quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Nota de repúdio à decisão judicial de negar o aborto à mulher com gravidez de risco


Aí você acorda como todos os dias, acessa a internet no seu computador e se depara com uma notícia que atenta contra os direitos reprodutivos da mulher. Acho que isso está virando rotina, sabe? Quando se trata de aborto, o punitivismo é centralizado na mulher. A mulher, essa irresponsável que não se preveniu, que sabia dos riscos, é ela afinal, que deve ser punida. Se preciso for, e muitas vezes é, será punida com a morte. E talvez até com o aval da justiça.

Imagem da página "Nós denunciamos"
O caso mais recente aconteceu em Belo Horizonte. Você pode ler nesse link. Resumindo a situação: Uma mulher portadora de doença cardíaca entrou na justiça para obter o direito ao segundo aborto, devido à gravidez de alto risco. O juiz, alegando ser esse um direito já auferido pela requerente em outra ocasião, passou por cima da determinação legal de que o aborto no país é permitido em caso de risco para a saúde da gestante. Tomou como partido suas próprias convicções. Acusou-a de não se prevenir, acusou-a de ser negligente. E assim, sei lá com que propósito que não seja punir a mulher e torná-la um daqueles exemplos tenebrosos em que a justiça foi algoz de um inocente, um juiz sentenciou uma mulher à morte. Ou melhor, ele aumentou severamente a possibilidade dessa mulher perder a vida, seja por levar até o fim uma gravidez de risco, seja por tentar um aborto ilegal.

Ainda que ela realmente não tenha usado algum método contraceptivo (o que parece ser apenas uma suposição), é preciso notar como é recorrente nesses casos em que se alega "negligência" da mulher (nunca do homem, a contracepção é sempre responsabilidade dela) que ninguém tente entender os processos que levam uma mulher a não se proteger. Não analisam a vergonha que é, por exemplo, para uma mulher comprar camisinha em uma farmácia. É um constrangimento causado pelo julgamento da sociedade e dela mesma sobre si. Sabe por quê? Usar um método contraceptivo, exceto nos casos em que é receitado por médicos por questões de saúde, significa que a mulher faz sexo. E ter uma sexualidade livre, desprendida, bem resolvida, é algo que nossa sociedade reprime fortemente nas mulheres. 

Imagina só que ainda temos o costume medieval de chamar de "puta", a mulher que usa roupa curta, que vai curtir a noite, que é baladeira e principalmente a mulher que gosta de sexo. Ainda chamam de "rodada" aquela mulher que escolheu ter vários parceiros. As escolhas pessoais de uma mulher sobre o assunto "sexo" são cercadas de julgamentos. Se existe a tal negligência com a contracepção ela decorre de um processo de opressão em que mulheres internalizam esses julgamentos e aplicam sobre si mesmas. 2013 bate na porta, mas o Medievo não quer sair, sabe? Tenho ouvido um tanto de gente dizer que "tem mulher que não se dá ao respeito", um pessoal separando mulheres em "para pegar" e para "casar", uma galera falando em "mulher de verdade" (Sério, gente, chega de chorar de saudade da Amélia) e até mesmo em "mulher virtuosa" e tudo isso baseando-se nas condutas sexuais das mulheres. Condutas que dizem respeito apenas a elas. 

Por outro lado, homens não se sentem na obrigação da contracepção. E por favor, entendam que falo do panorama geral e sei que existem exceções. Sabe aquela expressão "golpe da barriga"? Ela é expressamente dirigida às mulheres, porque é DELAS, não deles a função de se proteger da gravidez. Assim, começamos a punir as mulheres antes mesmo da gravidez, apenas por ela ser capaz de engravidar. E é claro, existe também o fato que as mulheres são comumente invisibilizadas em relacionamentos onde há desigualdade de poder e consequentemente, de voz, de ação.

A moça de Belo Horizonte cometeu três crimes terríveis: Engravidou, abortou (legalmente) devido ao alto risco da gravidez, engravidou de novo. Ah não, espera, nada disso é crime! Porém, mesmo não sendo uma criminosa, ela foi condenada por um juiz, mas também por toda uma sociedade que retira das mulheres o poder de manifestar opinião e tomar decisões a respeito de seus próprios corpos. Ao pedir o segundo aborto, ela não está "banalizando" o aborto, ninguém fica feliz de passar por uma experiência traumatizante dessas, ela está apenas requisitando o direito legítimo de continuar vivendo.  Enquanto a sexualidade da mulher for passível desse tipo de comentário, enquanto juízes poderosos acreditarem que mulheres devem sofrer por engravidar, enquanto todo mundo fizer apontamentos sem analisar a opressão que recai sobre as mulheres, casos como o dessa moça serão normais.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

O Machismo por trás da música "Esse cara sou eu"


Morena e Théo, o casal principal de Salve Jorge
Sabe aquela música do Roberto Carlos que é a faixa principal da trilha sonora da novela "Salve Jorge", tema do casal Morena e Théo? "Esse cara sou eu"? Prestei um pouco mais de atenção na letra e preciso tecer alguns comentários sobre o assunto. Provavelmente alguém virá dizer "é só uma música" ou "é só uma novela". Mas a soma de todas as músicas e de todas as novelas são representativas. Uma grande parte da nossa cultura musical e televisiva são reflexo de determinados preconceitos e acho que sempre vale o questionamento sobre o que estamos de fato consumindo.

Eu assisto novelas. Confesso que no momento não tive a paciência de acompanhar a novela da Glória Perez, mas conheço novelas e sei que elas são mantenedoras de certos preconceitos, valores, status quo. De vez em quando, uma novela ousa botar uma discussão na mesa de jantar das famílias e é muito produtivo. Então tento não vilanizar as novelas, por saber que elas também promovem, vez ou outra, alguns debates. Se não fosse assim não haveria tanta polêmica em torno de colocar em alguma novela um beijo homossexual.

O amor romântico
exaltado desde a infância
As novelas, em geral, ainda são o campo de propagação de alguns preconceitos arraigados. E é o meio mais efetivo na cultura brasileira de manutenção do "amor romântico" como ideal de felicidade e por isso pode-se dizer que a música do Roberto está bem colocada dentro da programação. Assim como os contos de fada da Disney que ensinamos as crianças a gostar, assim como as revistas adolescentes, assim como as comédias românticas, as novelas continuam nos oprimindo em idade adulta. Continuamos acreditando que é somente através de uma relação heterossexual, monogâmica e tradicional, que seremos felizes. O eterno mito das mulheres incompletas. Alguém tem visto nas novelas uma "mocinha" sem "mocinho"? sem par romântico? Eu até vejo novelas em que o romance fica um pouco de lado, mas não o suficiente para afirmar que a personagem central é alguém que não precisa de outra pessoa para ser completa.

Na música do Roberto Carlos, a princípio, a gente pensa que o tal "cara" é alguém atencioso, alguém preocupado e gentil. Só que nessa atenção escondem-se alguns aspectos interessantes do que a sociedade espera de uma mulher, de um homem e do relacionamento entre os dois. E de como somo condicionados a idealizar esse sujeito que supostamente é "O CARA". Quando o Roberto Carlos diz:

"O cara que pensa em você toda hora
Que conta os segundos se você demora
Que está todo o tempo querendo te ver
Porque já não sabe ficar sem você"

Falarei um pouco por mim, namoro à distância com alguém e essa idéia de "não sabe ficar sem você" é perfeitamente superável. O amor romântico carrega consigo o conceito de posse. É impossível "ficar sem", "ficar longe", não observar o que a pessoa faz, onde ela está, com quem ela está. Pode parecer exagero meu, mas é verdade. Há quem afirme até que não existe amor sem ciúmes. Pois deixe eu falar logo, existe sim. Nós é que somos treinados desde pequenos para sermos incapazes de amar sem possuir. 


Se existe algo extremamente danoso é a idéia de posse. É exatamente essa coisificação da mulher que nos sujeita à violência, desde as simbólicas às violências físicas mais brutais. Daí surge o "crime passional" (expressão que normalmente é usada como eufemismo para feminicídio), da associação de paixão e posse. Que talvez comece nessa frase "Eu, que  não sei ficar sem você" e pode terminar em "Se você não é minha, não será de mais ninguém". Precisamos ter muito cuidado com os caras que não sabem ficar sem a mulher.


"O cara que pega você pelo braço
Esbarra em quem for que interrompa seus passos
Está do seu lado pro que der e vier
O herói esperado por toda mulher

Por você ele encara o perigo
Seu melhor amigo
Esse cara sou eu"

A canção está reafirmando que a mulher espera do homem que ele a proteja, que haja de acordo com esses papéis pré-estabelecidos de gênero em que a mulher é frágil e que sua segurança está nas mãos de um homem. E nem preciso comentar o quão heteronormativo é a afirmação que toda mulher espera por um herói. O cara, afinal, é mais uma versão do príncipe no cavalo branco.

"O cara que sempre te espera sorrindo
Que abre a porta do carro quando você vem vindo
Te beija na boca, te abraça feliz
Apaixonado te olha e te diz
Que sentiu sua falta e reclama
Ele te ama
Esse cara sou eu"

Aqui, por fim, ele traz a idéia do cavalheirismo. Bom, amigos, vamos deixar uma coisa clara, uma coisa é a gentileza. A pessoa que abre a porta do carro para mim, deveria abrir para todas as pessoas. Isso é gentileza. Se um amigo meu está com frio e eu ofereço o meu casaco, não estou sendo "cavalheira", estou sendo gentil. Gentileza é um tipo de empatia. A gente faz algo por outra pessoa porque essa atitude é típica de um modo de ser. Cavalheirismo é outra coisa, esse é o nome que se dá à idéia de que mulheres devem ser presas em uma redoma. É uma forma de nos chamar de incapazes. Incapaz de abrir a porta do carro, incapaz de pagar as próprias contas, incapaz de tomar as rédeas da sua vida sem um homem por perto. Cavalheirismo é, como o próprio nome fala, uma atitude que parte de um homem para uma mulher, não é um gentileza altruísta, mas uma gentileza com segundas intenções. As gentilezas de gênero são assim, mal intencionadas. Pode até ser que o cara não queira fazer sexo com você porque abriu a porta do carro, mas com certeza ele acredita que aquilo faz dele um homem mais respeitável. O problema é que também torna a mulher mais passiva, mais dependente (note que estou usando como exemplo a porta do carro, mas na verdade estou tratando do somatório de cavalheirismos que são comuns na nossa sociedade). Cavalheirismo é uma forma de dominação, sim.

É extremamente prejudicial para TODOS, homens e mulheres, que estejamos idealizando o tipo perfeito de ser humano com quem deveríamos nos relacionar, primeiro porque são expectativas vazias, já que as pessoas não vêm com manual de instrução com todas as especificações de fábrica perfeitamente anotadas para que possamos saber se aquela pessoa é mesmo a ~~ideal~~. E segundo, porque esse cara da música, que parece tão legal, soa como exemplo de "entitlement". O termo designa a sensação de merecimento que acomete alguns homens. Sabe quando um homem assedia alguém na rua? Ele faz isso porque sente que pode, sente que merece. E assim é nesse relacionamento, ele acredita que se a protege, se paga suas contas, se abre a porta do carro, se pensa nela... Ele tem poder o sobre ela para que ele seja amado em retribuição. Só que não se trata de uma operação matemática em que esses cavalheirismos e sentimentos dele são somados e o resultado é o amor correspondido.

É exatamente a falta de compreensão que não existe fórmula do amor que frusta tanto quem tenta se enquadrar nesses perfis ideais e acaba com a cara na poeira. Sabe o que isso acaba gerando? aquele mimimi mascu de "friendzone". Homens que não entenderam ainda, tomem nota: não é porque vocês tratam alguém bem que essa pessoa é obrigada a amar, ok? Vocês podem achar que estão sendo legais, mas as outras pessoas podem não pensar assim. Fiquem cientes disso e parem de acusar as mulheres de colocarem vocês na "friendzone", afinal amigos também fazem gentilezas e a mulher tem o direito de acreditar que você é só um amigo. Tratar as pessoas bem deveria ser algo natural e desprovido de interesses, se você é gentil esperando amor ou favores sexuais, você não é um cara legal. 

Por fim, ressalto que todas as características desse "cara" da canção, são frequentemente exaltadas, como se fossem aquelas que tornam esse homem, o ser humano ideal para fazer uma mulher feliz e isso é extremamente castrador e normativo, pois a felicidade de uma mulher pode nem sequer residir em outra pessoa. A felicidade pode estar em si mesmo ou em qualquer lugar.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Bullying machista: Somos todas Karina, Amanda, Denise...


Com o crescimento do uso das redes sociais e da internet, aumentou consideravelmente os casos de divulgação de imagens íntimas de mulheres. E as mulheres vítimas dessa exposição costumam sofrer uma verdadeira caça às bruxas. As bruxas do século XXI são as mulheres que fazem sexo.
A mulher que "cai na net" é massacrada por julgamentos, ofensas e culpabilizações. Mesmo muito dos "defensores" as chamam de tolas por terem confiado em alguém. As mulheres são proibidas de confiar em qualquer pessoa e devem estar sempre atentas, sob pena de serem consideradas culpadas. Quem divulgou as fotos ou os vídeos não foram elas, pode ter sido um ex-namorado, um vizinho chantagista, um hacker, mas a culpa é da mulher. Elas deveriam ser castas, não fazerem sexo e se fizerem, jamais se deixarem fotografar ou serem filmadas. Os nomes que são lembrados não são os dos caras que divulgaram as imagens dessas mulheres sem o consentimento delas. Os nomes marcados, as vidas que são destruídas, são as dessas mulheres. Sendo que fazer sexo não é crime, mas expor pessoas na internet sem autorização o é.
  
Um caso que chocou o mundo foi o da Amanda Todd, canadense de 15 anos que suicidou-se por não aguentar mas as perseguições machistas e misóginas que ultrapassaram os muros da escola. Essas perseguições foram causadas pela divulgação de imagens dela mostrando os seios. Ela sofreu ameaças, chantagens, entrou em depressão, foi ofendida e ameaçada pelos próprios colegas, acabou se envolvendo com drogas e no fim, suicidou. Uma história triste, onde se vê claramente o poder do machismo e da misoginia e como a caça às bruxas às mulheres consideradas "vadias" é cruel.
Via Não aguento quando.
A internet vira um tribunal para essas mulheres expostas. Expor essas imagens são uma forma de vingança específica contra mulheres. Afinal, enquanto fazer sexo é considerado um horror para as mulheres, uma forma de "desvalorização", para os homens a lógica que se aplica é contrária. Por que as mulheres não expõem imagens íntimas de homens? Simplesmente porque expor essas imagens não funcionaria como vingança, os papéis não se inverteriam. Ela continuaria a "vadia". A mulher que fizesse isso, seria chamada de louca, ciumenta, histérica. Afinal, a loucura e o ciúme são relacionados à irracionalidade, característica constantemente atribuída às mulheres. E o homem seria considerado vítima, ele não seria considerado culpado, ninguém diria que "ele mereceu". Afinal, o machismo diz que o sexo é humilhante e degradante pra mulher, enquanto para o homem não.

O termo "caiu na net", cunhado no orkut e muito utilizado hoje, banaliza o que a exposição dessas imagens íntimas de fato é. Um crime, uma crueldade, uma forma de vingança e de humilhação. Viola-se o consentimento da mulher, coloca-se o corpo daquela mulher como um corpo disponível para ser visto por todos que queiram. A imagem não surge do nada, ela é postada por alguém. Atrás dessa "postagem", há ameaças como "se você me pagar tal valor, eu não divulgo suas fotos", ou até mesmo "se você me abandonar, nosso vídeo vai para internet". Há a espera pela reação de julgamento da sociedade, há a intenção é humilhar.

Muitas vezes muitos dos que utilizaram essas fotos e vídeos para o próprio prazer, são os primeiros a julgar aquela mulher e montar seu tribunal. A pessoa é vista apenas como entretenimento para os julgadores. Afinal, o bullying se sustenta nessa cultura de ódio que diz que certos tipos de pessoas devem provar o seu valor para conquistarem respeito. O respeito para as mulheres não é considerado algo inerente, ele deve ser provado. E exercer sua sexualidade é considerado uma afronta ao comportamento ideal da mulher. E qualquer mulher que foge desse ideal conservador e machista, é considerada merecedora de exposição, humilhação e até mesmo violência.