terça-feira, 25 de novembro de 2014

Machismo e a naturalização da violência psicológica

Esse meu texto foi publicado no site Maria Conta. Pedi para republicá-lo no blog por causa do dia 25 de novembro ser o dia internacional de combate à violência contra mulher. O projeto Maria Conta é uma homenagem aos 8 anos da Lei Maria da Penha. É uma plataforma que visa reunir informações relevantes sobre a lei e investigar o que mudou de lá pra cá. Para isso, os organizadores do site, que são alunos do curso de Comunicação Social da UFMG, conversam com juízes, pesquisadorxs, mulheres que já utilizaram a lei, ou qualquer pessoa que tenha relação com o tema e que queira se expressar de forma livre. O projeto também tem página do facebook, confira aqui.

"Não existe mulher que gosta de apanhar. O que existe é mulher humilhada demais para denunciar,
machucada demais para reagir, com medo demais para acusar e pobre demais para ir embora"
A criminalização da violência doméstica no país, através da Lei Maria da Penha, aconteceu após o Brasil ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por negligenciar e ser omisso com a violência contra a mulher. A importância da lei específica é inegável, porque foi a partir dela que o pensamento “em briga de marido e mulher, não se mete a colher” passou a ser mais questionado. Ao criminalizar agressões domésticas contra mulheres, um comportamento usualmente visto como um problema privado e apenas uma briga de família, passou a ser tratado como uma questão pública.
Só que a Lei Maria da Penha, após os oito anos de existência, não se mostrou suficiente para solucionar o problema da violência doméstica. Os aspectos culturais machistas e misóginos continuam vigentes e eles não estão dissociados da violência em si.
A romantização de relacionamentos abusivos que se baseiam em controle e ciúme se faz presente e acaba por naturalizar comportamentos problemáticos que podem evoluir para a violência física. Novelas apresentam homens ciumentos, controladores e possessivos como galãs. Essa romantização acaba por perpetuar que o amor é indissociável da ideia de posse e isso é tão questionável porque uma das motivações mais comuns para o feminicídio é o ciúme.
O uso do termo “crime passional” relativiza assassinatos cometidos contra mulheres motivados pela misoginia. Ao vincular o amor e a paixão ao cometimento de crimes perpetua-se que controle, ciúme e posse fazem parte do amor e que os agressores ao assassinarem suas companheiras ou ex-companheiras, o fizeram por estarem “doentes de paixão”.
O controle e a posse partem da concepção de que mulheres são propriedades de seus pais e maridos, o que é uma forma de desumanização. Ainda hoje, mulheres são cobradas a serem submissas aos homens e a violência doméstica muitas vezes se manifesta com justificativas que partem do pensamento que a mulher deve servir e que se ela não obedeceu, ela merece uma lição.
O ciclo da violência doméstica é difícil de ser quebrado por causa dos vários aspectos culturais, sociais e econômicos que estão naturalizados em nosso cotidiano. O controle das roupas, dos lugares que a mulher frequenta e a violência psicológica que se manifesta com incessantes ataques verbais ao corpo e comportamento da parceira é a primeira fase desse ciclo tão difícil de ser destruído. Comportamentos como esses descritos são muitas vezes vistos como parte de relacionamentos considerados “normais”.
A violência psicológica, que é uma das violências que a Lei Maria da Penha tem a intenção de coibir, é ainda vista como aceitável. Essa aceitabilidade se pauta na visão de que a mulher deve ser submissa ao homem, por ser inferior a ele. Deve-se também ao fato de que se espera determinados comportamentos de uma mulher, como falar baixo, usar roupas comportadas, cuidar da casa e dos filhos. A violência muitas vezes é justificada pelos agressores com argumentos como “ela saiu da linha”, “eu sei o que é melhor para você” e frases que tem intenção de atacar a autoestima da mulher para que ela acate o que se espera dela, através do uso de frases como “você não me ama o suficiente” e “eu vou me cansar de suas frescuras e você ficará sozinha, ninguém vai te querer”.
A dependência emocional é construída dentro e fora do relacionamento. Ainda hoje há a cobrança, através de costumes, para que a mulher tenha um parceiro, para que se case com um homem, constitua família. Uma mulher sozinha, além de ser vista como desagradável e mal amada, ainda é desqualificada por não ter um parceiro. Os costumes dizem que a mulher deve manter o homem apaixonado e a culpa por qualquer falha no relacionamento é considerada sempre dela. Ela é colocada como a responsável pela manutenção da harmonia ali. É quase um ditado popular a frase “quem não tem em casa, procura fora” que coloca a culpa da traição em cima da mulher, além de influenciar que uma pessoa numa situação de vulnerabilidade, sinta-se coagida a práticas sexuais que não tem vontade.
"Na violência contra a mulher
a gente mete a colher"
Mesmo ao sair de um relacionamento abusivo, o rompimento é visto como um fracasso da mulher que falhou na obrigação de manter a estrutura familiar. Assim como as agressões são vistas como motivadas pelo comportamento da própria vítima, o rompimento também é carregado de culpa. Essa culpa é resultado da violência psicológica a que a mulher foi submetida e é alimentada pela culpabilização da vítima feita em todos os âmbitos sociais, incluindo o Judiciário e a Polícia.
A violência psicológica é tão naturalizada que sequer é percebida como um mal dentro de um relacionamento. O machismo normaliza comportamentos perigosos e para coibir a violência doméstica e outras violências contra a mulher é necessário que se combata com veemência os aspectos culturais que reproduzem dinâmicas de opressão. Além de melhorar a aplicação da Lei Maria da Penha em si, aumentar o número de delegacias especializadas e proporcionar um atendimento 24 horas, treinar os policiais e profissionais de saúde que prestam o atendimento às vítimas e outras ações, também é necessário viabilizar políticas públicas que combatam o problema desde a raiz, que é o machismo simbólico  que nos é ensinado desde crianças.

Publicado originalmente aqui.


segunda-feira, 27 de outubro de 2014

40 escritoras para ler antes de morrer

A literatura é um espaço predominantemente branco, masculino e hétero. As listas de leitura obrigatória das escolas e de livros premiados são uma amostra de como mulheres escritoras são desvalorizadas pelas editoras e às vezes pelos próprios leitores. Clarice Lispector e Cecília Meireles, por exemplo, são os poucos nomes femininos que aparecem listados. 

Como mulheres sequer são vistas como sujeito, a literatura escrita por elas é muitas vezes definida como "livros para mulheres", como se mulheres não fossem capazes de escrever livros tão bons e interessantes como homens e como se o que é escrito por mulher não fosse digno de atenção da ala masculina. J. K. Rowling, autora da saga Harry Potter e do livro "A morte súbita", recebeu o conselho da editora de usar suas iniciais para assinar seus livros para que assim eles também atraíssem a atenção masculina e vendessem mais.

Como os livros escritos por mulheres são vistos como componentes da chamada "chick list", até mesmo a arte das capas desses livros refletem estereótipos de gênero. Numa sociedade misógina como a nossa, capas delicadas, baseadas em normas de gênero, por exemplo, não atrairão um público tão amplo já que muitas pessoas querem se afastar ao máximo do que é considerado culturalmente como feminino. 

Quando falamos sobre a baixa representatividade de escritoras mulheres ou de escritores negros, sempre ouvimos que mulheres, sejam negras ou brancas, e homens negros são mais raros nesse mundo bem restrito por "incapacidade" e não pelos motivos reais, que são a falta de oportunidade e até mesmo o apagamento dado aos membros desses grupos nos livros de história e literatura. 

Diante desse cenário, projetos como a Alpaca Editora e Lendo Mulheres, que buscam incentivar a leitura de autoras, são essenciais. Se você é uma pessoa que está interessada em ler mais obras escritas por mulheres, quer valorizar "as minas", mas não sabe por onde começar, seus problemas acabaram! Fique com essa lista de nomes de escritoras e suas principais obras:
35 escritoras e suas principais obras

Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus
Carolina Maria de Jesus foi uma mulher negra e brasileira que teve um de seus livros traduzido para 13 idiomas. Sua obra mais conhecida é "O quarto de despejo", um livro que é um diário que conta o cotidiano e as reflexões dela como mulher pobre e negra vivendo nos anos 50 numa cidade grande. Outras obras: "Pedaços da Fome" e "Casa de Alvenaria". 

Anne Rice escreve séries de livros de terror e fantasia. Seu maior sucesso literário é "Entrevista com o vampiro" que foi adaptado posteriormente ao cinema. Outras obras: "A rainha dos condenados", "Tempo dos anjos", "Os lobos da invernia" e "A dádiva do lobo".

Alice Walker escreveu "A cor púrpura", livro premiado com o Pulitzer e que foi adaptado para o cinema. Outras obras: Vários livros de poesia, romance e não ficção em inglês, como por exemplo: Once, Meridian e outros, mas em português sei que foi publicado no Brasil: "O templo de meus familiares", "Vivendo pela palavra" e "Rompendo o silêncio".

Ana Cristina César foi uma poetisa brasileira. Conheci um pouco de sua obra no livro "26 poetas hoje", uma coletânea de vários poetas e poetisas de uma época. Obras: "Luvas de Pelica", "A teus pés", "Inéditos e dispersos" e outros. É possível adquirir o livro "Ana Cristina César - Poética" que contem toda sua obra reunida. 
Chimamanda Adichie

Alice Ruiz escreveu 21 livros, entre eles poesias, haikais, traduções e até uma história infantil. Recebeu o prêmio Jabuti pela obra "Dois em um". Também compõe letras de músicas. Obras: "Nuvem feliz", "Desorientais", "Dois haikais", "Estação dos bichos" e outros. Confira as outras obras nesse link

Chimamanda Adichie é uma escritora nigeriana e muito conhecida pela sua palestra no TED sobre "O perigo das histórias únicas" e "Todos nós deveríamos ser feministas". Ganhou ainda mais notoriedade quando seu discurso sobre feminismo foi incorporado na música Flawless da Beyoncé. Obras: "Americanah", "Hibisco roxo", "Meio sol amarelo"

Léonora Miano nasceu em Camarões e se naturalizou francesa. Foi a primeira autora de origem africana a ganhar o prêmio Femina. Obras traduzidas: Até então só achei "Contornos do dia que vem vindo". 

Louisa May Alcott escreveu obras infanto-juvenis. Obras: "As quatro irmãs", "As filhas do Dr. March" e "Mulherzinhas".

Marguerite Duras escreveu peças de teatro, novelas, filmes e narrativas curtas. Obras: "O amante", "O amante da China do norte" "Barragem contra o pacífico" e "Cadernos da Guerra e outros textos".

Xinran
Xinran é uma chinesa que publicou vários livros, o título "As boas mulheres da China" conta diversas histórias de mulheres que ela entrevistou e mostra as dificuldades das chinesas quanto ao machismo. Outras obras: "Enterro Celestial", "Mensagens de uma mãe chinesa desconhecida", "O que os chineses não comem", "As filhas sem nome" e "Testemunhas da China". 

Mary Shelley é autora do clássico da literatura Frankenstein e sua obra "O último homem" tem muita influência no mundo da ficção científica. Outras obras: "Mathilda" e "Lodore".

Regina Navarro Lins é autora de 11 livros e escreve sobre relacionamento amoroso/sexual. Obras: as mais conhecidas são "A cama na varanda" e "O livro do amor". 

Ava Dellaira publicou seu primeiro livro, nomeado no Brasil de "Cartas de amor aos mortos". No momento trabalha na indústria cinematográfica, enquanto escreve sua segunda obra. "Cartas de amor aos mortos" conta a história de uma menina que perdeu a irmã mais velha. Prestes a iniciar o ensino médio, ela resolveu mudar de escola para fugir das pessoas comentando o falecimento, mas no colégio novo, a professora propõe a tarefa de escrever uma carta para alguém que já morreu.

Adélia Prado é uma poetisa que nasceu e vive em minha cidade, Divinópolis. Obras: "O Pelicano", "O homem da mão seca", "Terra de Santa Cruz", "Manuscritos de Felipa" e outros.

Marjane Satrapi é uma romancista gráfica que nasceu em Teerã, no Irã. Obras em português: "Persepolis", "Frango com ameixas" e "Bordados". 

Suzane Collins escreveu a saga "Jogos Vorazes" e criou uma personagem feminina incrível que é a Katniss Everdeen. A saga é dividida em três livros e os dois primeiros já foram transformados em filmes. Obras: ela também escreveu "As crônicas do subterrâneo", que é composto por cinco livros.

Lionel Shriver é jornalista e escritora. Escreveu "Precisamos falar sobre Kevin", livro posteriormente adaptado para o cinema. Outras obras traduzidas para o português: "O mundo pós-aniversário" e "Tempo é dinheiro" (Título original: "So much for that").

Maya Angelou tem uma vasta obra, mas infelizmente parece não haver muitos livros dela traduzidos para o português. Só achei o "Carta a minha filha", mas para quem lê em inglês, cito "On the pulse of morning", "I know why the caged bird sings" e "The heart of a woman".

Marina Colasanti publicou 33 livros. Alguns contos, histórias infantis e poesia. Obras: "Hora de alimentar serpentes", "Uma idéia toda azul, "Minha guerra alheia", "Poesia em 4 tempos" e outros que você pode conferir nesse link aqui.

Simone de Beauvoir

Simone de Beauvoir foi escritora e filósofa. Muitas pessoas acham que a única obra de Simone foi "O Segundo Sexo" e só a conhecem como feminista e não sabem que ela também escreveu romances. Outras obras: "Os Mandarins", "A convidada", "A cerimônia do adeus", "A longa marcha", "A mulher desiludida" e "As belas imagens".

Anaïs Nin é um nome para quem gosta de literatura permeada de um certo erotismo. Obras: "Pequenos Pássaros", "Delta de vênus" e "Fogo".

Carola Saavedra é uma escritora e tradutora que nasceu no Chile, mas veio para o Brasil aos três anos de idade. Recebeu o prêmio APCA de melhor romance pelo livro "Flores azuis". Obras: "Flores azuis", "O inventário das coisas ausentes", "Toda terça", "Paisagem com dromedário" e "Do lado de fora". 

Charlaine Harris escreveu a série "The Southern Vampire Mysteries" que conta as aventuras de uma garçonete telepata que é amiga de vampiros, lobisomens e outras criaturas estranhas. A série True Blood é baseada nessa série de livros. Outras obras: série "Aurora Teagarden" e série "Shakespeare".

Cora Coralina foi uma poetisa e contista brasileira. Obras: "Meu livro de cordel", "Tesouro da Casa Velha", "A moeda de ouro que o pato engoliu", "Vintém de cobre - meias confissões de Aninha".

Virginia Woolf
Virginia Woolf foi uma das representantes do modernismo, escritora, editora e feminista. Pra mim a principal característica de sua escrita, é que cada linha diz mais do que aparenta dizer. Escreveu "Um teto todo seu", "As Ondas", "Noite e dia", "Mrs. Dalloway", "Orlando", "Quarto de Jacob" e outros. 

Elvira Vigna é uma escritora, ilustradora e jornalista brasileira. Já recebeu o Prêmio Jabuti como ilustradora e como escritora de livros infantis. Ela começou sua carreira escrevendo literatura infanto-juvenil, mas hoje tem romances e contos publicados fora desse nincho. Seu livro "Nada a dizer" recebeu o prêmio de ficção da Academia Brasileira de Letras. Outras obras: "Por Escrito" e "O assassinato de Bebê Martê". Conheça mais títulos no seu site pessoal

Jane Austen foi uma escritora inglesa que hoje é considerada autora de obras clássicas. Suas obras mais conhecidas são "Orgulho e Preconceito" e "Razão e Sensibilidade", visto que foram adaptadas para o cinema. Outras obras: "Persuasão", "Emma" e "Mansfield park".

Eliane Brum é jornalista, escritora e documentarista. Escreve em alguns portais jornalísticos brasileiros como colunista, mas já se enveredou também para o mundo dos romances ao escrever "Uma Duas". Obras: "A vida que ninguém vê", "A menina quebrada" e "Meus desacontecimentos".


Conceição Evaristo
Conceição Evaristo é uma escritora brasileira que conciliou os estudos com o trabalho de empregada doméstica. Suas obras abordam temas como discriminação racial, de gênero e de classe. O romance "Ponciá Vicêncio" foi traduzido para o inglês e publicado nos EUA. Outras obras: "Becos da Memória" e "Insubmissas lágrimas de mulheres".

Lygia Bojunga é uma escritora brasileira que escreve literatura infantil e infanto-juvenil. Sua obra já foi traduzida para 13 idiomas, entre eles japonês, sueco e espanhol. Obras: "Corda Bamba", "Retratos de Carolina", "O sofá estampado" e "Os colegas".

Toni Morrison recebeu o Nobel de Literatura em 1993. Seus romances retratam a vida de mulheres negras nos EUA. Seu livro "O olho mais azul" é um verdadeiro estudo de raça e gênero. Obras: "Paraíso", "Jazz", "Amada", "Amor" e "Tar Baby".

Paulina Chiziane
Paulina Chiziane nasceu em Moçambique e foi a primeira mulher de seu país a publicar um romance. Obras: "Balada de amor ao vento", "Niketche: uma história de poligamia", "O alegre canto da Perdiz" e "Ventos do apocalipse" 

Nadine Gordimer publicou mais de trinta livros e foi uma das vozes sul-africanas contra o apartheid. Seus livros ganharam notoriedade internacional e ela recebeu um Nobel de Literatura em 1991. Obras: "O melhor tempo é o presente", "O engate", "De volta à vida" e "Contando histórias".

Lygia Fagundes Telles é uma escritora brasileira que já ganhou o Prêmio Camões. Obras: "Ciranda de Pedra", "Verão no Aquário", "As horas nuas", "O cacto vermelho", "Seminário de ratos" e "Antes do baile verde".

Cristiana Sobral é atriz e escritora. Obras: "Cadernos Negros", "Não vou mais lavar os pratos" e "Espelhos, miradouros, dialéticas de percepção".

Mais cinco escritoras feministas brasileiras da atualidade

Aline Valek
Aline Valek é uma escritora feminista brasileira. Você pode acompanhar o trabalho dela através do seu site ou mesmo assinar a newsletter "Bobagens Imperdíveis". Um dos textos dela que eu faço questão de indicar se chama "Apoie a escritora" e fala sobre o livro "Um teto todo seu", escrito pela Virginia Woolf. Nesse texto, Aline mostras as dificuldades baseadas em machismo e misoginia enfrentadas pelas escritoras. Outras indicações: "Gatos são mulheres que não se dão ao respeito", "Quem me estuprou", "Corpo que", "Troca de mensagens", "A escola me ensinou", "Dentucismo" e "Descobri que meu gato é deus"

Lady Sybylla é uma entusiasta da ficção científica. Também é feminista, professora e geográfa, além de blogar no site "Momentum Saga". Junto com a Aline Valek organizou uma coletânea de contos chamada "Universo Desconstruído". Seu conto no livro se chama "Codinome Electra". Juntas também disponibilizaram "O sonho de Sultana", escrito pela Roquia Sakhawat Hussain, tal obra é considerada a primeira história de ficção científica feminista.

Jarid Arraes é uma feminista que escreve cordéis e textos de opinião no "Questões de gênero" da Revista Fórum. Alguns títulos de seus cordéis são "Chica gosta é de mulher", "Dandara dos Palmares", "Dora, a negra e feminista", e "A menina que não queria ser princesa". Você pode adquirir os cordéis através do site pessoal da autora.

Alliah é genderfluid, feminista, escritora e artista visual. Você pode conhecer o seu trabalho assinando a newsletter "Alliahverso".

Clara Averbuck é escritora e também feminista. Escreve no site "Lugar de Mulher" e já publicou alguns livros, como "Vida de gato", "Das coisas esquecidas atrás da estante", "Cidade Grande no Escuro" e está escrevendo "Toureando o Diabo". Conheça seu site pessoal.

Observação: coloquei na lista escritoras que tivessem ao menos uma obra traduzida para o português. Gabriela Mistral, Audre Lorde, bell hooks*, Emily Dickinson e outras ficaram de fora por isso. Tentei mesclar indicações de escritoras mais conhecidas com outras que não são tão famosas assim, por isso vocês vão sentir falta de nomes como Rachel de Queiroz, Hilda Hilst, Hannah Arendt e as irmãs Brontë. 


Alguns nomes históricos: Teresa Margarida da Silva e Orta, Pagu, Rosa LuxemburgoMaria Firmina dos Reis e Maria Lacerda de Moura.

Literatura de/para/sobre mulher não é subgênero - texto de Gizelli Sousa

Fiquem à vontade para acrescentar mais e mais indicações na caixa de comentários. 

Nosso texto também foi republicado no site da Revista Fórum

* bell hooks tem a obra "Ensinando a transgredir" traduzida em português e Audre Lorde tem artigos científicos traduzidos. 

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Ver ou não ver fotos vazadas: uma questão de consentimento.

 "É meu corpo e deveria ser minha escolha.
O fato de não ser minha escolha é absolutamente nojento"

No final de agosto, várias famosas tiveram sua privacidade violada, entre elas Jennifer Lawrence. Várias fotos íntimas dela e de outras mulheres conhecidas no mundo do entretenimento foram roubadas e posteriormente colocadas na internet. Não preciso dizer que as fotos foram disponibilizadas sem o consentimento das vítimas, né?

Após o vazamento criminoso das fotos, as vítimas foram ofendidas e culpabilizadas, afinal, dentro do patriarcado, a sexualidade feminina é sempre atacada. As fotos das artistas rodaram o mundo, a internet em peso compartilhou as imagens ou pelo menos as visualizou.


A Atriz Mary E. Winstead, uma das vítimas dessa exposição em massa, publicou em seu twitter uma crítica a quem buscou as fotos dela com uma mensagem que poderia ser traduzida como "Para aqueles que estão olhando as fotos que eu tirei com meu marido há anos atrás na privacidade da nossa casa, espero que vocês se sintam ótimos com vocês mesmos."

Jennifer Lawrence demorou para se pronunciar sobre o acontecido, até que na entrevista para a revista Vanity Fair, a atriz falou sobre e como tamanha exposição mexeu com ela. Na matéria, ela deixou claro que o que ocorreu não foi um escândalo ou uma polêmica e sim um crime sexual. 

Ela afirma que temeu como a repercussão do caso poderia atrapalhar sua carreira e que tentou escrever diversas vezes sobre o acontecido, mas que sempre acaba ou com raiva ou chorando. Ela afirma também que chegou a começar a escrever um pedido de desculpas, mas que viu que não tinha motivo para se desculpar. A atriz falou várias vezes sobre o corpo ser dela e sobre escolha, deixando claro que visualizar as fotos vazadas é uma violação da escolha dela de não divulgá-las. Uma violação de consentimento.

Ao conceder essa entrevista, ela deu voz para várias mulheres que foram vítimas de revenge porn e que nunca tiveram onde se manifestar para serem ouvidas, mulheres que sofreram as consequências da exposição de imagens íntimas numa sociedade machista. Ela deixou claro que o vazamento criminoso de fotos é um crime sexual e que não deve ser relativizado por causa da existência das fotos e vídeos íntimos.

Jennifer Lawrence fez um favor para todos nós que combatemos o revenge porn, a objetificação do corpo designado feminino, a culpabilização da vítima e a demonização da sexualidade feminina ao dar um chega pra lá em todo mundo que diz "mas as fotos já vazaram mesmo" e buscam as fotos vazadas e as compartilham. 

Se as imagens estão na internet porque foram disponibilizadas sem o consentimento das fotografadas e filmadas, você ao buscar uma forma de visualizar as fotos viola a escolha dela de não ter essas fotos vistas por mais ninguém além do real destinatário. 

Jennifer Lawrence disse "Até pessoas que conheço e amo me disseram que viram as fotos. Não quero ficar com raiva, mas ao mesmo tempo penso que não disse a elas que elas podiam olhar para meu corpo nu". Vale a pena lembrar toda vez que ocorrer casos de revenge porn que não temos autorização para ver esses corpos, já que não somos destinatários desses nudes.

"Privacidade é um direito humano e mulheres, sendo anônimas ou não, devem ter seus direitos respeitados. Os corpos das artistas não pertencem ao fandom, nem aos sites de notícias e nem a quem as expôs. Os corpos das mulheres não pertencem aos namorados, companheiros, ficantes ou aos antigos relacionamentos delas. O corpo é delas e elas tiram fotos nuas se curtirem isso e compartilham apenas com quem elas quiserem e nós, internautas, que não somos os reais destinatários dessas imagens não devemos alimentar ainda mais essa exposição." - Trecho do texto do Ativismo de Sofá sobre exposição de fotos sem autorização das vítimas. 
As declarações de JLaw foram tão poderosas, que por represália editaram a página dela na Wikipedia adicionando as fotos roubadas. A página original já foi restaurada, mas o ocorrido serve de amostra da misoginia presente em nossa sociedade. Essa misoginia que quer punir a atriz pelas fotos ao saber que ela não vai pedir desculpa por ter sexualidade faz questão de tentar humilhá-la, mais uma vez, através das imagens.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Aborto legalizado em Moçambique



O fim de semana passado foi marcado em todo mundo pela luta pelo direito ao aborto seguro. Embora a situação continue catastrófica em muitos países (alguns deles com a situação absurdamente brutal, vide El Salvador), há uma luz no fim do túnel, uma centelha de esperança, vinda diretamente da África, de um país lusófono como nós: Moçambique. 

Foi aprovada no parlamento de Moçambique, ainda em julho deste ano, uma nova lei que garante o direito das mulheres ao aborto seguro, e isso coloca o país como a quarta nação africana a assegurar que as mulheres tenham completa soberania sobre seus corpos (os outros países são Cabo Verde, África do Sul e Tunísia). A lei precisa apenas ser promulgada pelo presidente Guebuza, o que (espera-se) ocorrerá antes do fim de seu mandato. 



A aprovação de tal legislação é extremamente importante, tendo em vista o fato de que na África estima-se que cerca de 1.7 milhões de mulheres são internadas todos os anos com complicações decorrentes de aborto clandestino (dados da OMS). Dessa forma, Moçambique passa a ser uma nação pioneira no reconhecimento do direito ao aborto como um direito humano e, mesmo que ainda haja entraves (especialmente em áreas rurais onde os profissionais de saúde podem se negar a realizar o procedimento, à revelia do que está na lei), as mulheres do país possuem um grande motivo para comemorar. 

Em linhas gerais, a lei prevê que a mulher tem direito ao aborto seguro até 12 semanas de gestação, e apenas precisa dar seu consentimento ao médico para ter o procedimento realizado em um hospital. Quando tratar-se de menor de idade, os pais precisarão consentir por ela. Estão previstos também os casos de estupro e má-formações que tornariam a vida inviável no pós-parto. Leia abaixo, na íntegra, os dados de um folheto divulgado pela Rede de Defesa dos Direitos Sexuais e Reprodutivos: 

Sabia que?

Existe uma nova lei aprovada em Moçambique que permite realizar um aborto seguro? 

O aborto inseguro tem contribuído para a morte de muitas mulheres e raparigas, ou para a sua incapacidade reprodutiva, em todo o país. Aliás, é um dos factores que tem concorrido para o aumento da mortalidade materna em Moçambique.

Quando é que os abortos não são permitidos?

Quando são praticados fora das unidades sanitárias, por pessoal não profissional e sem o consentimento da mulher. Por exemplo, mesmo que um enfermeiro ou médico pratique uma interrupção voluntária da gravidez, esse acto médico é ilegal se ocorrer fora das unidades sanitárias.

Quando é que se pode praticar legalmente o aborto?

Pelo Artigo 168 (Aborto não punível) do Código Penal, “Não é punível o aborto efectuado por médico ou outro profissional de saúde habilitado para o efeito, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida”.

As condições para se efectuar um aborto legal são as seguintes:

1. Constituir o único meio de remover o perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para a saúde física, psíquica ou mental da mulher grávida;

2. Se mostrar indicada para evitar lesões graves ou perigo de morte ou for realizado nas primeiras doze semanas de gravidez;

3. Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de doença grave ou malformações congênitas, e for efectuado nas primeiras vinte e quatro semanas de gravidez, comprovadas por ecografia ou por outro meio adequado, segundo as normas da profissão e da ciência médica;

4. O feto for inviável; 

For recomendável, em caso de doença;

A gravidez tenha resultado de crime de violação sexual ou de relação de incesto, e o aborto tenha lugar nas primeiras dezesseis semanas. 

A mulher deve consentir para que se efectue o aborto

De acordo com a lei, o consentimento será prestado:

Em documento assinado pela mulher grávida ou a seu pedido e, sempre que possível, com a antecedência mínima de três dias relativamente à data da intervenção;

Sendo a mulher grávida menor de dezaeseis anos ou psiquicamente incapaz, respectiva e sucessivamente, consoante os casos, pelo representante legal, por ascendente ou descendente ou, na sua falta, por quaisquer parentes da linha colateral. 

A lei também garante que:

“Não é punível o aborto efectuado por médico ou outro profissional de saúde habilitado para o efeito, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher, quando for praticado nas primeiras doze semanas de gravidez”.

Nestes casos não se dispensa o consentimento da mulher ou, se for menor, dos seus representantes legais.

O Ministério da Saúde garantirá condições para que, quando o Código Penal entrar em vigor, as mulheres que necessitarem de realizar um aborto possam beneficiar-se de serviços seguros e de confiança, que não ponham em risco a sua vida ou a sua saúde.

Eliminemos o aborto inseguro!

Salvemos as vidas de muitas mulheres e raparigas! 

O link para o site da organização pode ser encontrado aqui

As fotos desse post foram retiradas de reportagem em inglês, que pode ser lida aqui




*Aborto legal, seguro e gratuito não é apenas direito das mulheres, homens trans e pessoas não binárias com útero também podem engravidar.  A reivindicação é para todas essas pessoas. E nem todas as mulheres podem engravidar e tem útero. 

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Não salva fetos. Mata mulheres.


Ontem, 28 de setembro, foi o Dia Latino Americano e Caribenho pela Descriminalização do Aborto. Em várias cidades do país, mulheres foram às ruas para reivindicar o controle sobre seus direitos reprodutivos. Em São Paulo, cerca de 200 feministas ocuparam a Avenida Paulista para lembrar que o assunto é da esfera da saúde pública e que o Estado Laico, ao descurar desse direito, assume a morte de mulheres sujeitas ao aborto clandestino.

Com esse enfoque, o "Cortejo da Mulher Morta em Aborto Clandestino - Pela Legalização do Aborto" fez coro em lembrar que é a mulher pobre, sem acesso aos procedimentos seguros que fica mais vulnerável pela proibição.

Um caixão, carregado por ativistas clandestinas, tratava do assunto em primeira pessoa, como deve ser. É preciso humanizar a mulher que opta pelo aborto. O pensamento moralista de que a gravidez, e consequentemente um bebê, é punição para a mulher que faz sexo desconsidera a participação de um homem na concepção. 

A realidade é que a proibição legal, retrógrada e incoerente, não inibe que as mulheres abortem. Você conhece alguma mulher que abortou? Provavelmente você não sabe, mas sim, você conhece. Mais de 800 mil mulheres se submeteram ao procedimento no Brasil. Dessas, há estimativas de que a cada 2 dias, uma morre. Muitas outras recorrem aos hospitais pelas complicações ocorridas no procedimento.

Elizangela tinha três filhos e não queria o quarto. Jandira tinha dois e não queria o terceiro. E em nome da legislação que protege um feto, mais duas mulheres perderam a vida. E, vamos calcular, cinco crianças ficaram órfãs. 

Nota como a proibição não salva fetos? Mata mulheres! E, repise-se, mata uma a cada dois dias.

A desonestidade com que se defende a proibição é vergonhosa. Uso de imagens de crianças já nascidas. Uso de imagem de fetos já formados, com muito mais semanas de vida do que se defende como seguro. Tratamento da mulher como mero receptáculo salvador. Uso de dados falsos, vídeos falsos e nenhum aprofundamento nos argumentos, trazendo rasos argumentos baseados no moralismo fundamentalista e no senso comum. 

Métodos contraceptivos falham. Fetos sofrem anencefalia. Mulheres são submetidas à estupro. Gravidezes provocam riscos de vida. Mulheres não podem, ou não querem, ter filhos. Não importa qual motivo, a escolha não cabe ao pensamento moralista e individual. A escolha é de cada um.

Essa, que é a pauta mais polêmica do feminismo na atualidade, é a nossa luta. Pelo direito ao aborto seguro, legal e gratuito. 

Instruções de uso:
1. Pegue uma pedra
2. Julgue
3. Atire
"Eu abortei"

Numa tarde, caminhando de luto sob o Sol, rememorei vários sentimentos. Naquele caixão, logo ali na abertura do ato, eu poderia ter sido enterrada. Quem estaria no meu cortejo? Quantas pessoas me julgariam por ter feito sexo. Diriam que eu procurei isso, que não me protegi. Poderiam até afirmar que eu mereci, que fui suicida. Que paguei com minha vida por ter esquecido da proteção. Não acredito que alguém perguntaria qual o segundo sujeito da gravidez que para mim era indesejada. "Cadê o homem que engravidou? Por que o crime é da mulher que abortou?"

Poderia ser eu, naquela vez que aliviada comemorei a vinda da menstruação. Poderia ser eu se não tivesse recurso de ter tomado, uma vez na vida, a pílula do dia seguinte. Poderia ser eu, caso a camisinha furasse. Poderia ser eu, caso a pílula anticoncepcional falhasse. Poderia ser eu, mulher adulta que trepo. Que ando pelas ruas insegura. Eu, que vivo num país em que o aborto é proibido e criminalizado. Penso que poderia ser eu quando leio notícias sobre a prisão de mulheres. Penso que poderia ser eu e sinto pela morte de Jandiras e Elizangelas. Eu só tive um pouco mais de acesso à informação e aos contraceptivos. Eu só tive um pouco mais de sorte de que eles não falhassem.  

*Aborto legal, seguro e gratuito não é apenas direito das mulheres, homens trans e pessoas não binárias com útero também podem engravidar. A reivindicação é para todas essas pessoas. E nem todas as mulheres podem engravidar e tem útero.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Aborto no mundo: criminalização mata mulheres no Brasil e na Irlanda


Anistia Internacional 
Sábado próximo, dia 27 de setembro, ocorrerá a Marcha pela Escolha (pelo direito ao aborto seguro), o principal evento feminista do ano aqui na Irlanda. Eu tenho acompanhado o trabalho do Galway Pro-Choice, um grupo feminista de base dedicado a promover esclarecimentos quanto ao tema junto à população. Sempre que posso, me voluntario com o coletivo. Quarta-feira passada, por exemplo, nós fizemos uma banquinha na rua principal da cidade, para recolher assinaturas e distribuir panfletos. Essas assinaturas fazem parte de um abaixo-assinado para que a emenda constitucional número 8 seja derrubada. Tal emenda foi aprovada após um referendo feito em 1983, com vitória dos anti-escolha, que acabou por igualar a vida do embrião e feto à vida da mulher. 


Banner da Marcha, que ocorrerá em Dublin

Em 2013, após a morte de Savita (eu toco um pouco no assunto aqui), novas leis foram colocadas no papel devido à pressão da população diante dos absurdos aos quais a mulher que precisa interromper uma gestação é submetida no país. Entretanto, a emenda 8 é um grande empecilho à aplicação prática das novas leis, simplesmente por afirmar que a vida do embrião tem o mesmo peso que a vida de uma mulher. O caso mais recente é o de uma refugiada (a nacionalidade dela não foi divulgada pela mídia), que buscou um aborto pois estava em vias de se suicidar. Ela foi estuprada em seu país de origem, correu para cá e em poucas semanas descobriu que estava grávida do estuprador. 

A jovem de 18 anos, que se encontrava em estado profundo de depressão e em vias de se matar, buscou orientação médica. De acordo com as novas leis, bastava uma junta médica avaliar a sua situação para que o aborto fosse realizado. Porém, como o preconceito ainda impera por aqui, o psiquiatra avaliou o quadro dela como "não suficientemente suicida". Ela continuou apelando e ouvindo 'NÃO' como resposta, até que resolveu parar de comer e beber água completamente. A situação foi se arrastando de poucas semanas até umas dezoito semanas de gestação, quando os médicos se aproximaram dela e a convenceram a voltar a comer porque se ela se 'fortalecesse', eles poderiam realizar o aborto. 




A mulher, então, voltou a se alimentar e os médicos esperaram até 25 semanas para realizar uma CESÁREA nela. O bebê foi "salvo" e a equipe ficou conhecida como salvadora da pátria. A moça ainda se encontra em estado de choque, sua depressão piorou e ela simplesmente não consegue acreditar que existe por aí um bebê, que fora apelidado de ESPERANÇA, que é resultado de um estupro que inclusive ocasionou a sua saída de um país (provavelmente algum país em guerra). 

O que salta aos olhos nesse caso é a frieza com a qual uma mulher foi tratada desde o início. Uma situação que poderia ter sido contornada de forma razoável em seu primórdio (o aborto não iria resolver todos os problemas da menina, mas pelo menos aliviaria a dor de carregar dentro de si a lembrança constante de um ato de extrema violência). Mais uma vez, ativistas foram às ruas protestar sobre a falta de consistência das leis irlandesas, que foram inclusive apontadas pela ONU como extremamente falhas no tocante à proteção da saúde reprodutiva de suas mulheres. Segundo o relatório das Nações Unidas, a mulher irlandesa é, hoje, nada além de um reservatório. Tendo-se em conta a forma como as leis tratam a mulher aqui, foi iniciada uma campanha online com os dizeres 'Não sou um reservatório', para tentar lembrar à população que as mulheres desse país não são meros recipientes de embriões, que podem ser descartadas após 'salvarem' os bebês, conforme ocorrido com a refugiada em questão. 

Então lá fui eu, participar de protestos artísticos em que utilizamos placas com os dizeres "prisioneiras da emenda 8" e fitas adesivas tapando as nossas bocas. O que mais me marcou, porém, foi a tal banquinha, tanto positivamente como negativamente. Muita gente se aproximou de nós no melhor estilo 'bate e corre', para nos direcionar impropérios e nos deixar ver o quão vazias, mal-amadas e preconceituosas elas são. Tudo sem esperar por uma resposta, obviamente. A ignorância nunca tem a humildade de ouvir, discutir e buscar soluções. A ignorância sempre tenta colocar um ponto final no lugar de todas as vírgulas, como se isso não mexesse com vidas, principalmente de minorias. 


Nosso protesto
Entretanto, existe um outro impacto, positivo, que só o ativismo de base e o corpo-a-corpo nos fazem perceber. Teve uma mulher que parou e perguntou se nós precisávamos de dinheiro para alguma coisa, pois ela, por questões muito pessoais, apoia muito a nossa causa. Com os olhos marejados, ela nos deu um troco para um lanche. E nós nem estávamos colhendo dinheiro, apenas assinaturas. Teve um senhor que parou e nos contou de sua parente, que precisou fazer um aborto nos anos oitenta e teve que passar por uma via crúcis para chegar à Inglaterra. 




E teve uma mulher, que aparentava ter a minha idade, que parou ao meu lado e me contou a sua história. Ela me disse que tem um filho e ficou muito feliz ao descobrir que estava grávida novamente. Ela e o marido estavam planejando a criança, que seria muito bem vinda ao mundo, caso tudo desse certo. Não deu. Foi constatado via ultrassom que o feto tinha anencefalia e outras deformidades que tornariam inviável a sua vida após o parto. Com lágrimas nos olhos, ela me revelou que seria uma tortura levar a gravidez adiante. "Ter que aguentar as pessoas passando a mão na minha barriga, perguntando do enxoval, do nome da criança, ver meu filho empolgado com a idéia de ter um irmãozinho ou irmãzinha, tudo aquilo me deixou num estado de depressão profunda". Eu perguntei o que ela fez, e ela me contou que foi para a Inglaterra, com o apoio de toda a sua família."Você só percebe isso quando está envolvida numa situação assim… você percebe o quanto é frágil e humana… eu só queria que as pessoas julgassem menos. Afinal de contas, eu precisava ter forças para cuidar do meu filho, que já existe, que já tá aqui, e uma gravidez assim só estava me levando ao esgotamento". Ela então nos agradeceu por estarmos ali, assinou nossa petição e seguiu a sua caminhada. Porque é um absurdo que em pleno século XXI um país europeu submeta as suas mulheres à leis de barbárie, a Marcha pela Escolha vai acontecer nesse sábado. 




Enquanto isso, no Brasil, a situação vai de mal a pior, apesar de a situação ser mais avançada que a da Irlanda. O STF liberou o aborto de fetos anencéfalos há pouco tempo mas o direito ainda é muito frágil, já que não se encontra assegurado por lei, sendo que o Congresso tem o poder de passar por cima de decisões do Supremo através da edição de uma lei contrária. Dois casos chocantes vieram à tona recentemente, de mulheres que morreram ao tentar um aborto clandestino. Deixarei alguns bons links ao fim desse texto, com um apelo: precisamos falar sobre o aborto. O assunto, tanto aqui na Irlanda como no Brasil e na maior parte da América Latina, precisa ser colocado em pauta, urgentemente. Dia 27 discute-se o assunto aqui, já no dia 28 comemora-se o dia Latino-Americano e Caribenho pela descriminalização do Aborto, e o momento é propício para mais e mais discussões a respeito e, quem sabe, uma derrubada das leis fascistas que desconsideram as mulheres em toda a sua humanidade. 

Jandira, cujo corpo foi encontrado carbonizado - um exemplo da brutalidade das leis atuais

Não dá pra continuar fazendo vistas grossas a casos como os que narrei aqui. A casos como o da Jandira e da Elisângela, que morreram em clínicas clandestinas. Esse tipo de atitude punitivista não faz bem a ninguém. Está na hora, também, de pararmos com a posição "eu não faria, mas..." porque trata-se de uma situação que pode acontecer com qualquer mulher em idade reprodutiva. Nós nunca sabemos o dia de amanhã. Quantas mais precisarão morrer para que tomemos uma atitude? Até quando vamos fingir que o aborto é coisa que só "vagabundas" fazem? Vai levar quanto tempo para deixarmos os rótulos de lado e discutirmos honestamente a questão? Quanto tempo mais?




Bons links:

Quando é o momento certo para pautar a legalização do aborto? Por Thaís Lapa

*Aborto legal, seguro e gratuito não é apenas direito das mulheres, homens trans e pessoas não binárias com útero também podem engravidar.  A reivindicação é para todas essas pessoas. E nem todas as mulheres podem engravidar e tem útero. 

Texto de Flávia com colaboração de Thaís