação de uma perda? Por que não podemos trabalhar com uma perna machucada, mas está ok ignorar a dor causada por algo como a morte de uma pessoa próxima e querida?

Ignorar esse tipo de dor é prejudicial a saúde. A depressão já é hoje considerada a doença do século e continuará a aumentar quanto mais considerarmos vergonhosa a expressão do que sentimos e, por consequência, quem verdadeiramente somos.

Não se trata de estimular a vivencia empírica e irracional de nossas experiências. Pelo contrário, os recentes estudos na área da inteligência emocional demonstram que a valorização dos sentimentos humanos desde a primeira infância estimula o aprendizado e permite que as outras partes do nosso cérebro se desenvolvam melhor. Trabalhando o ser humano por completo conseguimos um crescimento pessoal plural nos mais diversos campos do nosso ser.

A criança que tem suas necessidades emocionais atendidas e supridas cresce um adulto com autoestima, mais independente, feliz e capaz de lidar com o que sente. Tanto os sentimentos positivos quanto negativos devem ser escutados, jamais ignorados e abafados. Dando a devida atenção às emoções conseguimos canalizá-las de maneira benéfica e produtiva para nós mesmxs e para o mundo ao nosso redor.


segunda-feira, 2 de abril de 2012

O novo cálice - Negar a memória é negar os Direitos Humanos

Latuff - 2008

Esse texto faz parte da 5ª Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR convocada com a finalidade de refletir a necessidade da abertura dos arquivos secretos do período da Ditadura Militar. E com isso proporcionar uma oportunidade de localizar os restos mortais de muitos desaparecidos, a investigação de violações de direitos humanos e dos crimes cometidos no período, além de uma revisão da Lei de Anistia para que haja a responsabilização dos  torturadores.

            E ainda hoje a gente ouve e lê depoimentos de diversas pessoas que tiveram um contato com a Ditadura, pessoas que fizeram parte da Resistência, pessoas que perderam amigos e parentes. Nomes foram esquecidos, rostos nunca mais vistos e corpos nunca encontrados. Muitas pessoas ainda hoje não sabem do paradeiro de alguns amigos, professores, conhecidos, filhos, pais, familiares. Para essas pessoas a memória deles sobrevive, mas junto dela existe a dor de não saber o que aconteceu e de não poder se despedir. A voz da resistência foi silenciada pela tortura, violência, estupro, assassinato, e a voz que clama pela proteção ao ser humano e sua dignidade se cala ainda hoje no Brasil.

            O direito à memória se trata de todas as pessoas terem acesso ao seu passado, e esse direito tem um viés tanto individual, quanto coletivo, é até considerado um direito transindividual, visto que é um direito que ultrapassa a política representada pelos partidos e sindicatos, pois também atinge a própria sociedade civil. Ao se tratar do caso dos desaparecimentos ocorridos no período ditatorial, a memória histórica e política deve ser acessível para todos os brasileiros, visto que manter os arquivos secretos inacessíveis para a população, é ignorar as violações dos direitos humanos ocorridas na nossa história e violar os diversos tratados e convenções que o Brasil é signatário. O direito à memória é o resgate da verdade sobre as pessoas que foram torturadas e mortas em uma sociedade que passou por reiteradas violações dos direitos humanos.

           
Angeli
Ao se falar do direito à memória e a verdade é necessário falar sobre o conceito de “Justiça de Transição”. Essa expressão significa a busca pela efetivação da justiça. Ou seja, seria a responsabilização dos agentes estatais responsáveis pelas torturas, estupros e abusos de poder de seus crimes e também o resgate da memória de suas vítimas, o reconhecimento e o resgate da história de cada uma dessas pessoas. Essa busca pela justiça acontece no processo de redemocratização de um Estado que passou por violações dos direitos de seus cidadãos.                

         

           A importância do direito à verdade política se baseia também no fato de que a nossa visão da história é uma visão dos vencedores, os fatos destacados são os que correspondem à ótica e ao interesse dos grupos dominantes. O desarquivamento dos documentos secretos da Ditadura seria uma forma dar importância à luta das minorias e assim ressignificar o passado, porque trazer para o presente fatos que foram esquecidos ou mesmo ignorados são uma forma da própria população refletir a sua emancipação social/política e conhecer quem fez parte dessa transformação.

          O processo da democratização depende do povo conhecer sua história para não repeti-la, reconhecer que houve assassinatos e torturas cometidos por agentes do Estado, reconhecer a dor e o medo que existia na época e aprender que a força do Estado não está acima dos direitos humanos de seus cidadãos. Punir os responsáveis é mostrar que as muitas mortes cometidas pelo Estado não passaram batido, é dar valor à vida humana, a resistência e a luta pela Democracia. A impunidade corroba com a exclusão histórica dessa parte da história do Brasil que muitos querem esquecer, mas que não deve ser esquecida, deve ser relembrada para que o mesmo erro não volte a ser cometido.
Augusto Frank Bier - 2004

          O direito à memória e a verdade fazem parte da Democracia, porque desarquivar os documentos secretos da Ditadura Militar, rever a Lei da Anistia e punir e responsabilizar os torturadores é ver cada membro do Estado como parte importante e de mesmo valor na coletividade, é celebrar a Democracia e proporcionar os direitos humanos à todos, incluindo os mortos. Se você é a favor do desarquivamento dos documentos e da revisão da Lei da Anistia, não se cale, os direitos humanos e a Democracia ainda precisam da sua voz.

Leia os demais textos da 5ª blogagem coletiva #DesarquivandoBR aqui.