quarta-feira, 24 de julho de 2013

Beijaço lésbico: a resistência choca o conservadorismo


Texto de Thaís Campolina com colaboração de Kelly Campos.

No dia que o Papa chegou, em meio aos cristãos em êxtase, houve também um beijaço lésbico motivado pelos discursos de ódio proferidos contra não héteros, transgêneros e aos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres com a desculpa da religião.

Duas fotos desse protesto chocaram a sociedade brasileira, afinal, duas mulheres se beijando semi nuas despertam a lesbofobia e a misoginia infelizmente tão comuns e ainda vistas como aceitáveis em nossa sociedade. O teor dos comentários das fotos nos chocaram, pelo moralismo e preconceito e a gente resolveu rebater os mais repetidos.

Fotografia de Ide Gomes

"Querem respeito, mas não se respeitam e nem respeitam os outros" 

Respeito não tem que "ser ganho", ele é inerente da pessoa humana. Então falar em "se quer respeito, tem que se respeitar", "vocês jamais conseguirão conquistar respeito dessa forma" e afins não é válido porque coloca como se alguns grupos de pessoas não merecessem respeito, a não ser que se comportem de acordo com o que alguns dizem que é certo. Me lembra aquele famoso discurso "tudo bem ser gay, mas precisa mostrar pra todo mundo?" que é bastante problemático porque deixa claro o que a sociedade só "aceita" o diferente se ele estiver não visível. Coloca como regra que a pessoa deve esconder quem ela é e suas preferências para que ela mereça respeito, que para alguns é inerente. Enquanto o "merecer respeito" for seletivo e pautado em preconceitos e moralismo, haverá protestos e eles serão legítimos.

Sua variação "se você não respeita, não pode exigir respeito" é cruel porque compara a agressão de uma sociedade homofóbica, moralista, transfóbica e misógina com a reação de quem luta para sobreviver. Ignora que o beijaço e que a semi nudez são atos políticos, formas de contestar esse senso comum preconceituoso. E pra mim o pior é: ignora que quem não respeita primeiramente são as pessoas que proferem esses discursos de ódio e que o combate a essas ideias que eles proferem é uma tentativa de fazer valer a máxima de que todos devem ser respeitados.
Gabriella Mendes em seu perfil - clicar na imagem facilita a leitura.

"mas a Igreja não vai na Parada LGBT interferir"

Essa frase não faz sentido porque diariamente os dogmas da Igreja que são contra mulheres cis, os não héteros e as pessoas trans interferem bastante na vida dessas pessoas. Interferem colocando-os como aberrações e lutando para que eles não tenham os mesmos direitos e qualidade de vida que todos. Muito do preconceito sofrido diariamente por essas pessoas tem como base discursos de ódio que são proferidos com a desculpa da religião.

"Desnecessário"

Não há nada de desnecessário num beijaço lésbico, com ou sem semi nudez, porque todos os dias muita gente usa a desculpa da religião cristã para pregar ódio contra homossexuais, transgêneros, bissexuais e mulheres. Não há nada de desnecessário nisso, porque a Igreja insiste em colocar obstáculos para que essas pessoas tenham acesso aos seus direitos. Não há nada de desnecessário porque muitas pessoas religiosas são eleitas com a influência de sua religião e tentam impor a todos o que acreditam, impedindo muitas pessoas terem acesso a seus direitos humanos. Como tudo isso acontece, é legítimo que os oprimidos se manifestem contra isso.

Lembrando aqui da famosa frase do Malcom X: "Não confunda a violência do opressor com a resistência do oprimido". Com tanta opressão baseada num fanatismo religioso que cria tabus como o da nudez, do sexo, da homossexualidade e do aborto. É inacreditável que as pessoas insistam em colocar um beijaço lésbico com semi nudez, que tem finalidade de protestar contra esses preconceitos, como algo tão agressivo quanto a busca incessante para marginalizar certas pessoas.

Imagem de Indiretas Feministas
O que é desnecessário e agressivo é o discurso de ódio de vários comentaristas dessas imagens que deixaram claro seus preconceitos ao dizerem coisas como "que nojo" e também as diversas declarações do Pastor Feliciano e não só dele, mas de vários padres e pastores que pregam contra a homossexuais, contra a liberdade para a mulher, etc. Ataque não é quando pessoas protestam para que sejam vistas como pessoas normais, é quando tentam impedir que algumas pessoas tenham direitos, quando se incentiva preconceito e até mesmo violência física contra casais homoafetivos, pessoas trans* e contra as "vadias". E tudo isso ainda acontece e é fomentado por discursos de ódio que são proferidos por várias pessoas, e algumas dessas usam a religião pra justificar seus preconceitos.

"Mas precisava ficar sem roupa?"

As imagens mostram que a nudez das manifestantes não era completa, era uma semi nudez. Apenas os seios estavam a mostra. Homens podem ficar sem camisa à vontade, não é? Não são chamados de "vadias" quando fazem isso e se participam de um protesto sem camisa não são vistos como "eles só querem chamar atenção". A nudez dos seios é uma forma de contestar a construção social de que os seios ditos femininos são sexuais e devem ser escondidos, enquanto o peito masculino pode ser mostrado sem problemas. Inclusive, essa sexualização do seio atinge várias mulheres que se sentem inibidas de amamentarem seus filhos em público, porque a sociedade vê a mama como algo imoral.

O nu é visto como atitude rebelde, subversiva, um rompante de liberdade que afronta o moralismo. E de fato o é, numa sociedade que mistifica e endeusa o nu. Mas o nu é natural. A polêmica do nu não só atingiu essa manifestação, como também a foto da ocupação da Câmara de Porto Alegre.

Além disso, o beijaço entre mulheres é considerado algo político e ameaçador para os fanáticos, mas não traz a mesma visibilidade midiática do corpo despido. Fazer uso do corpo feminino para algo que não seja acalantar os desejos masculinos sempre soará subversivo. O corpo, como instrumento de prazer para as mulheres se torna uma importante arma de protesto ativista. É a afirmação de que o corpo é da mulher e não de quem o quer.

Foto de Pedro Teixeira - O Globo.
A pergunta que não quer calar é "por que nos cobram tanto de respeitar os tabus de quem nos desrespeita e buscam incessantemente nos manter marginalizados?", enquanto querem que a gente proteste de uma forma que não incomode, quietos e invisibilizados, cartilhas como o Manual da Bioética para Jovens que está sendo distribuída na Jornada Mundial da Juventude deixam claro que a Igreja Católica se mantem firme em seu posicionamento conservador e em seus discursos preconceituosos. E sim, isso justifica os protestos barulhentos, com beijos e nudez, porque isso é ato político de resistência. É estar na luta para ser livre até que todos sejam respeitados, independente de agirem de acordo com a moral cristã.

JMJ: manual de bioética e os catolicismos possíveis - Blogueiras Feministas 
"Para a Católicas pelo Direito de Decidir, vinda do papa pode significar um momento preocupante para o debate em torno de políticas públicas sobre aborto e direitos de homossexuais"  - Revista Fórum

terça-feira, 16 de julho de 2013

Isso não é "dote", "isso" sou eu.


Anita Sarkeesian é uma feminista famosa na internet por causa de seus vídeos que apontam a misoginia dos games. E nessa imagem, que inspirou esse texto, ela é resumida a um troféu e seu interesse por games deixou de ser algo dela e se tornou algo para os homens. E mais uma vez a gente se depara com mulheres que gostam de futebol, de games, de filmes, de rock ou qualquer coisa que é definido como um "gosto masculino" sendo vistas como prêmios, como raras e seus gostos se tornando um "dote".

A mulher que demonstra gostar de determinados assuntos considerados masculinos vive sendo acusada de "attention whore" e outros termos babacas, afinal, numa sociedade tão presa aos padrões de gênero e tão misógina, se você é mulher e gosta de algo fora do que é dito como feminino, você só pode estar fingindo, querendo atrair atenção masculina.

É tão problemático que a personalidade da mulher, seu comportamento e suas preferências sejam sempre vistas como parte de uma tentativa desesperada de impressionar homens. Isso é só mais um exemplo de como as mulheres são resumidas a um mero acessório masculino; um objeto. Afinal, se você é humano, você tem sua individualidade, sua personalidade, seus gostos e sentimentos, e quando uma pessoa é considerada um troféu e seus gostos um dote, claramente há uma desumanização. 

A valorização da mulher é claramente ligada a função que ela cumpre na vida do homem, a existência dela só é válida se estiver vinculada a vida dele, de forma que fora de um relacionamento, a mulher que gosta do mesmo do que ele sequer existe. Ela só pode ser um mito, uma poser.

Ser mulher e ter um hobbie, mesmo que dentro dos padrões de gênero, choca simplesmente porque demonstra que não somos incompletas. Se somos resumidas a acessórios e tudo que fazemos é visto como uma forma de despertar desejo masculino, quando a gente mostra ao mundo que somos indivíduos e temos personalidade própria, a primeira reação é a de choque e num sistema que quer manter as mulheres e sua individualidade invisibilizados, a melhor forma de responder a isso, é pegar aquele hobbie e colocá-lo como uma forma de chamar a atenção.

E mais uma vez as lésbicas e também as mulheres bissexuais são invisibilizadas, uma mulher que gosta de mulher nega toda essa teoria de mulheres são acessórios, mostra que somos donas de nossa sexualidade e não só dela, mostra que somos indivíduos, completos e que não precisam de homens para existir. E aqui, a heteronorma chega e diz que essas mulheres são anormais, diz que elas não existem e assim continua o apagamento feminino. 

A busca pela mulher "diferente" e "sem frescuras" é motivada principalmente pela misoginia da sociedade, afinal, o desvio ao padrão de gênero feminino é o que torna aquela mulher objeto de desejo de muitos homens. É perceptível o quanto tudo que é considerado feminino é desvalorizado, mas essa misoginia é mais ampla do que aparenta ser: porque ao mesmo tempo que a mulher diferente é desejada, ela também é punida, porque ela vira um troféu, um mito, um dote, ela é resumida a um acessório masculino e caso ela não tenha interesse no cara que a deseja, ela se torna a "attention whore" citada acima. E não é todo "desvio" ao papel de gênero feminino que é aceito, por exemplo, ser "atraente" e ser submissa continuam fazendo parte da "mulher diferente" tão desejada. 

Nós somos humanas e essa busca pela "mulher diferente" se pauta também na ideia de que a mulher é apenas o esteriótipo não humano, não indivíduo, e isso não é um exemplo de misoginia? Enquanto a busca pela uma mulher diferente acontece, fica claro que eles estão cegos pra ver que toda mulher é diferente, tem personalidade, gostos, individualidade.


Textos relacionados:
Guestpost: Feminismo e cultura pop: Parte 1 – As Representações Femininas - Taís Fantoni
Guestpost: Feminismo e cultura pop: Parte 2 – Mulheres como jogadoras - Taís Fantoni
e o excelente blog da autora dos guestposts "Colchões do pântano

terça-feira, 2 de julho de 2013

Aborto: Por que tanto silêncio?

"Eu aborto, tu abortas, todas em silêncio"

Aborto é um assunto assustadoramente tabu. É bem comum que pessoas que são a favor da descriminalização, muitas vezes não falem sobre seu posicionamento em público, por causa das caras feias, dos xingamentos, do receio de que as suas opiniões as prejudiquem. 

O assunto muitas vezes é evitado mesmo dentro do meio feminista e frases como "eu jamais faria um aborto, mas sou a favor da descriminalização" muitas vezes norteiam várias das discussões a respeito, de forma que as pessoas continuam achando que quem aborta é a outra, que está longe de nós, sendo que não é bem assim.  A frase em si não é problemática, pelo contrário, demonstra muita empatia e respeito pela decisão da outra, mas o que é preocupante é que ela se tornou quase um discurso único o que contribui para que, muitas vezes, mesmo dentro de ambientes pró legalização, se você falar "eu não sei se eu faria, acho que se eu me descobrisse grávida hoje, eu faria sim", você ser vista como insana.

Falar sobre aborto como se nós jamais pudéssemos acabar optando por isso, desumaniza quem fala que faria um aborto e quem já passou por essa experiência. O discurso do "quem aborta é a outra" contribui para a invisibilidade do tema, restringe a voz das mulheres que abortaram e assim impede que as pessoas que nunca passaram por isso saibam que não há uma reação única a gravidez indesejada e as condições precárias em que são feitos muitos abortos. 

Quebrar o silêncio que ronda o assunto é necessário para que o nosso ativismo surta efeitos, para que aumente seu poder de alcance e para mostrar para quem não quer ver que métodos contraceptivos falham, que a lei que criminaliza o aborto não impede que eles aconteçam, mas colabora para as mortes maternas decorrentes da clandestinidade. 

O blog "Somos todas clandestinas" é composto por relatos de mulheres muito diferentes entre si que optaram por abortar e pelos relatos percebemos que vivemos em uma sociedade que acha que uma mulher que aborta merece morrer e que médicos fazendo discursos pró vida de feto não é algo reservado apenas a ficção.

O Estatuto do Nascituro continua em trâmite e nós precisamos deixar claro para o Estado, para a Igreja e para a sociedade que somos donas dos nossos corpos, que colocar um estuprador como pai numa certidão de nascimento é violar a dignidade da mulher e dizermos basta para as diversas mortes decorrentes desse Estado negligente com a saúde e direitos reprodutivos das mulheres. Precisamos falar, gritar, balançar nossa bandeira pela vida das mulheres antes que mais uma lei que nos coloca ainda mais longe do direito ao nosso corpo e a dignidade seja aprovada.

Obs: Não só mulheres podem engravidar, homens trans e pessoas não binárias que tem útero também podem. Logo, todos os direitos defendidos pelo texto, como o aborto seguro e educação sexual, se estendem a essas pessoas. 

Obs: A criminalização é um fator essencial para que o tabu continue existindo, visto que várias mulheres sentem medo de expor suas opiniões e experiências a respeito e acabar sendo indiciadas.

Lei é eficaz para matar mulheres, diz especialista. 

Porque filmei meu aborto