terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Como funciona o racismo estrutural.

Escrevi o post abaixo como um desabafo no meu facebook. Como a recepção foi muito positiva, resolvi deixá-lo aqui para facilitar o acesso no futuro (já que geralmente os posts de facebook se perdem):

Euzinha num momento selfie pq ninguém é de ferro

Deu vontade de contar uma história pra vocês: uns anos atrás eu fui prestar um concurso em Brasília. Nem me lembro mais qual era o concurso, só sei que era na minha área, mas isso não é relevante. Eu fui com uma amiga da faculdade de Letras que, além de ter trabalhado comigo por anos, era uma pessoa que eu tinha em alta estima. Nesse dia, dividimos o mesmo quarto de hotel. Quando eu estava me arrumando, ela pegou um pente, e o que aconteceu naquele momento foi TÃO surreal que eu nunca mais me esqueci: ela começou a pentear o cabelo lisíssimo dela e, enquanto o pente deslizava, ela me perguntava 'e aí, tá morrendo de inveja?'. Eu fiquei sem ação na hora. Demorei alguns segundos para conseguir ACREDITAR que ela estava me perguntando aquilo. Respondi, então: 'não, não estou com inveja, pq eu gosto do meu cabelo, não preciso ter inveja do seu'. Ela não falou nada, não pediu desculpas, ficou um climinha tenso por alguns minutos mas acabou ficando nisso. Eu continuei amiga da pessoa em questão. Porque eu pensei que aquilo foi apenas alguns 'segundos de bobeira' e que, apesar de tudo, eu estou tão acostumada com as sutilezas do racismo brasileiro, que não ia fazer muita diferença cortar laços com a dita cuja. 

A vida continuou e os nossos caminhos seguiram seus rumos felizes, eu fui embora do Brasil, etc, etc, etc. Mas, seguimos amigas em redes sociais. É aí que eu acho engraçada a parada de redes sociais, hahaha. Porque eu, que era uma pessoa que 'fazia tudo direitinho' nos meus idos tempos de faculdade, mudei bastante, me politizei bastante. Eu percebi que eu não preciso me calar mais frente às injustiças que acontecem nesse mundo. Das pessoas amigas antigas, tanto de faculdade, como de igreja, como da minha própria família, só restaram aqueles que de certa forma conseguem entender a minha trajetória de vida. E, se não entendem muitos dos meus posicionamentos por considerá-los 'radicais' demais, pelo menos se colocam no meu lugar. Talvez eu não tivesse mudado tanto se não tivesse ido embora do Brasil. Mas eu sou muito feliz por ter mudado. Exerço a gratidão todos os dias, por ser quem eu sou hoje, por estar onde estou e por estar conseguindo ser um modelo para muitas meninas. Outro dia eu li uma das frases mais lindas e libertadoras da minha vida: 'não quero ser padrão de beleza, quero ser padrão de aceitação'. Hoje a minha amiguinha que abriu meu texto me bloqueou no facebook. Mal sabe ela que sua atitude é apenas uma de tantas e tantos. A roda da vida é assim... alguns poderiam me perguntar porque eu não a bloqueei antes. A resposta é simples: porque eu não tenho nada contra essa pessoa. O que ela fez comigo naquele hotel, nunca será esquecido. Mas, eu não sofro com aquilo. Apenas foi impossível não lembrar do ocorrido, tendo em vista que hoje ela me bloqueou simplesmente por argumentar que o autor do texto que ela compartilhou nada sabe de racismo estrutural. E, nada sabe mesmo. Afinal de contas, se soubesse, não teria escrito um texto ultra-reacionário dizendo que a fifa não é racista. 

O racismo estrutural é isso, minha gente: as oportunidades existem, são as mesmas, mas estranhamente a realidade não muda. Não muda o fato de que, entre euzinha e uma menina loirinha provavelmente super bacana e gente boa, tenham ME ESCOLHIDO para revista em um dos muitos aeroportos que eu já visitei em minha vida. Não muda o fato de que, num restaurante em que estamos sentados eu, meu marido (preto) e nosso amigo branco, o garçom tenha entregue a conta ao amigo branquinho, que nem ia pagar a mesma, pois ele era o nosso CONVIDADO e o garçom teve que dar uma voltinha para entregar a conta a ele, pois quem estava mais próximo era meu marido. Não muda o fato de que eu sou extremamente mal-tratada em lojas de grife em Goiânia mesmo tendo grana pra fazer minhas compras. Não muda o fato de que, em plena Bahia, tenham escolhido a Fernandinha Lima, super gente boa, branquinha e linda (e não estou sendo irônica, ela é linda mesmo) para representar o Brasil em um evento da copa. Não muda porque, na sociedade brasileira, os lugares estão demarcados. Gente preta, só no entretenimento. A mulher negra, para ganhar visibilidade, precisa estar atrelada à imagem de sensualidade. Eu já ouvi chorume de que 'brancas não podem participar do globeleza, e que isso é racismo contra brancos'. Sim, meus caros, eu ouvi. A pessoa que escreveu isso não tem idéia de como o racismo estrutural funciona. Porque ela provavelmente está lá, no lugarzinho dela de privilegiada. Não entende que o próprio concurso já é uma aberração, um ato de extrema objetificação da mulher negra, que só é considerada enquanto corpo, nunca enquanto mente, nunca enquanto alguém que pode 'apresentar a copa', por exemplo. Não entende que o concurso não está dando visibilidade às mulheres negras, mas sim mantendo as mesmas em seu lugar: o de apelo visual, pois é 'pelo corpo que se conhece a verdadeira negra'. E a copa, não está necessariamente dando visibilidade aos brancos, e sim mantendo a ordem 'natural' das coisas: o de pessoas que podem se argumentar suficientemente bem para apresentarem um evento dessa envergadura. 

Então, pessoas 'das antigas' que ainda restam em meu facebook, fica meu apelo: pensem bem antes de dizer que não houve racismo por parte da fifa. Porque o racismo de que estamos falando é o estrutural, e não aquele do ku klux klan, que joga negros na fogueira. É sutil, é quase imperceptível, mas mantém "cada macaco no seu galho". Atentem-se, porém, para o fato de que toda manifestação de poder encontra resistência. A resistência negra está em franca expansão no Brasil, e de repente nós estamos cada vez mais (cons)cientes de que estruturas que paulatinamente excluem uns e privilegiam outros podem - e devem - ser questionadas em seus detalhes e pormenores. Por fim, para usar uma frase muito bem-quista dos reacionários de facebook: 'nada contra' a Fernanda Lima, pra mim faz todo sentido que ela tenha sido escolhida para apresentar o parangolê lá - afinal de contas, a lógica implícita no Brasil é a de que os papéis estão bem divididos e ela, dentro desse sistema, fez mais do que merecer o galho dela. Só não pensem que essa ordem se manterá para sempre.


domingo, 10 de novembro de 2013

A pessoa errada, no lugar errado?

Inicio o texto de hoje narrando um caso que aconteceu comigo, quando eu morava nos EUA. Ainda hoje, confesso, eu me lembro do medo que senti, e isso me causa um mal-estar danado, principalmente porque eu sempre tentava me convencer de que eu estava exagerando. 


Pois bem. Eu fui fazer compras em um hipermercado, não muito distante da minha casa. Usei o GPS para chegar ao local. Acabei demorando, entretida que estava com tantos ítens de decoração lindíssimos que vi por lá. Depois de um tempo, volto ao meu carro, e tenho a brilhante idéia de não usar o GPS, pois pra mim, o caminho estava fresco na memória. 




Acontece que eu me perdi. Escureceu mais rápido do que eu imaginava e, de repente, as ruas eram todas iguais. Eu estava perdida em uma área residencial próxima ao supermercado, e não conseguia: a. retornar à loja, b. encontrar o caminho de casa. Fui ficando aflita, e ao perceber que estava girando em círculos, eu parei o carro. Enquanto eu abria o porta-luvas para pegar meu gps e ligá-lo, as luzes das casas começaram a acender. Eu estava parada em frente a uma casa, e enquanto digitava meu endereço no gps, eu percebi uma cabecinha me espiando pela cortina. Era uma mulher branca. 


A sensação de medo é indescritível até hoje, quase dois anos depois do ocorrido. O gps demorou uns trinta segundos para reaver o mapa, e eu confesso que foram trinta segundos bem demorados. Eu tremia, meu coração parecia que ia sair pela boca, e tudo que eu conseguia pensar era: vou levar um tiro. Na cabeça. 


Até hoje eu não sei explicar direito de onde me veio esse pensamento. Talvez de tanto escutar a velha frase "a pessoa errada, na hora errada, no lugar errado", eu fiquei com aquela sensação de que tava tudo errado naquele momento que eu estava vivendo. Cheguei em casa ainda trêmula, contei o ocorrido ao meu marido, que ficou bem preocupado. Depois de conversarmos sobre o assunto e eu prometer que nunca mais deixaria de ligar o gps, mesmo que eu tivesse certeza do caminho, eu meio que o convenci, e convenci a mim mesma, que eu estava sendo exagerada. Afinal de contas, eu fiquei ali parada por menos de um minuto. 


Mas, a pulga nunca saiu detrás da minha orelha. Eu sabia que o meu maior desconforto se dava ao fato de que (me disseram) o Texas tem mais armas do que gente e que a lei do 'stand your ground' (algo como 'defenda seu território') é uma realidade por lá. Mas, eu estava parada na rua, não havia motivo para me preocupar. Pelo menos é o que eu repetia pra mim mesma sempre que a história martelava na minha cabeça. Lembro ainda que no outro dia eu contei o caso pra minha professora de inglês, que me pediu, com voz de assombro: "nunca mais faça isso, eu sei que você realmente pensou que sabia o caminho, mas nunca mais faça isso, por favor". 




Essa semana, eu me deparei com o seguinte título de uma notícia (em inglês): "Mulher negra é morta por pedir ajuda em uma vizinhança branca". Renisha McBride bateu o carro em uma região habitada majoritariamente por brancos, em Detroit. A bateria de seu celular tinha acabado, e ela resolveu então pedir ajuda em uma casa próxima. Acabou sendo morta. É a tal lei do 'stand your ground' em ação. Renisha morreu por ser negra. Porque pessoas negras são sempre suspeitas. Porque a Renisha, assim como eu, provavelmente cresceu ouvindo a história da "pessoa errada no lugar errado". É um eufemismo que nós ouvimos, ao invés de "pessoa negra em vizinhança branca" ou, ainda "mulher no espaço público". Ouvimos esse tipo de coisa porque é mais fácil culpabilizar a vítima. Aposto que se algo tivesse acontecido comigo, teriam jogado toda a culpa no fato de eu não ter usado o gps aquela noite. Assim como certamente devem estar especulando que a Renisha, na verdade, errou em tocar a campainha de uma casa desconhecida. Mesmo que ela não tivesse outra escolha. 


O dia da Consciência Negra (20 de Novembro) está se aproximando. Uma data para lembrar toda a trajetória de sofrimento e exploração sofrida por escravas e escravos no Brasil. Mas não só isso. Pra mim, trata-se de um momento para reflexão, introspecção, ação. Em um mundo globalizado, os problemas também encontram-se interconectados. E eles são muitos, e bem complexos. O medo que eu senti nos EUA é o medo que praticamente todas as pessoas negras sentem no Brasil. Em um mundo realmente justo, a negritude não é confundida com criminalidade. Em um mundo realmente justo, pessoas negras, mulheres e demais minorias não são "pessoas erradas" porque esse conceito, simplesmente, não faz sentido.


sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Bancada fundamentalista planeja um Brasil teocrático

"Indiretas Feministas"

Já faz um tempo que a bancada fundamentalista, suas ações e investidas políticas para aumentar seu número me preocupa. Minha preocupação intensificou quando o Pastor Marco Feliciano assumiu a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal. Afinal, a comissão que deveria garantir os direitos de grupos vulneráveis como homossexuais e pessoas transexuais passou a ser liderada por uma figura que luta contra os direitos humanos dessas pessoas e fiquei ainda mais tensa quando houve uns boatos de que ele pretendia se candidatar à presidência. Mas nesse momento, o medo das eleições de 2014 acabou de atingir níveis alarmantes: Uma propaganda do PSC, de quase dez minutos, acabou de passar num dos horários mais assistidos na emissora Globo. Em toda a propaganda se vê aquele papinho de valorização da família, aquele papo que dá pra ver claramente que fazem uso dos ideais de uma certa religião para basear toda a ideologia do partido e que isso serve de desculpa para atentar contra os direitos humanos.

Indiretas Feministas
Dá para perceber claramente que a intenção do partido é aumentar seu número na Câmara Federal, nas assembleias estaduais e no poder executivo. E a gente sabe muito bem que a motivação para que esse número aumente é porque com mais gente há mais chance de barrar qualquer projeto de lei, política pública ou qualquer coisa do tipo que vise a garantia de direitos para grupos vulneráveis. A propaganda do partido ser tão longa, tão bem produzida e o fato de que já começou a ser divulgada como quem não quer nada deixa claro que o poder/dinheiro que eles tem disponíveis é enorme e eles usarão todos os recursos possíveis.

Só o fato de existir um partido que afirma que seus ideias se sustentam nos dogmas de uma religião num Estado Democrático de Direito e ele ter tanto poder/dinheiro para conseguir quase 10 minutos de propaganda política antes do Jornal Nacional já dá para a gente questionar bastante questões como a laicidade do Estado e a própria democracia. Principalmente quando esse partido luta justamente contra qualquer mudança que inclua garantir direitos e proteção de discriminações à comunidade lgbt*, luta contra os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres cis e demais pessoas que tem útero e que faz uso de um discurso religioso para ganhar poder e justificar discriminações.

Indiretas Feministas
 O discurso do Feliciano não é único. Ele está no PSC, está em outros políticos, está na sociedade num todo. E a gente tem que combatê-lo, porque eu realmente não quero viver num país que é completamente dominado por pessoas machistas, misóginas, racistas, que discriminam quem tem a orientação sexual diferente da hétero, que discrimina e impede que pessoas trans tenham o mínimo de dignidade e há muita gente usando muitos recursos financeiros e de poder para garantir que o fundamentalismo seja uma voz quase única em todas as esferas de poder. Eu não quero viver numa teocracia.

Esse status foi postado originalmente no meu perfil do facebook, mas como houve pedidos para que o texto fosse postado aqui também, postei.

"Afinal, quem o Marco Feliciano representa?" - texto do Ativismo de Sofá

sábado, 12 de outubro de 2013

Sonhos de menina


Quando eu era criança, uma menininha muito falante e bochechuda, eu falava para todo mundo que eu queria ser paleontóloga. Eu adorava pedras, dinossauros, brincar de lego, criar histórias, ler histórias, ler enciclopédias, desmontar coisas para ver como elas funcionavam (e eu fazia isso sempre com calculadoras), brincar de lego e construir universos para brincar que incluíam bonecas Susi, personagens de Dragon Ball Z, pokemóns, dinossauros, cavalos e a casinha do Mickey. Gostava de montar barraquinhas com lençóis que viravam um verdadeiro outro mundo onde um ursinho de brinquedo minúsculo era uma imperadora chamada Yasmin.

E eu não quis ser só paleontóloga, quis ser astrônoma, jornalista, escritora, pintora, contadora de histórias, atriz e professora. Queria saber do que nosso planeta era feito, como as pedras surgiam, como eram feitos os brinquedos e como contar piadas e assobiar (as duas últimas nunca consegui aprender). E eu não era a única menina que tinha diversos interesses e sonhava com as mais diversas carreiras. Lembro de várias meninas dizerem que queriam ser juízas, fotógrafas, médicas, veterinárias, professoras, atrizes, escritoras, cozinheiras, atletas e cientistas.

Só que a maioria das meninas tem seus sonhos e oportunidades restringidos pelos papéis de gênero. Desde cedo, ao invés de brincar, elas são ensinadas a cozinhar, arrumar a cama, cuidar do irmão, varrer e a se conter. Algumas meninas sequer podem frequentar a escola. A maioria das meninas tem seus sonhos minados aos poucos porque ouvem que não servem para serem médicas, cientistas, poetisas. Ouvem que não são boas o suficiente o tempo todo e descobrem que vivem em um mundo em que ser mulher é visto como algo inferior. Logo descobrem que quando são boas em alguma coisa, é comum que se ouça coisas como "você é até boa nisso, para uma menina". E as meninas logo percebem que os meninos que brincam com elas são ofendidos pela palavra "mulherzinha" e cada dia que passa elas percebem que quando foram designadas ao nascer como meninas foi escolhido para elas um destino cheio de regras e que as coloca como inferiores. O destino cheio de regras se estende também aos meninos, mas para eles, o papel é outro, é o papel de superior.

É comum que coloquem toda a discussão sobre a divisão de brinquedos para menino e para menina como uma coisa boba, pequena, insignificante. Mas é essa divisão que, no futuro, se torna a divisão sexual do trabalho e faz existir a dupla jornada. É na infância que é ensinado que meninas devem cuidar da casa e das pessoas e que meninos podem ser o que quiserem, desde que não seja algo feminino. É sem a divisão sexista dos brinquedos, tarefas e cores que todas as crianças aprendem que podem ser o que quiserem. E começam a sonhar, aprender e buscar quem elas querem ser. Essa divisão só serve pra enfraquecer a autoestima das meninas e restringir os sonhos das meninas às caixinhas padronizadas e tradicionais que ignoram que cada um de nós é único e tem poder de construir a própria história.

Imagens retiradas de "24 Badass Halloween Costumes to Empower Little Girls." 

Recomendo: Texto da Daniela Andrade sobre crianças, brinquedos e normatização de gênero AQUI 

Observação: 70% das 1,3 bilhões de pessoas em extrema pobreza no mundo são meninas e mulheres.

domingo, 29 de setembro de 2013

O moralismo da frase "se não quer engravidar, não transe"

Texto de Thaís e Flávia.


"Se não quer engravidar, não transe" é uma frase que sempre aparece nas discussões sobre a legalização do aborto e ela é sintomática sobre como o exercício da sexualidade feminina ainda hoje é julgado negativamente e sofre tentativas de controle e condenação.

Indiretas Feministas

Sob o prisma das relações entre casais cis e héteros, a culpa da gravidez indesejada sempre recai sobre a mulher, principalmente por causa do moralismo que ainda permeia a sociedade quando falamos sobre a sexualidade feminina. Numa sociedade com um machismo vigente, a sexualidade feminina só é vista como existente se acessória da masculina, sendo o desejo sexual feminino considerado inexistente, coloca-se como dever da mulher "se preservar". Essa lógica machista e slutshammer reflete também na ilógica responsabilização apenas da mulher quando se fala em gravidez indesejada.

Dentro desse contexto, responsabiliza-se apenas a mulher porque não se espera que ela não deseje ter filhos e que a sexualidade dela exista sem ser no âmbito familiar. E essas mulheres que não são vistas como castas, conforme a lógica machista, merecem a gravidez indesejada e, para alguns mais sádicos, até a morte decorrente do aborto clandestino como uma punição. Em uma cultura falocêntrica em que o prazer da mulher é visto como algo secundário, punir a mulher com uma gravidez indesejada faz parte de uma estratégia de manutenção do patriarcado. Obrigar a mulher a levar uma gravidez indesejada adiante é um ato de tortura, é querer justificar um erro com outro (dizem que toda mulher sabe se proteger, e a que não se protege é vista como alguém que precisa ser punida por isso, e a gravidez é vista, justamente, como um punição).

O processo de culpabilização ignora que todos os métodos contraceptivos têm margem de falha e que a mulher não é a única responsável pela gravidez e nem pelo possível fruto dela. Ainda hoje homens não participam dos cuidados da casa e nem do cuidado de seus filhos, sendo assim, a mulher, caso tenha o filho, comumente é a pessoa que se responsabilizará por ele e muitas vezes sozinha. Como a responsabilidade da gravidez indesejada é colocada nos ombros apenas da mulher grávida, percebe-se que a intenção é punir a sexualidade dela e colocá-la para servir de exemplo para outras mulheres. Para deixar ainda mais clara a intenção moralista dessa responsabilização única da mulher é só pensar em como a mãe solteira sofre um estigma fortíssimo de vadia. O patriarcado pune tanto a mulher que decide prosseguir com a gravidez, quanto a mulher que decide interrompê-la.

A favor da despenalização do aborto
É importante destacar que essa culpabilização ignora diversas nuances que merecem ser expostas e questionadas, entre elas destaca-se o fato de que mesmo pessoas de classe média que na teoria tem todo acesso do mundo à informação raramente sabem que algumas interações medicamentosas podem diminuir a eficácia da pílula anticoncepcional, por exemplo. Imagine então como o acesso à informação, ao atendimento médico para que haja um planejamento familiar, aos contraceptivos e à educação sexual como um todo é ainda mais restrito para pessoas em situação de vulnerabilidade social. E num país como o Brasil, que tem uma desigualdade social gritante, ignorar essa realidade é ser negligente e elitista. Nesse ponto, um lembrete, há uma feminização da pobreza e numa sociedade racista, a questão de classe é permeada pela questão étnica e também de gênero. Sendo assim, as maiores vítimas que a criminalização do aborto e a ausência de políticas públicas de educação sexual eficazes traz são as mulheres negras e pobres.

A luta pela legalização do aborto vai além da legalização em si, educação sexual para todos e acesso a contraceptivos e atendimento médico ginecologista é também parte da bandeira. Muitas das pessoas que são contra a legalização do aborto e dizem que hoje em dia só fica grávida quem quer, e que por isso a pessoa deve arcar com as consequências, ignoram que o fundamentalismo religioso e sua influência no nosso Estado que na teoria é laico influencia negativamente na eficácia da educação sexual que temos, logo na prevenção. Afinal, eles militam contra o uso da camisinha e métodos contraceptivos como a pílula anticoncepcional e sua distribuição gratuita e pressionam para que a educação sexual oferecida seja falha e se baseie em pregar a abstinência.

Outro ponto que ainda hoje é muito comum dentro de relações cisheteronormativas é a pressão exercida por homens para que as mulheres não usem camisinha, que é um método que além de contraceptivo, é também uma forma de se proteger de doenças sexualmente transmissíveis. As vítimas de violência doméstica compõem um grupo de risco também quanto às gravidezes indesejadas e abortos clandestinos, devido sua situação de vulnerabilidade, viver em constante ameaça e ter seus direitos básicos e autonomia restringidos pela violência. E quem diz "só engravida quem quer" as negligencia numa crueldade gritante, visto que a violência sexual é um componente de relações abusivas e elas são mulheres que não tem acesso aos direitos sexuais e reprodutivos.

O fato de que "alguma mulher poderá se aproveitar do sistema" é outro forte argumento dos chamados
Fotocampanha promovida pela Marcha Mundial das Mulheres.
"pró-vida" que não encontra respaldo na realidade. Pois toda lei é passível de ser burlada, e todas as pessoas podem se aproveitar de uma lei para agir de má-fé, isso é da natureza humana. Entretanto, isso não permite que as liberdades individuais simplesmente deixam de existir. No caso da mulher, essa liberdade é tirada dela, sob a desculpa de que algumas irão se aproveitar de tal liberdade para fazer uso indiscriminado dela - e isso revela uma infantilização da mulher, isso é a sociedade falando para a mulher que ela NÃO é capaz de agir com maturidade, e isso é inadmissível.

"Se não quer engravidar, não transe" é uma frase que atenta contra os direitos reprodutivos e sexuais e a autonomia da mulher e ignora diversos aspectos sociais e de saúde pública que permeiam a ideia da legalização do aborto. O moralismo, junto com a negligência racista e elitista que permeia nossa sociedade dificulta o acesso das mulheres aos métodos contraceptivos, à educação sexual eficaz e de qualidade e ao planejamento familiar. Enquanto isso, mulheres pobres, principalmente negras, são condenadas à morte ou ao escárnio por serem mães solteiras e a ver o ciclo da pobreza se repetir.

Obs: Não só mulheres podem engravidar, homens trans e pessoas não binárias que tem útero também podem. Logo, todos os direitos defendidos pelo texto, como o aborto seguro e educação sexual, se estendem a essas pessoas. 


Pra quem não viu, sugerimos fortemente este vídeo aqui. E é sempre bom recordarmos os textos que já foram postados a respeito neste blog, como o texto da Thaís e o guestpost  escrito pelo Henrique Marques-Samyn. 


Lei é eficaz para matar mulheres, diz especialista.

domingo, 22 de setembro de 2013

Garnier, a nossa receita é uma resistência a você


Eu ainda vivia na Índia quando percebi, meio que pela primeira vez, a agressividade da marca Garnier. Fiquei a matutar sobre os aspectos imperialistas que permeavam a propaganda que eu tinha diante de meus olhos. No comercial em questão, uma modelo aparecia se recordando da sua infância, de um tempo em que sua mãe lhe dizia algo como "uma boa garota faz umectação antes de cada lavagem". 


Cabe aqui um breve parêntese: quem sabe um pouquinho de Índia tem noção da importância dada ao uso de óleos nos cabelos. Há uma variedade de óleos para os mais diversos problemas, sendo que o óleo de coco é considerado por lá o mais básico e essencial para cuidados de rotina. O uso do óleo de coco como um pré-shampoo é uma tradição da qual as indianas se orgulham muito. 


Pois bem, voltando ao comercial. Após se lembrar da tal infância, a modelo fala algo como "mas cadê o tempo?", e o que se desenrola é uma explicação de como a maravilhosa marca garnier, que unira shampoo e óleo no mesmo produto, seria a saída para todos os problemas do universo. Seguem algumas tomadas, com modelos curtindo a vida e seus cabelos esvoaçantes (e bem photoshopados), dando a entender que elas só teriam a ganhar com a praticidade do produto. Até que chega o momento que eu achei particularmente tenso e agressivo: a modelo principal (do início do vídeo) destrói os vidros de óleo com um estilingue. O link do vídeo pode ser encontrado aqui


Iniciei meu texto com essa historinha porque foi exatamente dela que eu me lembrei quando, dois anos depois (ou seja, ontem), me deparei com um comercial brasileiro da marca garnier, estrelado por Dani Calabresa (o comercial em questão já conta com mais de 1 milhão de visualizações no youtube). E o que ficou claro pra mim, ao assistir o tal comercial? Exatamente, a agressividade da marca. Vou tentar expor o que eu penso a respeito disso. 


Uma coisa que todas as pessoas sabem acerca do capitalismo é que ele age movido pelo lucro. Única e exclusivamente, lucro. Acho que todo mundo tá ciente disso, inclusive comentários do tipo "ahh, isso é marketing! Marketing é assim mesmo!" denunciam que a galera sabe que é assim que o capitalismo, representado com maestria pelo seu amigo e braço direito - o marketing - consegue sobreviver. O que fica menos claro, dada a sua sutileza, é a forma que o capitalismo encontra de se fixar e soar natural e até útil, na vida das pessoas. Se o marketing é seu braço direito, o utilitarismo é seu mascote. Através do utilitarismo, o capitalismo consegue reforçar e, porque não, cimentar o discurso da praticidade na vida das pessoas. 


E de onde vem, necessariamente, esse discurso da praticidade? Pensemos na marca, especificamente.
Não podemos nos esquecer que se trata de uma multinacional, subsidiária da L'oreal. É uma gigante da indústria de cosméticos, cujas cifras (mi? bi?) lionárias eu nem consigo imaginar direito. Uma coisa, entretanto, é certeira: como uma empresa que atua em escala global, a marca precisa entender a dinâmica dos mercados locais para conseguir sobreviver. É óleo que as indianas querem? Daremos óleo a elas! Mas… como fazer frente a uma prática milenar já consolidada, com marcas que antecedem a Garnier e possuem um apelo local e familiar que a Garnier não tem? Ora, é simples: com uma postura imperialista. Nós, dessa multinacional que se instala em todos os lugares para obter lucros desmedidos, estamos aqui para salvá-las de práticas retrógradas e primitivas. Nós representamos a modernidade eurocêntrica que prega a primazia da praticidade na vida das pessoas. Nós somos a modernidade que destrói a cultura local. Com um estilingue. 


E o que o discurso da praticidade faz? Bom, ele estabelece o binário bom x ruim. E o ruim, gente, é sempre a prática 'retrógrada' e 'tribal' de quem não tem a pele branca. Por exemplo, é ruim ter cabelo crespo, pois cabelo crespo não seria prático. Ao que fica a pergunta: por que precisamos tanto assim de praticidade? Porque simplesmente não passa na cabeça desses imperialistas que alguém possa curtir passar um tempo se cuidando. Porque tempo é precioso demais, pois você precisa ser produtiva (ou seja, gerar dinheiro pro sistema), ou então, como no caso das propagandas, ter mais tempo para se divertir - e cuidar dos cabelos não seria uma diversão. 


Na propaganda da Garnier brasileira, essa dinâmica da praticidade fica muito clara. A Garnier precisa passar por cima de toda uma prática que é consolidada no Brasil, ou seja, as famosas receitas caseiras para cuidados capilares, para se reafirmar enquanto marca. A Garnier precisa se utilizar de blogueiras famosas que, em toda a sua ingenuidade, aceitaram de bom grado fazer um comercial que vai contra tudo aquilo que elas construiram (eu acompanho a Rayza Nicácio e ela sempre enfatizou cuidados em casa para os cabelos). E as fãs seguidoras da Ray e demais blogueiras que se indignaram com a tal propaganda (meu caso) foram acusadas de inveja. "Vocês queriam estar exatamente onde ela está, ou seja, ganhando dinheiro!" Porque, vejam bem, no mundo de hoje, o mercado suplanta princípios. E reclamar de alguém que se converte à lógica do lucro a todo custo te coloca, automaticamente, na posição de herege. 


Imagem tirada da page do Blog Cantinho da Nanda - Vejam como a Garnier faz chacota com a receita dela, em um tom bem agressivo. 
O cenário é desolador. Mas, há esperança. Há vozes, ainda que escassas, que se opõem a essa lógica mercadológica e utilitarista. Há um movimento que diz em alto e bom tom que as nossas receitas caseiras NÃO serão trocadas por um produto industrializado de qualidade duvidosa. Nós estamos aqui, na Índia, em todos os lugares em que essas práticas imperialistas esdrúxulas acontecem. Oferecemos resistência a essas práticas. Estamos aqui lutando para que os cabelos crespos não sejam sinônimos de ressecados, como a Dani Calabresa quis enfatizar (e o cabelo da Ray é hidratado e muito bem cuidado, diga-se de passagem). Estamos aqui para dizer que a nossa identidade não está à venda, tampouco é negociável. Se uma, duas, ou várias blogueiras não perceberam isso, é porque está na hora de lutarmos ainda com mais empenho. 

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Eu tenho voz e digo: cantada não é elogio!

"Não te conheço, então não me chame de meu bem"

A campanha "Chega de Fiu fiu", organizada pelo site "Olga", recentemente publicou os resultados de uma pesquisa que o site promoveu sobre o assédio sexual no espaço público. Junto com várias pessoas que se sentiram contempladas ao ver esse problema social sendo tão falado e denunciado, surgiram também muitas pessoas, principalmente homens cis e héteros, revoltados com a indignação das mulheres com as cantadas.

Um dos principais argumentos utilizados por esses defensores do que eles chamam de "cantada inofensiva" é que ela tem a finalidade de elogiar, é apenas "parte da paquera". Eles se dizem preocupados com o fato de que essa "perseguição às cantadas" poderia impedir que a paquera acontecesse.

Mesmo com uma pesquisa que mostra que 83% das mulheres não gosta dessa abordagem, mesmo depois de vários relatos que mostram que mulheres se sentem incomodadas, ofendidas e até aterrorizadas com esse assédio, como podem essas pessoas insistirem nessa ideia de que as "cantadas" são inofensivas?

E como podem dizer que o terror que a maioria das mulheres vivem é uma paquera, quando vários relatos mostram que se você se mantem em silêncio constrangida com o assédio, o agressor profere ofensas e ameças? Como pode ser paquera sendo que uma das partes está claramente desconfortável, constrangida, incomodada e com medo da possibilidade daquela pessoa que "mexeu com ela" agredi-la? Como tamanha misoginia pode ser considerada uma forma de aproximação amorosa/sexual?
"Sua cantada me dá nojo" - Page Revolução com Fofura

O principal ponto para desmistificar o assédio como uma forma de abordagem para aproximação é que se uma das partes não demonstrou interesse em participar daquilo, não há como se falar em flerte ou paquera, porque não há mútuo interesse, não houve consentimento de uma das partes. A violação da liberdade da mulher é tamanha que as pessoas acreditam que existe um direito exclusivo para os homens de dizer para a passante o que pensa sobre o corpo dela, como se a gente andasse na rua segurando uma plaquinha dizendo "como estou hoje?". Nossos corpos não estão disponíveis para ser avaliados, nós não estamos interessadas em ouvir o que esses caras acham de nós. Somente a ideia de que é aceitável que homens desconhecidos avaliem nosso corpo e se sintam no direito de dizer o que acharam já demonstra como o espaço público ainda não é um espaço seguro para as mulheres.

Pensar que a "cantada de rua" é uma forma de elogio é ignorar a voz das mulheres que se manifestam contra essa conduta, é ignorar que mulheres tem o direito de ir e vir no espaço público sem ter seus corpos avaliados e também é ignorar que nós não precisamos da aprovação masculina.

Outra coisa que ronda o argumento do "e como fica a paquera?" é que ela se baseia numa heteronormatividade absurda. A "cantada de rua" será incômoda não só para as mulheres héteros que, pasmem, não precisam de aprovação masculina 24 horas por dia, mas principalmente para as lésbicas que sequer tem interesse em paquerar homens.

A sociedade vê a paquera como algo que deve partir do homem,  o suposto jogo da conquista que alegam que será prejudicado com essa revolta contra a "cantada" parte de uma fala masculina, que tem sido considerada incômoda pelas mulheres. Sendo assim, se vê que a ideia de conquista não está atrelada ao consentimento de ambas as partes. E deixa claro ainda que nestas situações a mulher é vista como um troféu, um objeto de enfeite e deleite. A mulher mais uma vez é desconsiderada como sujeito, ignora-se que ela tem sexualidade própria, desejos e sentimentos. É difícil para essas pessoas entender que só é paquera se há reciprocidade e consentimento. Gritar "gostosa" para uma mulher na rua não é paquera, assim como quando um colega de trabalho ou de sala de aula insiste durante seis meses em chamar a colega para sair, elogiá-la o tempo todo sem intimidade, num constante assédio que ignora que já foi dito não um milhão de vezes também não é.

O foco do que chamam de cantada, mas que na verdade é uma violência, é a manutenção e demonstração de poder. Não é paquera; se fosse, os desejos, a voz, e os sentimentos das mulheres teriam relevância e não veríamos tantas pessoas dizendo que o resultado dessa pesquisa é exagerado e tanta gente justificando essas agressões em nome de uma paquera que ignora os desejos de uma das partes.

É sintomático que diante de tantos relatos do terror que várias mulheres passam diariamente, tantas reclamações sobre essa conduta, tantas mulheres confessando o medo que sentem, ainda haja tanta gente afirmando que falar e combater o assédio no espaço público é uma bobagem. Os vários relatos de assédio não são a única uma amostra da misoginia de todo dia, a negligência com o que mulheres tem a dizer e essa insistência em nos tratar como objeto também o é.

Bons links: "Cultura do estupro no espaço público: nosso direito de ir e vir ameaçado"
"Mulheres e cantadas: uma relação de medo" 

"Quando eu ando na rua, eu não o faço para que você avalie meu corpo.Cantada não é elogio, é uma violência! E um sintoma de como a sociedade ainda não vê a mulher como gente."



quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Mulher: sujeita de si e de sua sexualidade

Indiretas feministas 


Em uma sociedade que a sexualidade feminina é colocada sempre como acessória da masculina, em mais uma afirmação da heteronormatividade vigente e também do machismo, é de se esperar que mulheres que amam/desejam/se sentem atraídas por mulheres sejam vistas como aberrações.

O fato dessas mulheres não se sentirem atraídas por homens ou apenas por homens, as coloca como indesejáveis dentro do patriarcado. A sexualidade feminina ser colocada como algo que só existe para agradar homens se desdobra em dois fenômenos muito conhecidos pelas bissexuais e lésbicas que é a transformação da sexualidade delas num fetiche para homens héteros e a negação da sexualidade delas como existentes. Como, dentro do patriarcado, a mulher não é vista como sujeita de si e nem de sua sexualidade, ao fetichizar as relações entre mulheres, coloca-se o desejo que existe entre elas como algo inexistente, como se elas estivessem relacionando entre si apenas para agradar a sexualidade masculina. Numa mesma tacada invisibiliza-se lésbicas e as bissexuais e coloca como inexistente o desejo entre mulheres ao reduzir a sexualidade delas ao fetiche masculino.

Marcha das Vadias de Curitiba
"Sou uma mulher bissexual e só passei a reconhecer minha sexualidade dessa forma com o feminismo, porque deixei de encarar o "gostar de mulher" como algo anormal e perceber o meu desejo como parte de quem eu sou. Há algum tempo atrás, estava entre algumas amigas e comentei sobre minha sexualidade e elas a desqualificaram. Foi dito, entre várias coisas absurdas, que eu não era bissexual porque eu namoro um homem e que minhas experiências com mulheres eram apenas uma fase. E não foi só isso: começaram a me interrogar sobre quantas mulheres eu já tinha ficado e quem eram elas, como se houvesse uma quantidade certa de mulheres pra eu poder me reconhecer como bissexual, porque elas só sabiam de uma das minhas vivências. Não tenho palavras pra definir o quanto me senti mal, porque além de duvidarem da minha voz e autonomia pra afirmar "sou bissexual", o interrogatório que fizeram foi num tom tão inquisidor, num tom de que duvidavam das minhas experiências e por isso queriam saber nomes. Isso me revoltou não só como mulher bissexual, mas também como "amiga". Percebi que a bifobia é presente até mesmo em grupos de pessoas que se consideram progressistas, porque o tempo todo a minha bissexualidade foi ligada ao fato de eu estar solteira, como se fosse uma fase de carência e rebeldia. Foi colocado até que provavelmente eu ficava com mulheres pra "chamar atenção". O que me surpreende é quando beijei uma mulher pela primeira vez, contei para minha mãe que eu era bissexual e ela aceitou tranquilamente e a mesma afirmação num grupo de amigas distantes nos levou para uma polêmica desrespeitosa. Vejo que a minha afirmação de que eu também gostava de mulheres incomodou tanto justamente pelo fato de atualmente eu namorar um homem. Parecia impossível para essas pessoas que mesmo num relacionamento hétero e monogâmico eu continuasse a afirmar que eu também gostava de mulher. Percebi que por mais que todas ali soubessem das minhas experiências com mulheres, isso não importava, porque elas consideravam o relacionamento com um homem como uma espécie de cura, uma prova de que "a fase passou"." - Patrícia*, nome fictício.
Via Feminista Cansada

O relato acima mostra um dos aspectos da bifobia que é a tentativa frequente de afirmar que a bissexualidade é só uma fase. No caso das mulheres bissexuais, isso se desdobra em falas como "você se relacionava com mulheres para chamar atenção", no caso, a ideia presente nessa frase é de que aquelas relações só aconteciam com finalidade de atrair a atenção masculina, justamente por causa da fetichização da relações entre mulheres.

"Eu sempre fui reservada. Associei por anos a vida afetiva e sexual ao privado, não gosto de me expor, não gosto de chamar atenção. Simplesmente é meu modo de conduzir minha vida. Então, essa ausência de companhia me alocou sempre em categorias. Ou eu era a amiga feia encalhada, ou a garota cubo de gelo, ou a estudiosa sem tempo, ou a promíscua velada, ou a sapatão, ou a má influência para as amigas comprometidas. Tantos rótulos. O que eu demorei a notar é que o pior dos rótulos era meu. Eu tinha medo de demonstrar publicamente qualquer modo de afeto por preconceito contra quem eu sou. E eu sou bisexual. Minha introversão tinha a função de blindar meus sentimentos. Não queria ser apontada como a indecisa, ou aquela que tem medo de enfrentar a sua sexualidade e, por segurança permanece em cima do muro. Sim, eu gosto de meninas. Sim, eu gosto de meninos. E não vejo o motivo pelo qual essa minha flexibilidade de gostar de pessoas incomodar outras pessoas. Num domingo desses, enquanto eu cozinhava com minha mãe, ela fez um comentário sobre o posicionamento de um primo meu. Ele deixou de usar a expressão "amigo" para convidar familiares para o casamento com seu "companheiro". No comentário ela falava em coragem. Não como algo valente, como orgulho, foi com o toque de que finalmente ele havia saído do armário.  Foi com esse tom que eu senti que não poderia me manter silente. E falei que eu gosto de meninas. Também. Bem assim, que eu somo afetos, que eu não excluo gêneros. A reação dela foi de choque seguido de imediato questionamento "você pratica isso?". A cara de nojo que ela fez me reduziu a uma afrontadora. Que eu poderia ser quem eu sou, escondido, sem que ela saiba de qualquer detalhe que lhe cause ojeriza. Desde então não falamos sobre, mas a cada saída minha, quando eu durmo fora, ela procura reforçar que não confia em mim, nas pessoas com as quais eu me relaciono e meus amigos. Ela reverteu isso tudo para um ataque pessoal. A filha rebelde que não nasceu para dar a ela os netos desejados. A filha dela que não nasceu para casar no altar vestida de branco. A filha dela que a envergonharia caso aparecesse com uma outra moça.Parece que é impossível para ela aceitar que a filha que a ama, e que espera pelo amor de volta, possa também amar outras mulheres. Que essas duas formas de amor não podem coexistir em mim." - Bárbara*, nome fictício. 
Mais um relato e mais uma faceta de como age a discriminação. O caso acima relatado expõe como qualquer orientação sexual diversa da hétero é vista em nossa sociedade, como uma mancha na honra da família, uma vergonha. É comum ouvir pessoas falando que até aceitam pessoas não héteros, desde que elas vivam sua sexualidade só entre quatro paredes e afins. A frase tem a intenção de passar uma ideia de aceitação do outro, mas na verdade só passa a mensagem de que a sexualidade não hétero deve ser escondida, pode até existir, desde que não seja exposta, desde que os envolvidos não andem de mãos dadas na rua, beijem em público, se definam como companheirxs.

"São Paulo, Praça Roosevelt, 21 de junho de 2013. Estava com um grupo de pessoas próximas que protestavam contra o projeto de lei que propunha a autorização da Cura Gay por psicólogos. Vi a alegria das pessoas se esvaziar em minutos. Nossos celulares alertavam de um perigo: supostamente um grupo de neo nazistas estava se dirigindo ao ato para causar confusão. A comoção, ao menos no grupo que eu compunha, foi geral. Eu vi amiga chorando. Eu vi pessoas criando estratégias para não sofrer qualquer tipo de violência física. Conversas e gargalhadas, que estavam prometidas para o pós ato, foram trocadas por um esquema de abandonar o local em grandes blocos. Tentando não transparecer nessa atitude nossos medos e nossa orientação sexual.Um ato que era para celebrar nossa diversidade, demonstrar o absurdo que é a tentativa de cura para pessoas que só sofrem pelo preconceito alheio. Um ato derrotado pelo medo. Até quando teremos que ocultar nossa existência em prol do preconceito alheio? Não quero mais sentir medo." - outro relato de Bárbara*, nome fictício. 
O medo também ronda a realidade das mulheres que se relacionam com mulheres. Ele existe em casa, na hora de dizer para a família sua sexualidade, no medo dos pais descobrirem e ser expulsa de casa. Existe na rua, na hora de voltar para casa, na hora de sair com a companheira. Existe dentro de estabelecimentos, quando todo mundo ao seu redor pode se beijar, dar as mãos e se você o faz recebe olhares tortos de muitos e às vezes até "convites" para se retirar do lugar. Existe quando dizem "você precisa de um homem pra te consertar", como se a orientação sexual que difere da hétero fosse algo a ser consertado e curado, e ainda usando uma frase que é um dos pensamentos base do estupro corretivo.



O medo existe, mas a luta continua e é necessário dar a ela visibilidade para fortalecê-la. Cada relato é uma forma de expor as nossas vivências, denunciar as discriminações sofridas e argumentar contra a lesbofobia, bifobia, homofobia e transfobia. Relatos são uma forma de quebrar a invisibilidade que cerca as relações entre mulheres, é dizer que não concorda com Felicianos e Malafaias da vida. 

Esse texto faz parte da 1ª Semana de Blogagem Coletiva pelo Dia da Visibilidade Lésbica e Bissexual, convocada pelo True Love.


terça-feira, 20 de agosto de 2013

Os estupros da Bolívia: cultura do estupro, perdão forçado.

*Trigger Warning* :  este texto expõe um cenário de extrema violência contra a mulher.

Saiu no feministe e, como o artigo era imenso, eu fui adiando a leitura. Até que sábado eu resolvi fazê-la. Confesso que o mal-estar foi tanto que a primeira coisa que pensei em fazer foi traduzir o texto. Diante da impossibilidade de traduzir um texto tão imenso (sério, acho que eu ia levar dias pra conseguir fazer algo decente), resolvi então escrever a respeito. Traçando um paralelo com um assunto que vem sendo bastante discutido entre as feministas brasileiras: o perdão. 

Não pretendo aqui entrar no mérito da religiosidade ou não do perdão. Se tal atitude é um valor humano universal, ou se ela é meramente um artefato das religiões para trazer alguma paz ao coração de quem sofreu algum mal, não importa. O que eu quero dizer aqui é que, independentemente da raiz do perdão, o apelo a ele é muito forte e nós, feministas, precisamos discutir e problematizar o assunto de forma mais profunda. 



Voltando ao artigo. Pelo título, "Estupros-fantasma da Bolívia", já podemos imaginar o que vem pela frente. Um denso relato de estupros em uma comunidade religiosa da Bolívia. Um relato que não deixa dúvidas quanto à capacidade humana de cometer atrocidades. Por anos a fio, mulheres da comunidade acordavam ensanguentadas, com as roupas rasgadas e as camas sujas de terra e de sêmem. Elas não conseguiam se lembrar de praticamente nada e, quando muito, lembravam-se que estavam sendo atacadas, mas não tinham forças para lutar contra o estuprador. 

A comunidade, de religiosos menonitas (algo parecido com os Amish dos Estados Unidos), inicialmente não acreditara nos relatos da primeira mulher que resolveu abrir a boca a respeito. Como acontece com praticamente toda mulher que é estuprada nesse mundo, duvidaram da legitimidade de tais estupros. Chegaram a cogitar que ela estava era de "namorico" pela cidade. Os ataques, porém, não só não cessaram, como se tornaram cada vez mais violentos. Crianças e mulheres de todas as idades eram brutalmente violentadas, sempre à noite, sempre dormindo. 

As mulheres da cidade estavam vivendo uma situação absolutamente nefasta de terror, e alguma explicação precisava ser dada a respeito. Obviamente que, por se tratar de uma comunidade religiosa (cristãos protestantes de origem alemã - inclusive utilizam o baixo-alemão para se comunicarem por lá), a explicação viria carregada de misticismo: o demônio estaria estuprando essas mulheres. E tudo estaria sendo feito por vontade de Deus. Ou seja, se o todo-poderoso estava enviando a provação, era porque elas deveriam aguentar firmes. 

Só se sabe que a situação estava tão absurda que o bispo local resolveu então pedir ajuda às autoridades bolivianas (que geralmente não se metem nas questões internas da comunidade, nem mesmo em casos de crimes, salvo assassinatos, pelo que entendi). Descobriu-se que um grupo de homens pertencentes à comunidade estavam por trás dos estupros. Usando um spray. Agora vou traduzir um parágrafo do texto para que vocês tenham noção dos requintes de crueldade: 

"Então, numa noite de junho de 2009, dois homens foram pegos tentando entrar em uma casa da vizinhança. Os dois delataram alguns amigos e, como um dominó que cai, um grupo de nove homens de Manitoba, de idade entre 19 e 43, acabaram confessando que eles vinham estuprando famílias da colônia desde 2005. Para incapacitar as vítimas e suas possíveis testemunhas, os homens usaram um spray criado por um veterinário de uma comunidade Menonita vizinha, que ele adaptara de um produto químico utilizado para anestesiar vacas. De acordo com as confissões iniciais (que foram negadas posteriormente), os estupradores admitiram que - às vezes em grupos, às vezes sozinhos - eles se escondiam do lado de fora das janelas dos quartos à noite, jogando o spray com a substância pelas janelas para drogar famílias inteiras, e depois entravam nas casas."

Acho que esse relato já seria assombroso se parasse por aí. Mas ele continua. E piora de um jeito que não tem como não pensar em um roteiro de filme de terror. Vou resumir: o governo da Bolívia ofereceu ajuda psicológica às vítimas. O bispo negou a ajuda. Só que ele não só não deixou que elas buscassem auxílio, como obrigou-as a PERDOAR os estupradores. Porque, segundo ele, se elas não perdoassem os estupradores, deus não as perdoaria. Acontece que não é "só" isso. A jornalista que fez a reportagem também fala em incesto. 

Para piorar a vida dessas mulheres, elas TAMBÉM são estupradas dentro de casa. Por irmãos. Pais. Parentes. Gente em quem elas deveriam confiar, sabe? E os relatos dizem que é "normal" serem molestadas, e quando elas levam isso às autoridades (ou seja, bispos e pastores), eles investigam, confrontam o estuprador, que se diz arrependido e voilá! Se ele se arrependeu, minha filha, sua obrigação como cristã é PERDOAR. E elas perdoam. E voltam para casa com seus algozes que agora tomarão cuidado redobrado para não serem pegos novamente. A união e estrutura familiar permanecem intactas. E os crimes continuam acontecendo. Pelo jeito, até hoje. 

Não tem como ler um texto desses e não se sentir impotente. Não tem como não emputecer. A questão maior que eu queria colocar aqui e não sei se vou dar conta é: até que ponto esse microcosmo não está aí nos ensinando o que acontece, sem tirar nem por, na nossa sociedade "aberta"? Até que ponto o perdão é realmente algo que deveríamos almejar? 

Porque sabe, a cultura do estupro já perdoa os estupradores, de antemão. Ao afirmar que a culpa é da vítima. Ao colocar mulheres não como seres humanos, mas como criaturas ardilosas, naturalmente programadas para representar uma tentação na vida dos homens. Não obstante, mulheres de todos os tipos, das consideradas "putas" às "santas", são violentadas. A situação de violência contra a mulher é epidêmica e a cultura do estupro permanece intacta. Bem como a cultura do perdão. 

A dinâmica é bem simples, e bem danosa também. Somos criadas, desde muito cedo, a almejar sentimentos nobres. Nenhum problema aí. Acredito sim que sentimentos nobres precisam guiar as vidas das pessoas. Entretanto, uma análise da forma como tais sentimentos são encorajados leva a crer que estamos falhando miseravelmente no quesito justiça. Porque sempre, repito, SEMPRE, o sentimento de culpa é inculcado na vítima, e não no agressor. Porque quem não perdoa é vista como uma pessoa má pela sociedade. 

Somos criadas em uma cultura que diz que é possível transformar sapo em príncipe. Somos levadas a crer que o amor é a solução para tudo, inclusive para relações violentas. Portanto, em um contexto desses, eu acho complicado falar em vitimização do opressor. Entendo que a humanidade é vítima de todo um sistema criado para aparentemente proteger mulheres e crianças (afinal, é essa a desculpa que ouço desde que me entendo por gente para justificar a opressão desses dois grupos). Entretanto, é inegável que o ônus maior desse sistema (que não funciona) recai sobre as mulheres.

Portanto, diante do exposto acima, fica as perguntas: faz algum sentido dar voz e vez ao discurso do perdão em espaços feministas? Será que um foco maior na busca por justiça, deixando de lado o perdão, que silencia a vítima e não resolve o problema, não seria a melhor saída? Que tipo de sociedade queremos construir (para nós e para as gerações vindouras): uma que efetivamente busca a justiça, ou essa em que o discurso pretensamente suave do perdão continua a manter tantas vítimas em silêncio?

A mulher estuprada já carrega uma carga pesadíssima de culpa, na nossa sociedade. Enfatizar o discurso do perdão é fazê-la carregar a culpa de não conseguir perdoar, de querer se vingar, de odiar, juntamente com toda a culpa que a sociedade já deposita nela. Lutar pelas mulheres significa entender muitas coisas que se passam com elas. O ódio, inclusive.

Para quem se interessou pelo caso, o artigo está bem mais completo e pode ser lido em inglês, aqui.

Por Flávia Simas com colaboração de Thaís Campolina. 

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Porta dos Fundos: transfobia no humor não causa riso, perpetua preconceitos.


Por Flávia Simas e Thaís Campolina  




A invisibilidade das pessoas trans* e suas questões, como a busca pela despatologização da transexualidade, como a luta pelo reconhecimento do nome social, contra a violência com motivações transfóbicas e pelo respeito no mercado de trabalho é um fato. A mídia e a sociedade praticamente não dão espaço para tratar sobre o tema da transexualidade e raramente é possível ver matérias que tratem do assunto de forma séria e sem transfobia. 

Um erro muito comum em várias matérias jornalísticas é colocar a pessoa transexual que foi vítima de um crime como vítima de homofobia e não de transfobia, o que demonstra uma clara confusão a respeito de orientação sexual e identidade de gênero. O uso de pronome masculino ao se referir às travestis e identificar a pessoa trans pelo nome que ela não identifica como seu também são recorrentes. Os erros citados são demonstrações de transfobia e reiteram esse preconceito.

Além dessa invisibilidade que se constrói em cima da marginalização das pessoas trans*, é muito comum que as pessoas transexuais só sejam lembradas num momento: para fazer piadas a respeito de sua identidade, o que é uma forma de manter a marginalização. O programa virtual Porta dos Fundos é um exemplo recente disso. 



Não é de hoje que o Porta dos Fundos decepciona a gente. É de se surpreender que um programa que tem tanta visibilidade e que é visto por muitas pessoas como uma nova forma de humor esteja fazendo mais do mesmo. É frustrante perceber que, embora possamos ver alguma novidade em alguns vídeos, eles estejam errando tanto a mão, e de forma tão grosseira. 

E o que seria fazer mais do mesmo? Seria utilizar do velho humor que expõe e humilha grupos oprimidos. Mais uma vez temos um programa que não se propõe exatamente a ser libertador, mas apenas a vender um produto, que, apesar de soar moderninho, não faz nada muito diferente do que os "humoristas" do Zorra Total têm feito há anos, ou seja, rir das minorias. 

Há vários aspectos que podem ser levados em consideração ao analisarmos, por exemplo, o vídeo "Casal Normal", do canal Porta dos Fundos (por respeito às pessoas trans, não linkaremos o vídeo aqui). Primeiro, sobre a questão da arte em si: qual o limite da arte? Deveríamos pautá-la? Até que ponto a arte pode se dar ao direito de ser politicamente incorreta? 

Acreditamos que a arte, em si, não deveria ser pautada. Entretanto, entendemos que a arte não acontece num vácuo. Há sempre um contexto que precisa ser levado em consideração, e se a arte se decide por seguir o caminho mais fácil, ou seja, o que perpetua o status quo, ela reafirma as desigualdades. Mas, deveria a arte se preocupar com isso? Gostaríamos que não. Porque gostaríamos, na verdade, que reforçar preconceitos não fosse um produto tão rentável. 

É no mínimo curioso que uma arte que apenas repete o que vem sendo feito desde sempre tenha a seguinte descrição: "PORTA DOS FUNDOS é um coletivo criativo que produz conteúdo audiovisual voltado para a web com qualidade de TV e liberdade editorial de internet." Porque basta assistir ao vídeo "Casal Normal", que por falar nisso não é o primeiro vídeo transfóbico do coletivo, para percebermos que a criatividade em questão tem seus limites. Ou seja, o limite é o da rentabilidade de um riso fácil e sem comprometimento com a realidade brutal que afeta milhões de pessoas trans mundo afora. Tal "liberdade editorial de internet" limita-se, assim como a televisão, àquilo que o "povo quer". E o povo quer rir. 

Tratemos então, do segundo ponto, ou seja, o riso. Acreditamos que nenhuma argumentação nossa aqui surtirá mais efeitos que o documentário O riso dos outros. Dessa forma, aconselhamos quem ainda não assistiu ao filme que o faça o quanto antes. Por ora, é necessário refletirmos acerca de um fator que primordialmente caracteriza o riso: a insensibilidade. Para que o riso aconteça, é necessário não apenas um distanciamento da outra pessoa, objeto do humor, mas também uma boa dose de crueldade. Ou, como diria Bergson, é preciso "uma anestesia momentânea do coração". Ainda segundo Bergson, de forma geral o riso acontece a partir do defeito alheio. Rir daquilo que não nos parece "normal" é exatamente o que faz com que uma piada "dê certo". 

No nosso entendimento, é aí que está o problema. As minorias são alvo fácil do humor justamente por se encaixarem naquilo que o senso comum considera como "anormal". É aceitável rir de alguém que não se parece com você. Em uma sociedade em que as minorias são tão marginalizadas e em que há uma negação 1. do problema e 2. da própria realidade de dor dessas minorias, é um tanto fácil ganhar rios de dinheiro reforçando negativamente a diferença. E sair pela tangente, afirmando que vai fazer piada com aquilo que o povo quer ouvir. Efeitos de uma sociedade em que o lucro precede a humanidade das pessoas. E o direito fundamental e humano que tais pessoas possuem de serem respeitadas. 

A arte e o humor podem e devem ser criticados caso reafirmem o status quo e se baseiem em humilhar um grupo de pessoas. Mas é comum que as pessoas coloquem o humor num patamar inalcançável a críticas e ignorem que a suposta piada se baseia em desrespeitar pessoas, ignorar fatos sociais, reafirmar padrões e preconceitos. 

Imagem retirada da page Transexualismo da Depressão
Infelizmente há vários exemplos de piadas transfóbicas, a maioria delas faz questão de desrespeitar a identidade de gênero da pessoa trans. Ariadna, ex-bbb, foi vítima de várias agressões no dia do homem, por exemplo, com essa desculpa de que era humor. A última imagem extremamente transfóbica que vimos ser discutida na internet tinha o seguinte título "Prós e contras de se namorar um travesti", desde a leitura da chamada a gente percebe que a mulher trans é mais uma vez tratada no masculino, tendo assim sua identidade de gênero desrespeitada. Além disso, a "piada" reafirma padrões de gênero e ainda tem o absurdo "se você bater nela, ela não vai poder ir na delegacia das mulheres", que além da clara transfobia, é uma frase extremamente misógina. Não tem nada de engraçado em ridicularizar mulheres trans*, muito menos em colocar a violência contra elas como algo ok e que pode ficar impune. 

Fazer humor não é proferir discursos de ódio como se isso fosse engraçado. Isso é agressão. E ignorar esse aspecto de violência desse tipo de "piada" que citamos é banalizar as mortes motivadas pela transfobia, é contribuir para que o desrespeito contra as pessoas trans no ambiente de trabalho, na rua, em casa, na faculdade, na escola, continue acontecendo e tal grupo permaneça sendo tratado com negligência.

Quanto ao vídeo "Casal Normal", reiteramos nosso repúdio ao mesmo, pois ele colabora para a manutenção da transfobia. A partir do momento em que se brinca de forma tão irresponsável com questões sérias e que urgem por uma reflexão de toda sociedade, o humor não é mais humor, e sim maldade. O vídeo é praticamente inteiro transfóbico, mas cabe destacar duas situações especialmente tensas: 1. o reforço da idéia de que a transexualidade é algo que não pode ser explicado às crianças (a velha pergunta 'e as crianças' entrando em ação, para cimentar a noção de que pessoas trans são bizarras e, portanto, cômicas); 2. a insistência do diretor da escola em saber qual era o nome "real" dessas pessoas, em uma clara demonstração de desrespeito à verdadeira identidade das mesmas. 

Por fim,  quem diz que a crueldade é uma condição sine qua non para a existência do humor, parece se esquecer que tal crueldade pode ser dirigida a grupos que não se encontram em situação de vulnerabilidade. Um humor que não destrua ainda mais a vida dessas pessoas é possível. E há humoristas que conseguem captar isso, como o documentário O Riso dos Outros bem atesta.  

Indiretas feministas


Um texto brilhante que esmiúça todas as nuances transfóbicas do vídeo em questão pode ser lido aqui. E um relato pessoal de Flávia acerca de cissexismo e transfobia pode ser lido aqui