sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Pela vida das mulheres

Imagem via Feministas do Cariri

Hoje é o dia de luta pela descriminalização do aborto na América Latina e Caribe. É um dia no qual as mulheres saem às ruas em busca de seu direito de decidir o melhor pra si, o direito de autonomia sobre seu corpo e também o direito a própria vida. 

A criminalização do aborto não evita que os abortos aconteçam, a criminalização faz com que mulheres grávidas e que desejam abortar busquem clínicas clandestinas perigosas e utilizem instrumentos médicos sem auxílio, limpeza e proteção e acabem morrendo por complicações. 

Hoje é o dia de se perguntar sobre o valor da vida das mulheres em nossa sociedade machista que vê a proibição do aborto e a obrigatoriedade de levar a gravidez adiante como uma punição para aquela mulher que fez sexo. Hoje é o dia de se perguntar se todos nós temos hoje acesso à informação, aos contraceptivos e a educação sexual. Hoje é dia de se perguntar porque punir a desconhecida e tratar a pessoa da família com discrição, como a música "Ventre Livre de Fato" expõe. 

Ao falar de aborto no mundo, percebe-se que há mulheres que buscam a descriminalização do aborto, outras que buscam que seus países mantenham a legislação conforme está porque não querem ver a revogação de seu direito e outras que buscam a real efetividade da descriminalização em seus países, porque na prática, acontecem diversas pressões por parte dos médicos e do povo para que o aborto não aconteça. Mesmo em países em que esse direito é assegurado, a luta continua para que haja cumprimento da lei e para evitar qualquer retrocesso. 

Nomear a luta contra a descriminalização do aborto de pró-vida é ignorar as mortes de muitas mulheres. A luta pela legalização e descriminalização do aborto é uma questão de direitos humanos, de autonomia feminina, de educação sexual, de saúde pública, de estado laico, de dignidade humana e de vida.

Imagem via O Machismo nosso de cada dia

Leiam também:

Um Brasil sem hipocrisia - Escreva Lola Escreva
28S: pelo direito ao aborto, em todo o mundo - Marcha Mundial das Mulheres
Sobre aborto - O biscoito fino e a massa 
Nota pública: o aborto não deve ser crime - Sempreviva Organização Feminista
Lei é eficaz para matar mulheres, diz especialista

Obs: Não só mulheres podem engravidar, homens trans e pessoas não binárias que tem útero também podem. Logo, todos os direitos defendidos pelo texto, como o aborto seguro e educação sexual, se estendem a essas pessoas. 

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

A resistência do oprimido, a barbárie e o racismo.


Tenho um pouco de receio de que falar sobre esse assunto seja chover no molhado.Porém no finalzinho da semana passada dois vídeos (que nem sei se são antigos ou atuais) pularam na minha timeline e eu vi a necessidade de fazer um paralelo entre eles. O tema é violência e é polêmico. Há os que dizem que jamais é aceitável, que não deve nunca ser relativizada e que gera apenas mais violência. Há um outro grupo que diz “direitos humanos para humanos direitos”. Eu não faço parte de nenhum dos dois. 
“Não confunda a violência do opressor com a resistência do oprimido”, a frase do Malcom X ilustra perfeitamente os momentos nos quais eu acho que a violência não é condenável. E aqui não estou dizendo que é eficaz, que deve ser estimulada nem nada do tipo. Estou apenas dizendo que, se a violência só por ser violência fosse igual em todos os contextos não existiria na nossa lei algo chamado “atenuantes”. 
Aqui entra entra o primeiro vídeo. Uma garota ao ser humilhada pelo professor em sala de aula o chuta no meio das pernas e corre. Para mim está bem claro como esse revanchismo não se dá de maneira bárbara, racionalizada, mas sim passional. Nessa história alguém se sentiu humilhada a tal ponto que não aguentou mais permanecer inerte e reagiu ali de forma rápida e emocional com as armas que tinha. Desespero, resistência, legítima defesa, entre outros nomes expressam como a violência da menina é diferente da violência do professor. 
Inclusive, a expressão “legítima defesa” já deixa claro o que estou querendo dizer: Existem casos em que a agressão é simplesmente legítima. Ninguém está usando as palavras “correta”, “exata”, apenas que o ser humano tem o direito sim de, ao ser colocado em uma situação de violência e opressão, responder ao agressor para defender a si mesmo. Lembram do caso de Severina Maria da Silva? Uma mulher que era abusada pelo pai desde os nove anos de idade, criou cinco filhos dele e (vocês vão me desculpar, mas vou dizer: finalmente) ao ver uma de suas filhas ameaçadas encomendou a morte do homem. E foi absolvida. E com toda razão. 
Agora vamos ao próximo vídeo, esse eu não recomendo que assistam, de verdade. Se você tem um pingo de racionalidade (pois é, não estou falando de emoção, estou falando de racionalidade mesmo) consegue ver o quanto ele é absurdo. Trata-se de um menino amarrado em um poste sendo açoitado. Assim, levando pauladas, garrafadas, sangrando e um monte de gente em volta vendo. Inclusive esse vídeo não é o único, se você tem tanto azar quanto eu já deve ter pulado na sua TL alguma imagem de um homem todo esfaqueado, capado, dentre outras cenas no estilo, seguido de pessoas aplaudindo e dizendo “é, tem que fazer isso mesmo, a nossa justiça não funciona, a justiça tem que ser feita com as próprias mãos”. 
No vídeo e nas imagens em questão existe um padrão muito curioso: Ninguém sabe exatamente o que os acusados fizeram, mas de qualquer forma, eles merecem. Por via das dúvidas, né? Uma das poucas palavras que dá para se ouvir no vídeo é “roubar” -  e aqui nem vou entrar no mérito de comparar um dano material causado por ele com o dano físico com requintes de crueldade cometido pelos outros – mas de qualquer forma, imaginem o vídeo sem som algum, assim como as imagens não costumam ter som algum. As reações seriam diferentes? As pessoas que dizem “direitos humanos para humanos direitos” deixariam de fazê-lo? Eu acredito piamente que não. 
Agora imagine o mesmo vídeo, também sem som algum, com a única diferença de que o rapaz que está sendo agredido fosse branco. Sim, eu disse branco. E aí eu boto minha mão no fogo de que a história mudaria. Porque o menino negro todo mundo parte do pressuposto de que é ladrão, é assaltante, é bandido e merece ser açoitado, humilhado, morto. Agora se o menino fosse branco com certeza estaria sendo agredido gratuitamente, deveria estar sendo assaltado seguido de uma mutilação dessas alguém chame a polícia, salve-o, socorro! 
É sim, todo esse papo vingador de gente que acha bonito ver essas imagens brutais e acreditar, mesmo sem prova nenhuma, que se tratam de pessoas que estão ali porque merecem está permeado por muito racismo. É preto? Então deve ser bandido, estuprador, pedófilo, não sei, sei que alguma coisa deve ter feito para merecer isso. 
E esses casos de barbárie não são nada incomuns na nossa sociedade. Especialmente em casos de pedofilia, estupro, assassinato e outros crimes que chocam a população, logo aparecem os justiceiros. Aqueles que juram que não são cruéis como os que cometem tais crimes, mas de repente se veem dispostos a vingar a vítima de qualquer forma, aliás, qualquer não, tem que ter muito sofrimento, muito sangue, se não não vale. 
Dentre os milhares de erros que eu vejo nesse tipo de atitude, existe um ridículo de óbvio: Alguém perguntou para a vítima? Essas pessoas tão preocupadas com o que aconteceu a vítima perguntaram se ela se sentiria melhor caso seu agressor fosse linchado, açoitado, assassinado em “homenagem” a ela? 
Existe um filme chamado Confiar, se você ainda não assistiu, eu recomendo que o faça e peço desculpas antecipadas pelo spoiler que estou prestes a fazer: O filme conta a história de uma adolescente (13 ou 14 anos, não me lembro bem agora) que é abusada sexualmente. Ciente disso o pai dela se joga na busca para defender sua filha. Quer entrar na internet, investigar, comprar uma arma, encontrar o agressor, matar todos os pedófilos do mundo, só não quer... ouvir a filha. Tão obcecado com essa ideia da vingança ele esquece de ajudar quem realmente precisa dele naquele momento, a própria filha. 
Plínio comenta
Dia desses ouvi falar sobre um caso famoso da cidade para qual acabei de me mudar. Homens que, depois de estuprar uma garota e matar seu namorado, foram espancados, assassinados e por fim queimados em praça pública. Tenho também a certeza de que ninguém perguntou para a moça se ela se sentiria melhor caso fizessem isso (particularmente eu me sentiria ainda pior, muito pior). Mas de qualquer forma, ao imaginar tamanho absurdo minha mente começou a viajar (sempre fértil) e pensei que se eu estivesse presente quando isso aconteceu, me jogaria na frente deles. Sim, eu “defenderia” os estupradores. Imediatamente imaginei também a reação das pessoas caso eu fizesse isso: “vadia, vagabunda, merece ser estuprada!” e por que não aproveitar para me agredir também? E por que não fazer comigo o mesmo? 
Quão melhor do que o próprio estuprador é a pessoa que diz que o estupraria “para aprender”? Quão melhores seriam essas pessoas na minha cena imaginária que julgariam, linchariam, agrediriam uma pessoa inocente apenas para fazer valer sua própria “justiça”? E que, com certeza, não perceberiam que em suas próprias palavras estaria reproduzida a cultura do estupro que colabora para que esse tipo de crime continue acontecendo? 
A resistência, a defesa de si mesmx, do próprio corpo e da própria dignidade são sim legítimas. Ninguém pode julgar alguém sendo que ninguém sabe como reagirá em determinadas situações de opressão, pode ser que você aguente caladx, mas pode ser que imediatamente seja tomadx por uma emoção muito forte que te faça agredir com a mesma força (ou mais) aquele que antes te violentou. 
Entretanto isso é muito, muito diferente do sentimento vingador que envolve a nossa sociedade e a faz mostrar a primeira oportunidade toda sua barbárie. É como se estivessem todos parados, não lutando contra nada, não buscando compreender nada, não defendendo causa alguma, apenas esperando o primeiro negro pobre cometer o que quer que seja (mesmo que não saibam o que é) e pronto: Essa é a hora, o lugar e a pessoa para descontar todas as suas frustrações pessoais, para ver o sangue que você quer, para ser o quão cruel você sempre quis, tendo uma desculpa, se sentindo o justiceiro, o herói da história.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Relações tradicionais e a infidelidade feminina


Apesar das múltiplas formas de relações que conhecemos hoje – principalmente quando começamos a nos envolver em meios de luta feminista, LGBT* e questionar determinadas normatividades vigentes – em geral bem sabemos que a estrutura social e a força política está concentrada em torno de apenas um modelo familiar: Heterossexual e monogâmico.
Ninguém está aqui para negar que possam existir relações heterossexuais e monogâmicas muito bem sucedidas. Com igualdade, liberdade e escolha dos envolvidos. Porém não podemos desconsiderar que esses dois pontos são compulsórios, ou seja, nos são ensinados desde muito cedo como as únicas formas possíveis de amor. E quando digo muito cedo, digo muito cedo mesmo, palavra de uma mãe que desde que teve a filha no útero ouviu coisas como “é uma menina? Fulana está grávida de um menino, olha só, podem ser namoradinhos rs”.
Esse modelo familiar tradicional é estruturalmente patriarcal e, consequentemente, machista. E aí entramos no verdadeiro assunto desse texto: A infidelidade. Mesmo nos meios feministas é possível notar uma certa resistência a visualizar a dita “traição” e compreende-la, admitir que ela pode não ser algo tão errado assim. Isso acontece porque partimos de um princípio de isonomia que na prática da maior parte das relações é inexistente.
Em uma relação monogâmica e heteronormativa a figura feminina está invisivelmente sendo oprimida. A família do comercial de margarina é, na realidade, uma estrutura que sujeita a mulher a uma série de agressões físicas, sexuais e psicológicas que agem no sentido de manter o status quo familiar. Um dos exemplos mais importantes é a questão da autoestima feminina que é minada socialmente. É consenso desde as igrejas às revistas femininas que  ela deve ser a base do lar, cabe sempre a ela a manutenção do casamento e a função de agradar o homem.
Diante de uma relação permeada por essa violência, como podemos equiparar a infidelidade masculina da feminina? Quantas vezes já ouvimos falar do homem que “trai” por que a mulher não cumpre sua “função” como esposa? Iludido por essa lógica patriarcal o homem espera encontrar dentro de casa não uma companheira, mas uma mulher que esteja sempre sujeita as suas vontades.
A mulher, ao se ver dentro de uma relação que desconsidera suas vontades, oprime sua liberdade de ser e mina sua autoestima, passa a viver um mundo que não é o dela, mas sim o do marido e da estrutura familiar tradicional.
Nesse sentido, a infidelidade feminina não é apenas uma forma de alcançar prazer, de viver um caso de amor (embora possa sim ser também), mas sim de se desvincular dessa vida de opressão que foi imposta a ela, desse lugar comum que a violenta diariamente. A “traição” funciona como uma fuga, a busca de encontrar um ambiente no qual tenha sua autoestima elevada, no qual seja compreendida, acalentada e possa realizar suas próprias vontades.
Mesmo quando a pessoa com quem a mulher se envolve não seja um exemplo a ser seguido (é possível, inclusive, que seja tão opressora quanto o homem que se encontra dentro de sua casa), não aja de maneira a colaborar para a visibilidade dos desejos da mulher. Mas para quem está sujeita a viver buscando realizar exclusivamente a vontade alheia (do chefe no trabalho, do homem no casamento, dos filhos dentro de casa), a infidelidade em si age como um processo libertador, afinal, é uma decisão dela, uma ação que ela escolheu fazer por si própria.
A mulher que “trai” encontra nessa “traição” uma forma simbólica de realização pessoal, de autonomia, coisas que não são permitidas a ela na vida tradicional em que se encontra. Mais do que isso, está fugindo das agressões, do aprisionamento, do cerceamento que é feito sobre ela pela família patriarcal. A atração que leva a infidelidade feminina não é apenas pelo outro, mas sim por si mesma, pelo resgate de si, pela vivência de relacionamento visceral, fora das aparências que exigem dela uma anulação diária.
E a premissa de simplesmente “abrir o relacionamento” aqui não é válida. Pelo simples motivo de que as relações não-monogâmicas ainda vivem no campo da marginalidade, do desconhecido. Quantas pessoas você conhece que admitem a possibilidade de viver uma relação aberta? Ou sequer sabem que existe essa possibilidade? Eu mesma não sabia até os meus 17 anos, quando um livro sobre o assunto pulou nas minhas mãos. Essa alternativa ainda não é palpável para a maioria das pessoas.
Sendo assim, ao falar de infidelidade não podemos apenas partir do pressuposto da palavra, do acordo de monogamia pré-estabelecido, acreditando que toda quebra de acordo é um erro e fim. O contexto deve ser levado em conta e enquanto não houver igualdade de gênero, as relações não seguirão de forma horizontal, portanto, olhando criticamente as atitudes não podem ser consideradas iguais.
Vou terminar esse texto reiterando o óbvio: Não estamos falando de todas as relações, todos os homens, todas as mulheres, todas as monogamias. Mas como já falamos aqui no blog, generalizamos porque não queremos tratar das exceções, queremos problematizar a ordem dominante.

sábado, 15 de setembro de 2012

Roupas não previnem estupros. Em lugar nenhum do mundo.

Todxs sabemos que existe uma tendência geral a jogar a culpa de um estupro na vítima. Casos recentes, como a reação de parte da população ao estupro das meninas do New Hit, nos dão a medida do quão alarmante é a situação. Porque sabemos que culpabilizar as vítimas só faz piorar o problema. Porque sabemos que não há relação nenhuma entre as vestimentas da vitima e o seu estupro. Sabemos disso, mas infelizmente há uma galera que insiste em levantar a voz, real ou virtualmente, para corroborar o mito de que quem se veste “decentemente” estaria imune aos ataques.  

Semana passada eu acabei botando os olhos no texto que vos apresento abaixo, e resolvi  traduzi-lo. Muitas vezes é preciso olhar para fora de nós mesmxs, para outras culturas, para realidades totalmente alheias à nossa, para que possamos entender a dimensão de um problema. Ao ler o texto você pode até pensar “ahhhh, mas isso é uma realidade muito diferente da brasileira”. Não é. O que o autor relata é realmente um absurdo. Um absurdo que tem lugar até no ocidente. Até no Brasil. E precisamos mudar isso.

O mito de como o hijab protege mulheres contra abuso sexual
Por Josh Shahryar
       
Eu tinha apenas 6 anos de idade quando minha família foi forçada a fugir da guerra civil do Afeganistão no final dos anos oitenta. Minha irmã, Neelo, que é cinco anos mais velha que eu, foi matriculada em uma escola saudita de inspiração fraterno-muçulmana para refugiados afegãos. Ela, assim como muitas mulheres muçulmanas, usava um simples lenço na cabeça. 
       
Eu me lembro da Neelo pegando a bolsinha dela, enrolando o lenço ao redor dos cabelos e indo para o seu primeiro dia de aula. Eu também me recordo, com tristeza, que ela voltou da escola naquele dia e disse aos nossos pais: “Os guardas me disseram, ‘ou você usa o hijab completo ou então um chador [a burqa afegã], ou então não entra na escola.’” O seu lencinho para a cabeça não era mais suficiente.

A escola que ela estava era dirigida por ultra-conservadores.

A Neelo foi forçada a usar o tipo mais restritivo de hijab - quase igual ao da mulher nesta imagem. As coisas correram bem, até o ano seguinte, quando eu comecei na escola. Minha mãe sentou-se comigo e me disse que a partir daquele dia eu teria que levar a minha irmã à escola todos os dias.

Eu acabei odiando a experiência. Todo dia escolar, por anos, quando nós andávamos até a escola da Neelo, os homens a encaravam, avaliando seu corpo por detrás das vestes escuras, cochichando entre si, fazendo sinais com as mãos, assobiando, insultando-na, e dizendo coisas como quão bonita ela era - à revelia do fato de que a única coisa visível em seu corpo eram os olhos.

Os homens que passavam por nós pela calçada diziam coisas humilhantes - coisas de natureza sexual que eu era muito novo para entender. Minha mãe e meu pai queriam que eu a levasse para a escola porque, se eu não estivesse com ela, o que esses homens seriam capazes de fazer? Eu cresci ouvindo histórias de mulheres que foram apalpadas, esmurradas, raptadas até - tudo isso enquanto usavam hijabs. Os perpretadores vinham de todos os grupos étnicos e eram tanto paquistaneses como, assim como nós, refugiados.

A experiência me deixou furioso, impotente, e traumatizado. Nós nunca conversávamos a respeito. O que ela não sabia é que eu sabia que ela se encontrava machucada, emocionalmente e psicologicamente. Ela não precisaria me dizer que não se sentia protegida sob o hijab. As lágrimas por detrás de seu véu eram-me suficientes.

Essas memórias vieram à tona para me assombrar na terça-feira última, Dia Mundial do Hijab (4 de setembro de 2012). O dia celebra o direito da mulher muçulmana escolher o que deseja usar. O lenço e outras formas mais restritivas de cobertura da face e do corpo são amplamente conhecidos como o hijab; ao longo dos séculos, ele se transformou num símbolo do Islã conservador e, para alguns, uma característica das devotas e modestas muçulmanas. A prática não é algo uniforme em todos os países, usar o hijab “conservador” significa cobrir completamente os cabelos de uma mulher e, em muitos lugares, até o seu rosto, com um véu, ou pardah (um longo e fino xale que cobre a cabeça e o tronco, usado principalmente no sul da Ásia), uma burca (um tipo de xale, com capuz e véu embutidos, usado no Afeganistão, Paquistão e Índia), ou diversas outras variantes. Não é permitido, nas interrpetações mais conservadoras, mostrar nenhuma parte do corpo de uma mulher, exceto seu rosto, mãos, pés abaixo dos tornozelos e, às vezes, o pescoço.

Os avanços nos direitos das mulheres ao longo dos dois últimos séculos permitiram que as mulheres religiosas tomassem algumas liberdades no tocante à escolha de suas vestimentas. Ainda assim a resposta dominante por parte desse movimento de uma corrente principal conservadora tem sido separar a prática de sua natureza religiosa e encontrar razões para justificar não apenas a observância à prática de fé, mas também por benefícios supostamente práticos.

Eu vou deixar um excerto de um artigo de uma escritora chamada Sehmina Jaffer Chopra para o site de questões islâmicas Islam101.com explicar o que vem ocorrendo:

Outro benefício de adornar um véu é que o mesmo trata-se de uma proteção às mulheres. Os muçulmanos acreditam que, quando as mulheres mostram sua beleza a todos, elas entram em estado de degradação, tornando-se objetos de desejo sexual e acabam ficando vulneráveis aos homens, que olham para elas como uma “gratificação ao desejo sexual” (Nadvi, 8).O Hijab sinaliza que tais mulheres pertencem à classe das mulheres modestas e castas, de forma que os transgressores e homens sensuais possam reconhecê-las como tais e assim, não as importunem com suas travessuras (Nadvi, 20)O Hijab resolve o problema de assédio sexual e avanços sexuais não-desejados, o que é tão humilhante para as mulheres, quando os homens recebem sinais mistos e acreditam que elas querem seus avanços baseados na forma como elas revelam seus corpos. [grifo meu.]

A idéia de que o hijab de alguma forma protege as mulheres contra assédio sexual e/ou violência, não se trata, de jeito nenhum, de uma visão minoritária. Clérigos célebres, como o egípcio Sheikh Yusuf al-Qaradawi - considerado amplamente como um líder da fraternidade islâmica e boa parte do pensamento islâmico sunita - e o Ayatollah Sayyed Ali Khamenei - a suprema autoridade religiosa e política e uma das fontes principais  de jurisprudência xiita islâmica - endossam essa visão. 

Esta não se trata apenas de uma afirmação que não tem base de fato; ela é, também, perigosa. Eu sei disso porque eu presenciei o hijab da Neelo falhando em protegê-la por anos a fio.

Eu sei disso porque eu vi, ouvi, ou li múltiplos relatos em primeira pessoa de vítimas de assédio e violência sexual que estavam usando o hijab no momento em que foram atacadas. O hijab não pode e não vai impedir homens de atacar mulheres. Mesmo que a única parte do corpo da mulher à mostra seja a sua sombra, os meliantes irão sexualizar e fetichizar a mesma. Tomemos como exemplo o Egito, país onde o assédio sexual de mulheres se tornou praticamente uma pandemia - estejam elas usando o hijab ou não.

O mito de que há uma correlação entre o hijab e uma baixa incidência de assédio e violência sexual contra as mulheres na verdade acaba por vitimizá-las. Os homens estão fazendo um desserviço às mulheres ao colocar a culpa nas mulheres que não se cobrem, bem como ao insinuar que uma mulher que foi atacada ao usar um lenço na cabeça de certa forma fez alguma coisa para merecer o mesmo. Como ocorre com toda culpabilização da vítima, isso impede as mulheres de falar abertamente acerca de ataques sexuais. Muitos clérigos muçulmanos e cientistas pseudo-sociais - como Zakir Naik, neste vídeo (link em inglês), que é imperdível para qualquer pessoa que deseje aprender sobre o problema - abertamente sugerem ou proclamam que mulheres que não usam o hijab estão pedindo um assédio ou um estupro. Eles chegam ao ponto de correlacionar o direito da mulher usar o que ela quiser no Ocidente com a alta incidência de violência sexual contra as mulheres de lá.

Eles convenientemente ignoram todos os relatórios que demonstram como a violência sexual não é registrada em muitas sociedades islâmicas conservadoras (link em inglês), devido à sua natureza de tabu e ao estigma associado à mesma; ignoram o fato de que a violência sexual leva a mortes por honra de muitas das vitimas todos os anos. 

Pervetidos são pervetidos. Eles irão assediar e cometer violência sexual contra as mulheres que usam o hijab ou uma minissaia porque eles são pervertidos - não porque as mulheres exercitaram seu direito de usar o que querem.                                                                                                

Continuar a perpetuar o mito do hijab mágico apenas faz com que o problema cresça. Não resolve nada, na verdade. Para tanto, nós precisamos conseguir falar abertamente sobre o problema, conscientizar, educar as pessoas, projetar leis contra, e ter delegacias que realmente tomem ação contra os homens que incorrem nesses crimes. Se isso tivesse sido feito nos anos oitenta, talvez a Neelo - ou as milhões de outras vítimas como ela - não precisariam ter que suportar toda a dor na qual viveram por anos. 



                                                                                                                                                 Usar ou não o hijab é uma escolha pessoal que precisa ser protegida.  Muitas mulheres que o utilizam escolhem fazê-lo e se sentem felizes com o gesto de modéstia e religiosidade. Entretanto, isso não se trata do hijab ou da escolha da mulher. Trata-se de pseudo-ciência e misoginia. 
                                                                                                                                               Trata-se do fato de que mulheres que usam o hijab não estão mais seguras que mulheres que não o usam. Trata-se do fato de que precisamos de proteção real às mulheres nas sociedades islâmicas, em casa, nas ruas, e no ambiente de trabalho - não apenas em trajes milagrosos.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O meme do ministro: curtir/compartilhar a birra da exceção


É de conhecimento geral do país que ocorreu recentemente, no Brasil, o julgamento do escândalo de corrupção conhecido como mensalão. Em um extenso voto que durou uma tarde, o ministro Joaquim Barbosa condenou, só nessa segunda-feira (10 de setembro), nove réus envolvidos no famoso esquema de lavagem de dinheiro que despertou a ira de milhões de brasileiros. A cólera se abateu tão fortemente sobre muitos desses milhões, que acabou fazendo com que a corrupção fosse alçada ao status de problema único que assola a humanidade. A corrupção afetou tanto o sono e o raciocínio dessas pessoas, que até reportagens sem relação com o tema converteram-se em espaço para desabafos. Um canguru morreu na Austrália? Brasileiro é muito corrupto mesmo, cara. Um vândalo pichou o trem numa bucólica cidadezinha do interior dos Alpes Suíços? Brasileiro é isso aí, povo incivilizado, corrupto. A corrupção é o câncer que se alastra pela nação. 

Entretanto, não vou negar que em meio a essa avalanche de indignação, que chega ao ponto de querer silenciar outras lutas, muita coisa interessante aconteceu. Percebi, com alegria, que o ministro Joaquim Barbosa, relator do julgamento, foi alçado à categoria de herói pela população brasileira. Ele, que rejeitou o título dizendo-se “apenas um barnabé”, passou a ser visto como modelo de cidadão incorruptível e justo. Vários memes circularam pelas redes, celebrando a vida do nosso ministro e sua atitude enérgica para com os criminosos. A punição exemplar, calcada na Constituição, daria ao ministro credibilidade suficiente até para se candidatar a presidente do Brasil. Pelo menos, foi isso que senti ao presenciar a frequência com que tais memes apareciam em nossos feeds de notícias.

Eu confesso ter ficado feliz com a reação das pessoas à ação do ministro. Entretanto, escrevo-lhes essas mal-traçadas de hoje para deixar registrado um fato que me chamou bastante a atenção. Creio que aí entra em cena a galera insone e com raciocínio afetado a que me refiro no início do texto. Dentre tantos memes comemorativos, circula alguns nada a ver BEM nada a ver mesmo que dizem algo como: “Esse negro não precisou de cotas para entrar no STF”. Vi várias variantes do meme com o mesmo conteúdo. 



Parece que o fato do ministro Barbosa ter brilhado no processo que culminou com a justa condenação dos envolvidos agiu no sentido de alavancar o sentimento de arrebate experienciado pela galera contrária às cotas. Muitxs negrxs publicaram, orgulhosxs, tal meme em seus murais e afins. Acredito que a identificação com o ministro, que teve um longo caminho de luta e superação individual para chegar onde está, forneceu esteio necessário para a viralização de tais memes. 


Em uma estrutura mais superficial, eu vejo esse compartilhamento coletivo como uma insistência em celebrar as exceções, que são raríssimas no Brasil, mas que funcionam como um inebriante exemplo de uma ufania conhecida como meritocracia. A cada foto que eu via, ficava a sensação de que a mensagem era uma só: tá vendo como não precisamos de cotas? Negros são capazes de subir na vida sozinhos!

Um parêntese: eu não deixo de me entristecer e me sentir impotente ao perceber o alto índice de pessoas negras compartilhando essas coisas. Isso prova, a meu ver, que a colonização mental “work” muito bem, pra usar o termo do racista Monteiro Lobato, tamanha é a sua sutileza em incorporar até aquelas pessoas que deviam opor-se fortemente ao sistema, dado o caráter excludente do mesmo.

Agora, em uma análise mais profunda, percebemos o grau de incoerência desse segmento da população brasileira: ficou a impressão de estarem celebrando algo que o ministro não é. Ou seja, ele não é contra as cotas. Tanto que seu voto foi a favor das mesmas. Vejam bem. O ministro é um privilegiado. Dizem que ele já foi faxineiro e tem uma história de esforço e superação pessoal linda pra contar. Isso faz dele uma exceção. Uma exceção que pode, e deve, ser celebrada.

Entretanto, as pessoas insistem em incorrer num erro primário, pra dizer o mínimo. Ao celebrar a exceção, também dão a entender que todo um sistema deve ser feito de...exceções. Assim, é natural, normal e até desejável que a sociedade seja composta por uma maioria que mal consegue pagar o aluguel e uma minoria que, com muita garra, determinação e leitura do Segredo, consegue chegar ao topo. E se alguém questionar tudo isso, a resposta é imediata: quem mexeu no meu queijo?

Eu confesso que fico passada quando me vejo diante desse tipo de raciocínio. Ainda bem que existem muitxs negrxs que, assim como o ministro Joaquim Barbosa, não compram essa idéia de que as exceções seriam suficientes para justificar a situação de pobreza e falta de dignidade em que a grande maioria se encontra, hoje, no Brasil. O fato de o ministro Joaquim ter alcançado o topo é ótimo? Sim. Porém, seguimos sendo uma das nações mais desiguais do mundo. É por isso que eu gostaria de finalizar com as palavras do Sakamoto, que ao meu ver resumem perfeitamente o que ocorre no Brasil desde sempre. Lembram do meu parêntese sobre a colonização mental? Pois é.  

“Parte dos trabalhadores que adentraram a linha do consumo adota com facilidade o discurso conservador. Conquistaram algo com muito suor e têm medo de perder o pouco que têm, o que é justo e compreensível. Mas isso tem consequências. Em pesquisas de opinião sobre políticas de habitação, por exemplo, quem tem pouco abraça por vezes um discurso violento, que seria esperado dos grandes especuladores urbanos e não de trabalhadores. Afirmam que, se eles trabalharam duro e chegaram onde chegaram sozinhos, é injusto sem-teto, sem-terra ou indígenas consigam algo de “mão-beijada” por parte do Estado. Ignoram que o que é defendido por esses excluídos é apenas a efetivação de seus direitos fundamentais: ou a terra que historicamente lhes pertenceu ou a garantia de que a qualidade de vida seja mais importante do que a especulação imobiliária rural ou urbana.

E que dignidade não é algo que tem que ser conquistado a duras penas através do esforço individual, mas faz parte do pacote de direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais que você deveria ter acesso simplesmente por ter nascido. Ignoram porque aprenderam que as coisas são assim.”


sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Quem te viu, quem te vê - das dificuldades de se assumir alguma coisa

Eu sempre achei o mundo injusto pra caramba no tocante às relações de gênero. Porém, o fato de me considerar abertamente uma feminista é deveras recente. Meu feminismo era algo que passava batido, por vezes até despercebido, por amigxs e familiarxs mais próximos de mim. Até que veio o Ativismo de Sofá.  

“Quem te viu, quem te vê”. A não ser que você tenha sido sempre uma pessoa politizada e engajada em causas sociais diversas, vai chegar um momento em que você vai ter que ouvir essa frase, ou pelo menos algo parecido com isso. Uma frase de duplo sentido, mas que, pelo menos no meu caso, explicita uma crítica nada fofinha.

Não é de hoje que tenho encontrado amigxs da minha convivência antiga, pré-feminista, pré-Índia, pré-cabelo-sem-alisante, que se assustam com a minha “mudança”. Nossa, você era tão certinha, nunca imaginei que viraria feminista. Porque né, “virar” feminista, na cabeça das pessoas, é algo bem parecido a se tornar uma criminosa ou, na melhor das hipóteses, uma pecadora.

O povo parece ignorar um fato fundamental do desenvolvimento humanx: as pessoas mudam. Oh wait. Eu acho que as pessoas até aceitam mudanças, desde que estejam dentro do escopo de previsibilidade delas. Um exemplo? Galere do ateísmo. Ninguém questiona a mudança/arrependimento de uma pessoa que mata, rouba e faz visitas constantes a unidades prisionais diversas do país. Essa pessoa se transformou e agora é vista como “do bem”. Agora, se alguém resolve sair do armário com relação ao ateísmo, a sociedade passa não somente a discriminá-lx, como também a relacioná-lx diretamente ao mal. Mesmo que ela tenha uma ficha criminal indelevelmente limpa.

Como eu já disse em outro texto, as pessoas não gostam de ter seu sistema de crenças afrontado. É muito fácil viver repetindo o mantra “amai o próximo” e seguir só amando e não julgando quem não te afronta. Pessoas assim não hesitam em tratar quem NÃO partilha de seus conceitos de moralidade como uma abominação. Não felizes em destratar as pessoas porque elas se atrevem a dizer o que pensam, dedicam-se a espalhar memes pelo mundo cibernético numa clara represália a quem está, apenas, tentando exercer a própria individualidade.

Exemplo de um desses memes? Ah, tem vários. Eu queria me concentrar em um que diz algo como "sua mãe sabe que você se paga de ateu no facebook?". Por dois motivos: 1. ilustra perfeitamente o que eu estou dizendo; 2. não enxerga o fato de que, no final, os pais/familiares de determinada pessoa não saberem que ela é atéia, não a torna menos genuína. Simples assim. Além do mais, tal frase ignora o contexto de opressão em que nos encontramos. Afinal, é muito fácil curtir com a cara de quem está sendo sincerx consigx mesmx, remetendo-se à velha relação de opressão e hierarquia que se estabelece dentro do contexto das famílias nucleares patriarcais. Condenar uma pessoa por ela não ter coragem de se assumir perante seus pais é, pra dizer o mínimo, um ato de violência, simbólica e institucionalizada. E isso, carxs amigxs, se estende a toda e qualquer tentativa de se assumir alguma coisa.


Pra finalizar, fica o meu recadinho pras pessoas que não acreditam em mudanças de atitudes e posições: cresçam. Parem de julgar quem se permite passar por um profundo processo de auto-conhecimento (sim, ser feminista, ou até mesmo ateu, envolve se conhecer melhor, lide com isso) e tentem, pelo menos uma vez na vida, pensar por conta própria. Lembrando que pensar é diferente de pura e simplesmente repassar memes com indiretas adiante, fikdik. 


*Texto escrito por Flávia com colaboração de Paula Mariá.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Mononormatividade


Eu não sou monogâmica. Gosto de me definir como RLi, ou seja, uma pessoa que tem por objetivo as Relações Livres, fora do esquema tradicional patriarcal e monogâmico. Acreditamos que não há um número limite de pessoas com quem podemos nos relacionar sexual e afetivamente, que não temos o direito de controlar o corpo do próximo, bem como ele não tem direito de controlar o nosso.
Mas esse não é para ser um texto didático. Não tenho a intenção de explicar o conceito de Relações Livres, seus princípios, como me envolvi com o assunto e tudo o mais (se vocês pedirem faço um texto só sobre isso depois), esse texto é mais um desabafo sobre coisas que a forma como a mononormatividade se manifesta nas pessoas. Assim como a heterossexualidade, a monogamia também é compulsória, portanto está enraizada nas pessoas a idéia de que as relações fechadas são mais “normais” que as outras e isso fica claro em determinadas atitudes. Atitudes chatas pra caralho.
Em meio a uma discussão sobre a atitude do casal Zilu e Zezé (sim gente, tem gente querendo ver se é mesmo legítima a decisão de abrir o casamento dos dois ou não, porque né, todos tem muito a ver com isso) li um “eu não acredito em relacionamentos abertos”. Espera. Para. Sinto informar, mas as relações abertas não são como deuses ou aliens, que você pode escolher acreditar ou não. Elas existem, você querendo ou não. Vai lá falar para gente que está junta há mais de 15 anos que não acredita na relação deles.  Dizer isso é algo extremamente reacionário que acha que a sua maneira de sentir e viver é a correta e todos os outros “não encontraram a pessoa certa ainda”.
A mononormatividade fica muito clara com a insistência das pessoas em se reafirmarem monogâmicas. Qualquer situação que não condiz com a escolha delas precisa entrar em desacordo, precisa ser negada de alguma forma, mesmo que de maneira inconsciente, mesmo que sem a intenção de ofender.
Por exemplo, eu tenho um ask.fm, sabem? Aquela rede social na qual as pessoas te mandam perguntinhas? E aí um dia esclarecendo algumas questões sobre RLi para um pessoal interessado, apareceu isso na minha página. Alguém, por algum motivo, não suportava me ver falando nas Relações Livres sem deixar claro que achava aquilo errado. Por que?
Outra vez comentando sobre as fotos de uma orgia que acabaram vazando na internet, eu e umas amigas dizíamos sobre como eram bonitas. A expressão das fotos passava uma sensação muito boa, de amizade, sabe? Todos ali pareciam muito a vontade com a situação, tinham uma cara de alegria, prazer e liberdade. Era muito encantador olhar. Mas algumas pessoas tiveram que dizer “ah, mas eu nunca faria” ou “ah para mim não rola, sou careta”. Para que?
Agora imagine só: Se em cada foto de casal que eu visse, eu resolvesse comentar “olha, muito legal, mas para mim não rola RISOS”, se toda vez que alguém falasse de amor, fidelidade, ou atualizasse o status do facebook para casado eu fosse lá e escrevesse “hum felicidade aí, mas eu nunca faria, não acredito nesse tipo de relação, flwssss”.
Parece tão difícil admirar a felicidade alheia se ela não se encaixa no seu ideal, não é? É como se ela de alguma forma te ameaçasse. Eu sei pessoal, que sendo criados nessa sociedade que já nos apresenta um ideal de casamento desde a infância é difícil aceitar outro tipo de relação de forma natural. Mas bem, elas estão aí, são normais e não tem a intenção de “corromper” o seu estilo de vida.
Tanto é que apontar a normatividade já soa como uma forma de ofensa a algumas pessoas. Elas se sentem caladas, embora na realidade sua voz é que esteja sendo castradora aos que não se enquadram na norma tomada como correta. É sempre bom pensar se essa visão não está encrustada em você antes de responder a pergunta "mas o relacionamento de vocês é fechado?" com "sim, tudo certinho".
Pessoas, relações e sexualidade não seguem um livrinho de regras. Get over it.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Estética e futilidade: Uma associação fundamentalmente misógina medieval


Aviso: Esse texto não tem de forma alguma a intenção de fazer qualquer tipo de julgamento, determinar a necessidade de uma preocupação específica ou desmerecer quem não a prioriza. O objetivo é exclusivamente destrinchar e compreender a participação da misoginia na formação do conceito de futilidade que temos hoje.
Quem tem essa mania de se enfiar em qualquer discussão do facebook às mesas de bar percebe facilmente uma crítica constante nas rodas de intelectuais, cults ou seja lá como a gente (se) chama: A aversão do culto ao corpo.
Usei essa expressão por ser deliberadamente a mais usada, mas na real, muito me incomoda o uso da palavra “culto”, pois não é exatamente disso que se trata. Essa crítica não se foca apenas na idolatria e nos possíveis males causados por uma visão unilateral (pelo contrário, ela por si só é uma visão unilateral), mas abrange todo o conceito de futilidade. Bem explicadinho é assim: Acredita-se que questões como a moda, estética e preocupação visual em geral, são vazias e vão na contramão do que seriam as verdadeiras preocupações sociais. Gostar e dedicar-se a tais assuntos seriam praticamente um atestado de falta de inteligência. Esse conceito de futilidade está disseminado a tanto tempo que nos parece plenamente natural, é uma verdade bem pouco questionada. Entretanto quando voltamos historicamente podemos perceber associações entre a argumentação moderna que sustenta essa afirmação e os dogmas medievais, o que elucida sua origem.
Embora tal conceito possa ser considerado de origem filosófica, precisamos considerar a ligação entre filosofia e igreja, um não está completamente emancipado do outro, especialmente se tratando da Idade Média. E foi nela mesma, a Era das Trevas, que se fixou a depreciação da preocupação estética.
A imagem do homem sábio está ligada a uma aparência desprovida de vaidade. A filosofia passa a dizer que o homem que deseja conquistar o mundo da sabedoria necessariamente se desprende da futilidade terrena que é visual. Essa mesma vaidade criticada aqui é condenada pela bíblia, apenas a nível de exemplo, em Levítico está escrito “Não cortareis o cabelo, arredondando os cantos da vossa cabeça, nem danificareis as extremidades da tua barba.” (19:27). Percebem como a aparência do homem sábio e a do homem de deus são próximas?
Sendo assim, a estética e a sabedoria são colocadas de uma maneira maniqueísta, são opostas. Enquanto a racionalidade é primordial, a estética é secundária. Junte a isso o fato de que a vaidade - e a estética em geral - vem sendo associada as mulheres desde uma historinha que não sei se vocês conhecem, na qual uma mulher é retirada, formada a partir da costela de um homem. Simbolicamente nessa versão da criação a mulher já vem como um pedaço, ou seja, sua essência é secundária, ela já é o próprio adorno.
Nesse contexto o conhecimento,  a razão e a filosofia são colocados como contrários e superiores a toda característica que está ligada ao conceito de mulher. A partir daí foi instituído o medo e a demonização do corpo, das formas e da vaidade.
Resumidamente, a futilidade, que foi conceituada com base em toda a construção bíblica do feminino passou a ser condenada socialmente. E é esse o vestígio que vemos até hoje em uma sociedade intelectualmente moralista que carrega consigo essa visão contraditória da sabedoria e da vaidade.
Para as mulheres restaram as piadas de loira burra. A loira, no caso, é apenas um exemplo do que seria bonito (o que explicita o padrão de beleza europeu vigente) e, consequentemente, fútil. Para os homens restou o diagnóstico de metrossexual caso manifestem preocupação estética afinal, como homens, suas mentes deveriam estar exclusivamente voltadas para o campo da razão.
E ainda acredita-se que neste campo da razão conhecimentos como moda e arte não são válidos, ou são menores do que os outros. Por terem essência estética são secundários e consequentemente ligados ao conceito bíblico de feminino e ao conceito medieval de futilidade.
Esses (pré)conceitos pautados na moral cristã se manifestam socialmente até hoje e são fortes motivos para julgamento. Além disso, se um campo do conhecimento é válido e o outro não, fica claro para qual “devemos” seguir para ter qualquer tipo de reconhecimento. Essa hierarquização é machista e extremamente castradora que não nos permite dar a devida atenção a nossa própria sabedoria e a direção na qual ela nos leva.
Como se precisássemos necessariamente escolher entre dois campos opostos: Corpos e artes ou razão e filosofia. Não precisamos. Não somos essa visão misógina, sólida e chapada dos seres humanos. Nosso conhecimento merece ser valorizado por si, pela atenção que nós damos a ele, pelo nosso desejo. Não pelo julgamento (ainda tão Velho Testamento) alheio.