quinta-feira, 29 de novembro de 2012

A violência de gênero e o amor romântico

Esse texto foi retirado do site Pikara Magazine, a versão original é de Coral Herrera Gómez. Abaixo a tradução, feita por mim (o texto é longo, mas vale muito a pena).


O amor romântico é a ferramenta mais potente para controlar e submeter as mulheres, especialmente nos países em que são cidadãs de plenos direitos e onde, legalmente, não são propriedade de ninguém. 

São muitos os que sabem que combinar o carinho com os maus-tratos serve para destruir a autoestima de uma mulher e provocar sua dependência, por isso utilizam o binômio maus/bons tratos para deixá-las perdidamente apaixonadas e assim poderem dominá-las. 

Um exemplo disso é Káliman, cafetão mexicano que explica como prostituir as mulheres: Escolhe-se as mais pobres e necessitadas, preferencialmente aquelas que estão desejando sair do inferno caseiro em que vivem ou aquelas que precisam urgentemente de carinho porque se encontram isoladas socialmente.  Os cafetões seguem um roteiro para a perfeição: Primeiro as enchem de amor, atenção e presentes durante dois meses, fazendo com que elas acreditem que são as mulheres da vida deles e que sempre terão dinheiro disponível, tanto para as necessidades quanto para os caprichos. Depois jogam-nas cerca de dois dias em um prostíbulo para que as moças “façam terapia”: se resistem, brigam, se enfezam é melhor deixar que passem esse tempo sozinhas. Jamais se pede perdão. É necessário que sofram até que seu orgulho desmorone e se coloquem de joelhos, aceitando a derrota. 

O macho deve se manter firme, mostrar seu desprezo, deixá-la nos momentos de raiva e nunca ter piedade das lágrimas da esposa. Essa técnica lhes assegura que ela atenda seus desejos e trabalhe para ele nas ruas ou em prostíbulos; a maioria delas não tem para onde ir e, segundo eles, uma vez que provam do luxo não querem voltar para a pobreza. 

Esse relato de horror é muito comum no mundo inteiro. Não somente cafetões, mas também muitos namorados e maridos tratam as mulheres como éguas selvagens que precisam ser domesticadas para que sejam fiéis, submissas e obedientes. Muitos seguem acreditando que as mulheres nasceram para servir e amar aos homens. E muitas de nós, mulheres, seguimos acreditando nisso também. 

“Por amor” nos apegamos a situações de maus-tratos, abusos e explorações. “Por amor” nos unimos a homens horrendos, que a princípio parecem príncipes encantados, porém que logo nos enganam, se aproveitam de nós ou vivem às nossas custas. “Por amor” aguentamos insultos, violência, desprezo. Somos capazes de nos humilhar “por amor” e ainda nos gabarmos por nossa intensa capacidade de amar. “Por amor” nos sacrificamos, nos anulamos, perdemos nossa liberdade, perdemos nossas redes sociais e afetivas. “Por amor” abandonamos nossos sonhos e metas, “por amor” competimos com outras mulheres e nos tornamos eternamente inimigas, “por amor” deixamos tudo... 

Este “amor” quando chega, faz de nós mulheres de verdade, nos dignifica, nos deixa puras, dá sentido a nossa vida, nos dá status, nos coloca acima do resto dos mortais. Este “amor” não é somente amor: É também uma salvação. As princesas dos contos de fadas não trabalham: são mantidas pelo príncipe. Em nossa sociedade, alguém que te ame é sinônimo de êxito social, ser escolhida por um homem te dá valor, te faz especial, te faz mãe, senhora. 

Esse “amor” nos prende em contradições absurdas “deveria deixá-lo, porém não posso porque o amo/porque com o tempo ele irá mudar/porque ele me quer/porque é o que tenho”. É um “amor” baseado na conquista e na sedução e em uma série de mitos que nos escravizam, como o de que “no amor tudo pode”, ou o de que “uma vez que se encontra a sua metade da laranja é para sempre”. Esse “amor” nos promete muito, porém nos enche de frustração, nos aprisiona a seres para quem damos todo o poder sobre nós, nos sujeita a papéis tradicionais e nos pune quando não nos ajustamos ao que foi estabelecido para nós. 

Esse “amor” nos transforma também em seres dependentes e egoístas, porque utilizamos estratégias para conseguir  o que queremos, porque nos ensinam que é preciso dar para receber e porque esperamos que o outro “abandone o mundo” do mesmo modo que nós fazemos. Tanto que o “amor” que sentimos nos transforma em seres amargurados que vomitam diariamente censuras e reclamações. Se alguém não nos ama como nós amamos, esse “amor” nos faz vitimistas e chantagistas (“eu que daria tudo por você”). 

Esse “amor” nos leva ao inferno quando não somos correspondidas, ou quando somos traídas, ou quando nos abandonam: porque quando nos damos conta estamos sozinhas no mundo, sem amigas e amigos, familiares ou vizinhos, dependentes de um homem que acredita ter o direito de poder decidir por nós.
Por isso esse “amor” não é amor. É dependência, é necessidade, é medo da solidão, é masoquismo, é uma utopia coletiva, porém não é amor. 

Amamos patriarcalmente: O romantismo patriarcal é um mecanismo cultural para perpetuar o patriarcado muito mais potente que as leis: A desigualdade está aninhada em nossos corações. Amamos desde o conceito de propriedade privada e desde a base da desigualdade entre homens e mulheres. Nossa cultura idealiza o amor feminino como um amor incondicional, abnegado, entregue, submisso e subjugado. As mulheres são ensinadas a esperar e amar um homem com a mesma devoção que se ama a deus e se espera Jesus Cristo. 

A nós mulheres nos foi ensinado a amar a liberdade do homem e não a nossa própria. As grandes figuras da política, da economia, da ciência e da arte tem sido sempre os homens. Admiramos os homens e os amamos a medida em que são poderosos; as mulheres privadas de recursos econômicos e propriedades precisam dos homens para sobreviver. 

A desigualdade econômica por razões de gênero leva a dependência econômica e sentimental das mulheres. Os homens ricos nos parecem atraentes porque tem dinheiro e oportunidades. E porque somos ensinadas desde pequenas que a salvação está em encontrar um marido. Não nos foi ensinado a lutar para que tenhamos os mesmos direitos, mas sim a estar bonita e conseguir alguém que te mantenha, te queira e te proteja, ainda que para isso tenha que ficar sem amigas, ainda que tenha que se unir a um homem violento, desagradável, egoísta ou sanguinário. 

O exemplo mais claro que temos são os chefes do narcotráfico: Tem todas as mulheres que quiserem, tem todos os carros, drogas, tecnologias que quiserem, tem todo o poder para atrais as moças solitárias, sem recursos nem oportunidades. 

A desigualdade estrutural que existe entre mulheres e homens se perpetua por meio da cultura e da economia. Se gozássemos dos mesmos recursos econômicos e pudéssemos criar nossos bebês em comunidade, não teríamos relações baseadas na necessidade, acredito que amaríamos com muito mais liberdade, sem interesses econômicos por medo. E diminuiria drasticamente o número de adolescentes pobres que acreditam que engravidando vão garantir o amor do macho ou ao menos uma pensão alimentícia durante anos de sua vida. 

Os homens também são ensinados a amar a desigualdade. A primeira coisa que aprende é que quando uma mulher se casa com ele é “sua mulher”, algo parecido com “meu marido”, porém pior. Os homens tem duas opções:  ou se deixam amar desde acima (machos alfa), ou se ajoelham ante à amada em sinal de rendição (escravo). Os homens parecem manter-se tranquilos enquanto são amados, já que a tradição os ensina que não devem dar muita importância para o amor em suas vidas, nem deixar que as mulheres invadam todos os espaços, nem expressar em público seu afeto. 

Toda essa convenção é rompida quando a esposa decide se separar e dar início, sozinha, ao seu próprio caminho. Como em nossa cultura vivemos o divórcio como um trauma total, as ferramentas das quais os homens dispõem são poucas: podem se resignar, deprimir, se autodestruir (alguns se suicidam, outros se envolvem em uma luta até a morte, outros dirigem em alta velocidade na contramão) ou reagir com violência contra a mulher que diz amar. 

Aqui é quando entra em jogo a maldita questão da “honra”. A maior exposição do padrão duplo: Os homens perseguem as mulheres de maneira natural, as mulheres devem morrer assassinadas se cedem aos seus desejos. Para os homens tradicionais, a virilidade é um orgulho e está acima de qualquer meta: Pode-se viver sem amor, porém não sem honra. 

Milhões de mulheres morrem diariamente por “crimes de honra” a mando de seus maridos, pais, irmãos, amantes ou por suicídio (obrigadas por suas próprias famílias). Os motivos: Falar com um homem que não seja seu marido, ser estuprada ou querer se divorciar. Um único rumor pode matar qualquer mulher. E essas mulheres não podem construir uma vida própria fora da comunidade: Não tem dinheiro, não tem direitos, não são livres, não podem trabalhar fora de casa, não há forma de escapar. 

Contudo, as mulheres que gozam de direitos também se veem presas em suas relações matrimoniais ou sentimentais. Mulheres pobres e analfabetas, mulheres ricas e cultas: A dependência emocional feminina não distingue classes sociais, etnias, religiões, idades ou orientações sexuais. São muitas em todo planeta as mulheres que se submetem a tirania do “aguente por amor”. 

O amor romântico é, nesse sentido, uma ferramenta de controle social e também um anestesiador. Nos vendem-no como uma utopia possível, porém a medida que vamos caminhando em direção a ele, buscando a relação perfeita que nos faça felizes, achamos que a melhor forma de se relacionar é perdendo a própria liberdade, e renunciando tudo com o objetivo de assegurar a harmonia matrimonial. 

Nessa suposta harmonia, os homens tradicionais desejam esposas tranquilas que os amem sem pedir nada (ou muito pouco) em troca. Quanto mais deteriorada está a autoestima das mulheres, mais elas se vitimizam e mais dependentes são. Por isso mais dificuldade tem em entender que o amor de verdade não tem nada a ver com a submissão, nem com o sacrifício, nem com resistência. 

O casal é o pilar fundamental de nossa sociedade. Por isso a Igreja, os bancos penalizam as solteiras e promovem o matrimônio heterossexual; quando o amor acaba ou se rompe vivemos como um fracasso, como um trauma. Nos desesperamos completamente: Não sabemos separar nossos caminhos, não sabemos tratar com carinho alguém que quer se afastar de nós ou que encontrou uma nova parceira. Não sabemos como administrar as emoções: Por isso é tão frequente a troca de ameaças, insultos, vinganças entre os cônjuges. 

E por isso também tantas mulheres são castigadas, maltratadas e assassinadas quando decidem se separar e reiniciar suas vidas. A quantidade de homens que não possui ferramentas para enfrentar uma separação é muito maior: Desde pequenos aprendem que devem ser os reis e que os problemas são solucionados com violência, impondo sua autoridade. Seus heróis não choram, a não ser que alcancem seus objetivos (como ganhar uma copa de futebol ou exterminar os androides). 

O que nos ensinam nos filmes, contos, novelas, séries de televisão é que as mocinhas dos heróis os esperam com paciência, os adoram, cuidam e estão sempre dispostas para se entregar ao amor quando eles tiverem tempo. As moças da publicidade oferecem seus corpos como mercadoria, as boas moças dos filmes oferecem seu amor como prêmio pela valentia masculina. As boas moças não abandonam seus maridos. As moças más que acreditam ser donas de seus corpos e sua sexualidade, que acreditam ser donas de suas próprias vidas, que se rebelam, sempre acabam tendo seu castigo merecido (a prisão, doença, ostracismo social ou a morte). 

As moças más não são somente odiadas pelos homens, mas pelas boas moças também, porque desestabilizam toda a ordem “harmônica” das coisas quando tomam decisões e rompem com as amarras. Os meios de comunicação de massa nos apresentam os casos de violência contra a mulher como crimes passionais, e justificam os assassinatos e a tortura com expressões como “ela não era uma pessoa muito normal”, “ele havia bebido”, “ela estava com outra pessoa”, “ele, quando descobriu, enlouqueceu”. E se a matou foi porque “algo ela havia feito”. A culpa então recai sobre ela e a vítima é ele. Ela pisou na bola e merece um castigo. Ele merece se vingar para acalmar sua dor e reconstruir seu orgulho. 

A violência é um componente estrutural de nossa sociedade desigual, por isso é necessário que o amor não se confunda com possessão, da mesma forma que não devemos confundir a guerra com “ajuda humanitária”. Em um mundo onde utilizamos a força para impor ordens e controlar as pessoas, onde exaltamos a vingança como mecanismo para administrar a dor, onde utilizamos o castigo para corrigir desvios e pena de morte para reconfortar os lesados, é necessário mais do que nunca aprendermos a nos querer bem. 

É vital que entendamos que o amor deve estar baseado no bom trato e na igualdade. Porém não somente ao cônjuge, mas a sociedade inteira. É fundamental estabelecer relações igualitárias, nas quais as diferenças sirvam para nos enriquecer mutuamente, não para submetermos uns aos outros. É também essencial empoderar as mulheres para que não vivamos sujeitas ao amor e também ensinar aos homens a administrar suas emoções, para que possam controlar sua ira, sua impotência, sua raiva e seu medo, e para que entendam que as mulheres não são objetos pessoais, mas sim companheiras de vida. 

Além disso, devemos proteger os meninos e as meninas que sofrem em casa a violência machista, porque terão que suportar a humilhação e as lágrimas de sua heroína, sua mãe, porque terão de aguentar os gritos, os tapas e o medo, porque terão de viver aterrorizados, porque são órfãos, porque o mundo deles é um inferno. 

É urgente acabar com o terrorismo machista: Na Espanha o machismo já matou mais pessoas que o terrorismo nos Estados Unidos. No entanto, as pessoas se indignam mais ante ao segundo, saem para as ruas para protestar contra a violência, cuidam de suas vítimas. O terrorismo machista é considerado uma questão pessoal que afeta determinadas mulheres, por isso muita gente que ouve gritos de socorro não reage, não denuncia, não intervém. 

Dando uma olhada nos números, podemos perceber que o pessoal é político e também econômico: A crise acentua o terror, pois muitas não podem considerar se separar, e o divórcio se dá para os casais que podem se permitir isso economicamente. Uma prova disso é que agora se denunciam menos casos e em algumas ocasiões as mulheres são deixadas para trás; com os custos judiciais aprovados na Espanha, as mulheres mais humildes nem se dispõem a ir denunciar: apelar para a justiça é coisa de rica. 

É urgente trabalhar com homens (prevenção e tratamento) e proteger as mulheres e seus filhos e filhas. Devemos empoderar as mulheres, porém devemos trabalhar também com os homens, se não toda luta será em vão. É necessário promover as políticas públicas para que tenham um enfoque de gênero integral e é necessário que os meios ajudem a gerar uma rejeição generalizada a essa forma de terror instalado em tantos lugares do mundo. 

É necessária uma mudança social, cultural, econômica e sentimental. O amor não pode estar baseado na propriedade privada, e a violência não pode ser uma ferramenta para solucionar problemas. As leis contra a violência de gênero são muito importantes, porém precisam vir acompanhadas de uma mudança em nossas estruturas emocionais e sentimentais. Para que isso seja possível temos que transformar nossa cultura e promover outros modelos de relacionamentos amorosos que não estejam embasados em lutas de poder para dominarmos ou nos submetermos. Outros modelos de femininos e masculinos que não estejam embasados na fragilidade de umas e na brutalidade de outros. 

Temos que aprender a romper com os mitos, a nos livrar da imposições de gênero, a dialogar, a desfrutar das pessoas que nos acompanham pelo caminho, a nos unir e nos separar com liberdade, a tratarmos com respeito e ternura, a assimilar as perdas, a construir relações bonitas. Temos que romper com os ciclos de dor que herdamos e reproduzimos inconscientemente, e temos que libertar as mulheres, os homens e os que não são nem uma coisa nem outra, do peso das hierarquias, da tirania dos papéis e da violência. 

Temos que trabalhar muito para que o amor se expanda e a igualdade seja uma realidade para além dos discursos. Por isso esse texto é dedicado a todas as mulheres e homens que lutam contra a violência de gênero em todos os pontos do planeta: Grupos de mulheres contra a violência, grupos de autorreflexão masculina, autores e autoras que investigam e escrevem sobre esse fenômeno, artistas que trabalham para dar visibilidade a esse mal social, políticos e políticas que trabalham para promover a igualdade, ativistas que saem às ruas para condenar a violência, professores e mestres que fazem seu trabalho de sensibilização nas aulas, ciberfeministas que recolhem assinaturas para dar visibilidade a assassinatos e impulsionar leis, líderes e lideranças que trabalham nas comunidades para erradicar o maltrato e a discriminação das mulheres. A melhor forma de lutar contra a violência é acabar com a desigualdade e o machismo: analisando, tornando visível, desconstruindo, denunciando e reaprendendo junt@s.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Violência simbólica e agressores em potencial


Quando se fala em violência contra a mulher, a indignação é consenso. Por sorte, já chegamos em um nível de repugnância social imediata ao imaginar um marido espancando a sua esposa. Particularmente, eu nunca ouvi ninguém dizer em público “se o jantar não está quente tem que bater mesmo!”. E isso é bom. É bom que já tenhamos evoluído a ponto de que a violência doméstica não seja praticada no meio da rua em plena luz do dia e nem motivo de orgulho (converse com suas avós, pergunte como era a vida das mães delas, das vizinhas e se prepare para as histórias que irá ouvir).

Entretanto, esse mesmo tema é extremamente complexo quando a cena em questão não se enquadra no imaginário das pessoas. A indignação que falei só se dá a um nível básico. Como falar de homens que agridem as companheiras é algo muito generalizante, quem escuta se sente à vontade para formar a estrutura que quiser em sua cabeça. E na maioria dos casos, a cena visualizada pelas pessoas é extremamente pré-moldada, existem nela papéis que devem estar sendo cumpridos, caso contrário, não se enquadra. Isso fica muito claro quando ao invés de falarmos de violência de gênero, falamos de exemplos práticos do dia-a-dia. Falamos das mulheres de verdade que foram agredidas e esperamos as reações.

A mulher que não deve ser agredida pelo marido tem um papel muito claro: ela é uma trabalhadora, boa esposa, boa mãe. Ela é casta, mas cumpre sua função sexual para agradar ao marido. Ela faz de tudo para deixar a casa sempre limpa e arrumada, a comida sempre na mesa e de vez em quando, até pede uma ajudinha com a louça, mas deixa passar se estiver na hora da corrida ou do futebol. Nessa mulher não se bate nem com uma flor.

Entretanto, na mesma proporção que não ouço as pessoas dizendo que “mulher tem mais é que apanhar mesmo”, ouço os aplausos às clássicas surras das novelas da Globo. Vez ou outra, uma mulher é agredida, ofendida e humilhada pelos mais variados motivos. A última vilã, Carminha, apanhou de seu marido ao ser “desmascarada”. Essas mulheres, por não se enquadrarem na caixa da “mulher ideal” incutida no imaginário popular pelos mais diversos motivos (desde falta de afeto à raiva incontrolável mesmo), imediatamente perdem o direito à defesa.

Foto tirada pela Lari Schip no Ato pelo Fim da Violência Contra a Mulher em Curitiba.
Eliza Samúdio, que não foi só agredida, mas morta pelo seu companheiro, então, cometeu o terrível crime de: ser vadia. Ela não era casada com o jogador, nem uma “namorada séria”, o que já a deixa fora da caixa da mulher ideal. Não obstante, também já havia se envolvido com pornografia e, bem, era linda de uma forma bem padrão. Me arrisco sim a dizer que se Eliza não fosse uma mulher tão padrão de beleza, não estaria sendo tão julgada por esse aspecto, estaria sim sendo rechaçada publicamente por outro crime: o de ser feia; mas não estaria respondendo tanto por sua sexualidade.

É preciso olhar mais a fundo. Tirar a violência doméstica do campo isolado em que ele se encontra e ver que ela nada mais é do que fruto da violência simbólica. Nessa entrevista, o diretor do filme Amor? fala sobre as relações representadas no documentário. Ele diz que embora todas as histórias de fato tenham a agressão física, ela acaba sendo apenas um ponto, um detalhe. A agressão é o ponto material, fruto de toda uma violência simbólica.
Esse linchamento moral constante que é feito das mulheres divide-as entre as “mulheres de verdade” e as que são qualquer outra coisa (e tenho certeza que se você usa o facebook, já deve ter visto algo do tipo). E aqui é importante falar do chamado “perfil de agressor”, entre muitos outros fatores, um homem que agride jamais bateria em uma mulher... de verdade. Uma mulher que não merecesse, uma mulher que estivesse sempre dentro da caixa da mulher de verdade, que apanha do marido cruel que ele colocou em sua mente. Ele não é um marido cruel. Ele apenas quer as coisas certas.
Do Machismo Chato de cada dia.

Julgar vítimas como possíveis causadoras, merecedoras de sua própria morte é uma demonstração clara de alguém que não acha que o respeito é algo inerente que todos nós merecemos, independente da nossa beleza ou sexualidade, independente de estarmos dentro ou não do padrão moral que o outro julga como correto. “Mulher de verdade” somos todas nós, e quando falamos de “violência contra a mulher”, estamos falando também de todas. Estamos falando, inclusive, dessa violência velada, verbal, psicológica, que constantemente nos julga, destruindo-nos como pessoa e não permitindo que entremos em contato com quem nós verdadeiramente somos por medo. Medo de, de repente, não se sentir mais incluída no grupo das mulheres de verdade, e aí toda e qualquer agressão contra nós será legitimada.

Violência não se justifica, se elimina. E se elimina cortando o mal pela raiz, tirando da nossa cultura toda essa normatização de ódio às mulheres.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

A carne mais barata do Mercado Livre


Nem uma semana depois do dia da Consciência Negra, apenas alguns dias depois de eu ter escrito um texto cujo título é "a carne mais barata", falando da representação dos negros nas mídias, a querida Charô, do Blog Contravento, me informou que alguém achou engraçadão botar um anúncio no mercado livre. "Vendo escravos". R$15,00. Quinze reais, amigos. É o preço da carne negra no mercado livre. E ainda sou obrigada a ouvir por aí que tudo é humor e que racismo não existe. Veja só o print:








Deixe-me explicar uma coisa, o fato de ser humor não exclui o discurso racista. Essa brincadeirinha aí é crime. Sabe aquele livrinho chamado "Constituição Federal/88"? pois é, ele versa o seguinte:


"Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:



XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;"


Adelaide, o racismo
no horário nobre da TV

O humor racista é parte de uma cultura de ódio enraizado. Nos chocamos quando vemos esse tipo de coisa acontecer assim, tão abertamente quanto no anúncio do mercado livre, em que o ódio pode ser visto a olho nu. Mas ele se esgueira de muitas outras maneiras. Seja através do humor blackface, a exemplo de Adelaide, personagem do Zorra Total, ou de um jocoso comentário sobre o "cabelo ruim" de alguém. Todas essas manifestações que passam batido no nosso dia-a-dia merecem atenção. Não dá para se calar diante da perpetuação do discurso racista em comentários, programas de TV, na internet e etc. O discurso só muda de forma, mas continua possuindo o valor racista opressor.



Dia desses eu discuti com um contato meu no facebook por causa dessa publicação:
humor machista e racista


Vejamos, além de machista, por determinar que a mulher é objetificável, que seu corpo deve atender ao desejo de um homem, é principalmente racista, pois os quadrinhos retratam uma mulher negra sendo humilhada por um homem ao ser comparada com uma mulher branca. Quando confrontei o meu contato no facebook a resposta é que eu estava vendo pêlo em ovo. Claro, que foi. Afinal, racismo não existe, não é?

Quem não se lembra do rapazinho do meme "Para nossa alegria!"? Só digo uma coisa: pode ter sido engraçada a forma entusiasmada como ele canta a música, eu ri também, muita gente riu... mas é só isso mesmo? Fico me perguntando se fosse uma pessoa branca ali cantando da mesma forma, teria virado meme? Rir de gente negra e pobre é o modus operandi da nossa sociedade, vamos filtrar melhor o que nos faz rir, galera. Vamos ficar atentos à esse humor que se fazia em 1900. Não queremos um mundo sem graça, queremos humor sim, mas queremos que ele não humilhe as minorias historicamente oprimidas. O problema é que há tanto tempo o humor é feito dessa maneira que as pessoas parecem não querer mais rir de outra forma, somente a humilhação é engraçada.


Para denunciar o racismo na internet (o absurdo anúncio do mercado livre, por exemplo) é só entrar no site safernet

terça-feira, 20 de novembro de 2012

A carne mais barata

Essa é a semana da Consciência Negra, que serve para nos fazer refletir sobre a inserção do negro na sociedade. Infelizmente, não estamos de parabéns. Temos aí uma constituição que nos posiciona como iguais, o racismo é crime inafiançável. E ainda sim, somos racistas. Somos MUITO racistas. Fato que é flagrante quando tocamos no assunto mídia. Tentarei focar esse texto em observações pessoais sobre a internet e a TV, sobre como nos posicionamos nesses veículos a respeito da aceitação e representação dx negrx e, portanto, também sua inserção.

Na internet, covardes se escondem sob a máscara do anonimato e se acotovelam entre redes e portais para destilar seu ódio, criam sites hospedados em outros países para nossa legislação não alcançá-los. Usam o humor para agredir, justificando-o pelo que ele não é: politicamente incorreto. Não há incorreção em ser agressor e não transgressor, isso é trivial, é comum, banal, ordinário. Ou seja, nada original. E nem sequer é humor, ou então voltou a ser engraçado chamar negrx de macacx. Espera, nunca foi! A piada nunca teve graça. O que é engraçado para essas pessoas é apenas o ataque gratuito, rir da humilhação. Aí sim, posso afirmar que a humilhação dxs negrxs sempre foi motivo de júbilo para uma parcela da população. Herança do nosso passado escravagista, demonstração evidente da igualdade que nunca alcançamos.
Demonstração de racismo
contra as cantoras Pepê e Neném

As redes sociais têm provado ser território hostil para xs negrxs. Ultimamente a coisa tem piorado, os racistas estão amparados nas redes, por milhares de pessoas que perderam o medo ou a vergonha de demonstrar ódio, ou até mesmo pela anuência da administração dessas redes. A punição ao crime de racismo parece estar caindo em desuso, ao menos na internet. Lembrando que estamos num país em que se fala em "leis que não pegaram", que são uma falha em nosso sistema jurídico, penal e porque não dizer, também social e cultural. Leis que não são devidamente amparadas não tem o efeito de mudar uma cultura de ódio tão enraizado e que se propaga na medida em que nada é feito para contê-lo. Existem alguns casos de condenação ao ódio racista nas redes, mas são poucos e as penas são leves.

Recentemente o facebook passou a responder às denúncias que fazemos contra páginas, comentários e etc. E se antes o silêncio incomodava, as palavras parecem pesadas demais para suportar. Como lidar quando você está diante de clara expressão de preconceito e o facebook responde que não há nada demais no conteúdo? Todas as denúncias que fiz foram rejeitadas. TODAS.


Imagem da página de
Facebook Preta e Gorda

Felizmente a internet também é palco de ativismo contra o racismo e existem páginas sensacionais que fazem a diferença. Estou completamente apaixonada pela página "Preta & Gorda", por exemplo. Que faz um trabalho lindo de divulgação de imagens bodypositive, haja vista que o padrão de beleza vigente é racista e gordofóbico. Incentivar a autoestima das mulheres é muito importante.



Suburbia
Se na internet o cenário está piorando, pode-se dizer que em outras mídias ele não melhorou. Li alguns textos sobre as duas produções da Rede Globo com protagonismo de personagens negrxs, "Lado a Lado" e "Suburbia", e o que li aqui, aqui e aqui não é animador. Continuamos escrevendo histórias de negros escravos e brancos salvadores. Alguém por aí deve achar que é um grande favor axs negrxs não representá-lxs como bandidos, mas como incapazes de salvar a si mesmos. Como pessoas que são "quase" da família. Os "quase" aceitos, sempre "quase". Representá-los como bandidxs e representá-lxs como incapazes são duas faces de um mesmo problema.


Lado a Lado
Lado a Lado, que possui uma representação interessante, apresenta belíssimas cenas, um elenco formado por muitxs negrxs, é uma pena que isso seja possível apenas em novelas cuja temática seja a escravidão. O problema é: xs negrxs são a maioria da nossa população, ainda sim, só se lembram de representá-lxs na TV em novelas de época. Sem contar que as novelas de época atuais pegam bem leve em representar esse período, reforçando a idéia de que o branco opressor não era tão mal assim. Compreendo que seja doloroso rever as cenas de açoite dxs negrxs em novelas mais antigas que retratavam o Brasil antes da abolição (no caso de Lado a Lado, é pouco tempo após, portanto a temática é do negro escravo é bastante presente), mas é bastante danoso cobrir os olhos para o horror do passado. Se eu tenho alguma resposta sobre como chegar ao meio termo? Não. Gostaria, mas não tenho. 

O protagonismo não significa muito quando não vem revestido de cuidado com o contexto. Houve uma única "Helena" negra de Manoel Carlos, interpretada por Thaís Araújo. Embora a personagem fosse diferente do estereótipo que vemos sempre, pois era negra e rica, modelo internacional, com carreira de sucesso e etc. é bom que relembremos uma cena, gravada de forma indelével em minha memória. A cena em questão mostra a personagem Tereza, interpretada por Lilian Cabral, esbofeteando Helena, que se ajoelhou em sua frente para lhe pedir perdão. Alguns dirão que ela não apanhou por ser negra, mas por ter indiretamente causado o acidente que fez com que a filha de Lilian Cabral se tornasse tetraplégica, mas queridos, o signo é relevante. A imagem que já está gravado em nossa mente é o da mulher branca coagindo a mulher negra, uma cena que não pode ser jamais dissociada de um contexto. Não desprezem essa representação, pois ela tem significado histórico e cultural. É a sinhá e a escrava mais uma vez. 

Tereza bate em Helena

E já que mencionei a protagonista de Thaís Araújo, que até onde me lembro já teve três papéis principais, vamos lembrar de outra protagonista recente: Maria da Penha, a empreguete. Não é curioso que numa novela com três protagonistas apenas a mulher negra fale "incorretamente"? Curioso é modo de falar, gente. Essa presunção de que x negrx fala "incorretamente" ou que é iletrado é racismo mesmo. Além de ser uma representação bastante elitista, dada a profissão da personagem que também é estigmatizada, por ter uma baixa remuneração e ser essencialmente uma das profissões dominadas por mulheres. Assim, combina-se numa só personagem três tipos de preconceito: o machismo, elitismo e o racismo. E é claro, devo ressaltar que Maria da Penha foi a única das três empreguetes que sofreu assédio sexual em seu ambiente de trabalho.

A mulher negra possui outro espectro não contemplado pelos estereótipos “bandido” ou “incapaz”. A mulher negra é objeto. Há pouquíssimo tempo, na novela Fina Estampa, tivemos um exemplo marcante dessa questão. Não sei se todos se lembram, mas Fina Estampa era uma novela urbana. E dentro dessa ambientação de uma grande cidade, uma mulher negra era a única personagem de todo o elenco a banhar-se sensualmente ao ar livre com uma mangueira, cena que se repetiu diversas vezes até o fim da novela. Dagmar, sua flor nos cabelos, seus banhos noturnos sob a lua. Uma romantização do ódio contra as mulheres negras. A hipersexualização da mulher negra nas novelas é recorrente. Dagmar não foi a primeira, nem a última. Vale lembrar que na mesma novela havia a personagem branca e loira chamada Teodora, também uma mulher desejada, contudo em momento nenhum de toda a novela ela chegou perto de interpretar algo próximo dos pitorescos momentos sensuais de Dagmar, momentos em que o racismo e o machismo se misturam ao ponto de se tornarem indissociáveis. A objetificação da mulher branca e da mulher negra tem contextualizações distintas, embora ambas sejam violentas.

O Cirilo de 20 anos atrás
A forma como apresentamos xs negrxs (ou pior ainda, não representamos) nas mídias interfere diretamente na forma como os negros são acolhidos na nossa sociedade e vice-versa. É um sistema opressivo que se retroalimenta. A questão da representação é tão patente que estamos fazendo um remake de uma novela que inclusive, já era um remake! A primeira versão de Carrossel foi ao ar nos anos 60 na Argentina e teve sua regravação no México em 1989. Exibida no Brasil em 1991, permaneceu na "memória afetiva" do brasileiro ao ponto em que, 20 anos depois (ou 50 anos, se contarmos a primeira versão já realizada), estamos fazendo mais um remake. O antigo e requentado racismo está lá em todas as versões. O Cirilo Rivera, negro e pobre, desprezado, inocente, sonhador e passivo. Sofre com o racismo de Maria Joaquina, a branca e rica que ele nunca deixa de amar. Eu me recordo de quando assisti Carrossel. Na época eu não sabia o que era o racismo, pois era muito pequena, mas já nas primeiras salas de aula que frequentei, havia um "Cirilo". Havia um negro que era chamado por esse apelido que nada tem de abonador. E me surpreendi (na verdade nem sei porque ainda me surpreendo) com o vídeo que vi, do @Lasombraribeiro, falando que sua filha tem sofrido o mesmo preconceito. Está sendo chamada de Cirila na escola. Estamos falando de um espaço de tempo de 20 fucking anos. VINTE. Duas décadas. Estamos falando da geração Y, que já aprende a viver com um aparelho com internet nas mãos. E o velho preconceito continua em tantas salas de aula por aí, atacando a autoestima de meninos e meninas. Especialmente a das meninas, que sabemos também são alvo do machismo cotidiano.

Eu até poderia pular essa parte do texto, pois falar do Zorra Total, é chutar cachorro morto, uma vez que ESTÁ TUDO ERRADO. TUDO. Se duvidar cada quadro dá um texto para esse blog. Sabe quando no início do texto eu disse que chamar negro de macaco não tem graça? Pintar branco de negra também não. Qual seria o motivo que leva um ator branco a se pintar de negra para representar? Não seria mais prático chamar uma atriz negra? O motivo é o mesmo de sempre... Humilhação. Um branco ridicularizando a pele negra. Só que no caso da Adelaide, o ator que representa a personagem é negro. Um negro, pintado de negro. Bom, não sei se ele se identifica como negro, mas certamente possui traços característicos da raça negra. O que é bastante flagrante nesse caso é o alvo da chacota: a mulher negra. É isso que é exibido todos os sábados com a personagem Adelaide, do Zorra Total. Uma personagem, negra, pobre, desdentada, maltrapilha, que faz comentários desdenhosos de características dxs negrxs como por exemplo, a compleição de seus cabelos. Alguém realmente pode tentar justificar isso sem resvalar no racismo mais uma vez? Sem desqualificar as mulheres negras? Será que em algum lugar nesse país não tem uma mulher negra sendo chamada de "Adelaide" jocosamente apenas por ser negra?

A questão aqui não é esconder que o racismo existe, ou fingir que não existiu escravidão, mas é mesmo necessário que nos tempos de hoje, ainda estejamos sempre diante dos mesmos personagens, com novos atores, novas técnicas de filmagem, nova roupagem, mas o mesmo conceito? Porque não podemos representar negros em produções televisivas sem tender ao ódio ou ao paternalismo? Me recordo de alguns poucos exemplos interessantes e não estereotipados nas novelas recentes. Poucos. E mesmo entre esses, há certeza de que em certo momento os signos não são lançados novamente de forma velada ou pouco criteriosa? 

Caitlin Moran, feminista, autora do
premiado livro "Como Ser uma mulher"
Fora do panorama nacional, há pouco tempo a feminista Caitlin Moran deu uma declaração bastante controversa sobre as críticas que foram feitas ao elenco da série Girls, que não conta com atrizes ou atores negros. Caitlin disse que não dá a mínima para esse fato. Não estamos falando de uma pessoa que está de fora dos movimentos sociais, mas de alguém que se afirma feminista (e é, já que não existe um teste de admissão). Acho complexo pensar uma série que se passa em N.Y., num país com tamanha segregação racial, com alta concentração de imigrantes latinos, indianos, chineses e etc, sem que não exista sequer uma pessoa que não seja branca (considere que essa questão da imigração é muito importante no feminismo americano). Calar-se diante da falta de representatividade de grupos minoritários em uma série que tem uma temática feminista é muito errado. É White privilege, ou privilégio branco. Nós, feministas brancas, também devemos atentar para os nossos próprios privilégios, pois eles existem. Na série Girls, em específico, eu só posso lamentar profundamente que não exista uma protagonista negra. A série é muito boa, retrata de forma muito humana, multifacetada, os problemas daquelas jovens de 20 e poucos anos que ainda estão começando a vida adulta, lidando com relacionamentos falidos e opressores, com pouca grana... enfim, uma série sobre a vida imperfeita dessas moças, eu acredito que o panorama de uma jovem negra nas mesmas condições seria muito enriquecedor para a série. O tempo de se pensar num casting completamente branco já passou, nos dias de hoje isso deveria ser inimaginável.

Certamente esse foi um ano decisivo para xs negrxs em nosso país, com a vitória histórica no STF pelo direito às cotas em universidades. Por outro lado, o conservadorismo está crescendo e ainda hoje, as palavras da música de Elza Soares fazem sentido: A carne negra é a mais barata do mercado. E se olharmos a fundo para a situação, podemos estreitar melhor esse jargão, veremos que a carne da mulher negra é ainda mais barata. Infelizmente, ainda precisamos caminhar muito enquanto sociedade para que isso deixe de ser verdadeiro.

Esse texto faz parte da Blogagem Coletiva Mulher Negra. Durante os dias 20 e 25 de novembro, uma aproximação entre o Dia da Consciência Negra e o Dia Internacional da Não Violência Contra a Mulher. Acompanhe aqui.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Desenhando: Mulheres e crianças primeiro e outros privilégios


A princípio penso que esse tema pode ser meio óbvio, especialmente para quem já conheceu o feminismo há algum tempo. Mas basta começarem as discussões sobre opressão que o argumento sobre os privilégios femininos é levantado, geralmente acompanhado da crença de que os tais “privilégios” tem relação com o feminismo.

Portanto acho necessário elucidar. Um post bem simples explicando ponto a ponto porque as desigualdades que, teoricamente, favorecem a mulher não tem relação alguma com feminismo, mas pelo contrário, na maioria das vezes são consequência de uma sociedade machista.

Mulheres e crianças primeiro
O clássico “ser feminista até que o navio começa a afundar”. Bom, vamos lá: Legalmente é função dar prioridade aos mais vulneráveis. Por isso temos lugares preferenciais para idosos, gestantes, pessoas com bebês ou crianças de colo ou que possuam alguma deficiência ou dificuldade de locomoção. No caso, imagino que vocês concordem comigo que bebês e crianças são bem vulneráveis, realmente precisam de ajuda e, portanto, de preferência. Acontece que nossa bela sociedade (machista, não feminista, lembram?) determinou que o cuidado dos filhos era muito mais obrigação das mulheres do que dos homens. Pense: Quantas mães solteiras você conhece? Quantos pais solteiros? Quantas vezes você ouviu em uma entrevista alguém perguntar para um homem como ele concilia carreira e filhos? Só escutamos o chamado de mulheres e crianças porque as crianças são vulneráveis, precisam ser protegidas e precisam de um acompanhante e adivinha quem em 80% dos casos é esse acompanhante? Uma mulher. Mas pode ficar tranquilo que se você for um desses pais que cria os filhos e o seu navio se chocar com um iceberg você pode pegar suas crias no colo e pedir um espacinho logo no início do bote salva-vidas sim, ok?

Licença maternidade
Mais uma vez entra em cena o pressuposto de que cuidar dos filhos é obrigação exclusiva da mulher. A licença para as mulheres atualmente é de 120 dias enquanto os homens só tem direito a quatro. E aqui pasmem: A maioria das feministas que conheço é a favor de que a licença paternidade seja estendida. Que possamos dividir com nossos companheiros o dever e o prazer de criar nossos filhos. Não é privilégio algum que sejamos incumbidas dessa função sozinhas, que não tenhamos direito a ajuda e que o vínculo entre papai e bebê não seja considerado importante.

Alistamento obrigatório
“Se querem igualdade por que não lutam também pelo alistamento obrigatório?” A resposta para essa pergunta é: Porque seria estúpido. Posso estar enganada, mas não conheci até hoje sequer uma feminista que defenda com unhas e dentes que o alistamento deva ser obrigatório. Eu vou fazer uma comparação que talvez soe meio esdrúxula, mas acho que ajuda a compreender: Por que então não lutamos para que os homens também sejam estuprados? E para que também sejam vítimas de violência doméstica? Porque não queremos essas coisas! O feminismo luta pela igualdade sim, mas por favor, que essa igualdade venha acompanhada de liberdade. Que o exército pare de ser essa instituição machista, homofóbica, engessada que obriga os homens a se alistarem e constantemente veta mulheres, gays, trans* por não acreditar que sejam capazes de ter força e de lutar. Que as pessoas possam decidir por si mesmas, individualmente, as instituições das quais querem ou não fazer parte.

Homem R$ 20 Mulher R$ 15
Ah, o bom e velho pagar menos na balada. Isso sim é um privilégio! A frase “é feminista até dizer que mulher paga menos” sempre nos serve a carapuça. Só que não. Primeiro, abram os olhos: Não são todos os lugares que trabalham esse esquema. Ambientes GLS, LGBT* e outros lugares chamados mais “alternativos” não costumam fazer esse tipo de distinção nos preços. Isso se restringe aos ambientes héteros de classe média e tem um motivo. E é um motivo óbvio, vocês sabem disso. O preço para as mulheres é menor apenas para atrair o público masculino hétero que, teoricamente, só se interessa em frequentar um lugar caso “tenha muita mulher”. Isso não tem nada a ver com feminismo. Inclusive não são poucos os casos que vemos nesse tipo de ambiente que violentam a mulher. A cultura é de que se está pagando menos ela está ali para o entretenimento masculino, portanto está ok segurá-la pelo braço enquanto ela passa, puxar o cabelo dela, apertar a bunda, beijá-la repentinamente sem consentimento e lembram do caso da moça que teve o braço quebrado por negar um rapaz? Então. Pergunte para as mulheres que você conhece que frequentam esses lugares se elas não passaram por esse tipo de situação invasiva e objetificante.

Aposentadoria
"Não entendo como podem existir homens que maltratam suas mulheres"
Essa pesquisa explica bem o porque de as mulheres se aposentarem mais cedo e não é difícil entender: Nós trabalhamos mais. Sim, por que lembram da cultura machista que eu falei lá nos primeiros tópicos? Aquela que acha que temos que cuidar dos filhos sozinhas? E da casa? E do marido? E do cachorro? E dos preparativos dos churrascos nos finais de semana e das festas de final de ano?  Além disso as mulheres passam muito mais tempo cuidando da estética, é depilação, maquiagem, e outros mil afazeres que sim, são exaustivos e socialmente necessários. Essa jornada não é "frescura" e não é uma opção nossa, vale lembrar que além do linchamento social as próprias empresas cobram isso: recepcionistas, comissárias de bordo, jornalistas de TV e muitos outros empregos exigem que as mulheres estejam fisicamente enquadradas em um determinado padrão. Pois bem, então essa tal cultura que nos engessa nesses papéis de gênero obriga as mulheres a terem o que chamamos de “jornada tripla” e tenho certeza que você já ouviu falar disso. Não dá para partir de um princípio de isonomia simplesmente inexistente e dizer que igualdade mesmo seria lutar para que nos aposentássemos ao mesmo tempo sendo que na prática a sociedade está organizada de uma forma que ignora a divisão igualitária do trabalho (essa sim, uma luta feminista). Para que esses “bônus” sejam alterados é preciso que de maneira geral não ajam tantos “ônus” por conta da estrutura patriarcal.
Bom, tentei focar nos argumentos que mais ouvi por aí para justificar as desigualdades de gênero. Esses argumentos isolados que tem por objetivo distorcer a palavra “feminismo” e ignorar as opressões diárias que as mulheres sofrem concentram-se no raso, na consequência, sem se aprofundar na raiz do problema e entender suas origens. O feminismo é uma teoria de igualdade e liberdade que em nada se assemelha com os papéis sociais que o machismo nos deu de presente como se fossem vantagens.

Leia também: "E a igualdade?"

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Eu, balzaca e feminista


Eu nem sei com qual rapidez os anos deslizaram por entre os meus dedos, mas sei que parece ter durado menos do que durou. Eu tenho 29 anos. Portanto, doente terminal. Apenas um ano de vida me resta. Ao menos é assim que o senso comum desenha mais um estereótipo sobre mim. Aos 30 anos, eu já devia ter uma família (monogâmica e heteronormativa) formada, estar casada, até poderia ter uma carreira, se também fosse mãe e esposa. A tal jornada tripla, o destino certo da mulher de 30 anos. Minha beleza, já deteriorada pelas primeiras marcas do tempo (uma ruguinha aqui, cabelo branco ali, seio caído acolá), não é mais admirada. A juventude é parte inseparável daquele padrão de beleza do qual sempre falamos aqui no blog. Aos olhos da nossa sociedade machista, a beleza é o bem mais precioso que uma mulher carrega, sem ela, não existimos. Com ela, existimos apenas para deleite masculino.

Enquanto mascus bradam por aí que a vida deles começa aos 30, a minha deveria estar no fim. Sambando na cara da sociedade, nunca me senti tão bem comigo mesma quanto agora. Ok, há problemas aqui e ali, mas somente agora começo (sim, COMEÇO) a me entender mais claramente e a amar a pessoa que sou, ou ao menos a pessoa que me tornei. Importa bem pouco para mim a tal da ruguinha. A verdadeira mudança que vejo na pessoa que sou e naquela que fui veio de dentro. E é incrível como aconteceu em pouco tempo.

Balzac, em seu famoso livro, dizia:

"Uma mulher de trinta anos tem atrativos irresistíveis. A mulher jovem tem muitas ilusões, muita inexperiência. Uma nos instrui, a outra quer tudo aprender e acredita ter dito tudo despindo o vestido. (...) Entre elas duas há a distância incomensurável que vai do previsto ao imprevisto, da força à fraqueza. A mulher de trinta anos satisfaz tudo, e a jovem, sob pena de não sê-lo, nada pode satisfazer". 

Sobre essa citação, como diria Raul Seixas, eu acho tudo isso um saco. Uma mulher de 30 anos não é diferente de nenhuma mulher. Ficar categorizando quem é melhor e quem é pior não faz bem a nenhuma de nós. O que nos difere não é a nossa idade, são experiências pessoais que podem ou não interferir na nossa vida individualmente e não coletivamente. E é nesse ponto que o feminismo fez a diferença na minha vida: 
Eu preciso do feminismo para que a sociedade entenda que minha vida não acaba aos 30 anos.

Aos quase 30 anos, eu olho para trás e vejo como fui tola em ter sido calma, quieta, submissa, calada, opressora comigo mesma e com outras mulheres. E nem tem tanto tempo assim. Eu costumava dizer todas aquelas coisas absurdas contra as quais eu luto atualmente. Por exemplo: Eu dizia que as mulheres deveriam se dar ao respeito, que é muito feio mulher que bebe, e, o pior de tudo, havia momentos em que eu dizia até mesmo que se a mulher apanhou, fez por merecer. A minha falta de empatia por outras mulheres resvalava num pedido de aceitação dentro dos grupos em que eu andava. Grupos predominantemente masculinos. Não é que esses assuntos fossem exaustivamente discutidos em nossos encontros, mas há um machismo que paira sobre algumas cabeças e que acaba contaminando a todos, de formas e intensidades diferentes. A objetificação é só uma das facetas desse machismo que se revela em um ou outro comentário. Aqui e ali, meio encoberto por uma conversa casual sobre qualquer coisa, não necessariamente sobre a questão de gênero. E assim, lentamente, eu me deixei levar.

Aliás, eu demorei demais para me dar conta do quanto eu fui colonizada. Eu realmente sou uma pessoa tímida, mas o meu silêncio quando estava com eles não era timidez, era só silêncio. Lembro-me que uma amiga, que a eras me conhecia, me disse naquele momento da minha vida que a minha luz tinha apagado, que eu estava sempre calada. Na época eu compreendia a verdade naquelas palavras mas não conseguia identificar quais processos me levaram à esse comportamento. E posso dizer sem sombra de dúvidas, observando o meu passado, que foi a minha aproximação com homens. Não todos, vale frisar. Há no meio desse grupo grandes amigos, mas mesmo entre as pessoas que mais amamos existe uma coisa chamada "comportamento de grupo", que por vezes se manifesta. E dentro desse comportamento de grupo masculino a opressão às mulheres (e ao feminino de forma geral) existe. 

Caminhando rumo aos 30 anos posso me congratular, sem pedantismo, de ter sido capaz de mudar minhas opiniões. Tive ajuda nisso. Mesmo assim, não é fácil conseguir soltar as amarras culturais que nos são impostas, especialmente quando sabemos que o preço a ser pago é alto. Perdi grande parte dos meus amigos, tenho medo de fazer uma entrevista de emprego e alguém consultar as redes sociais, espaço que uso para entretenimento mas também para uma militância contínua, e é claro que existem os haters.

Algumas coisas aconteceram na minha vida para que eu pudesse sair do meu estado vegetativo. Eu conheci um grupo de mulheres que embora não se definisse ainda abertamente como feministas, foram de grande importância para a construção não só do meu feminismo como também o delas. Construimos uma identidade coletivamente. Somado a isso, uma tragédia também aconteceu dentro da minha família, com uma prima minha, um caso extremo de violência que resultou na sua morte. Todas aquelas mulheres que apanharam do marido ficaram para sempre ligadas à mim por meio dessa história. Eu entendo a dor de seus familiares, eu entendo. Eu entendo agora que nada poderia justificar o que aconteceu com elas. Eu vejo a Carminha apanhar na novela e sinto um nó se formar em minha garganta. Eu queria poder dizer que mudei unicamente com a minha força de vontade, com o meu próprio discernimento, mas isso não é possível, fatores externos à mim me esbofetearam na cara até que eu entendesse o quanto era prejudicial o discurso que eu sustentava até então. 

E é por isso que eu não consigo simplesmente culpar as mulheres machistas pelas barbaridades que falam, talvez nem elas entendam o quanto aquelas palavras recaem sobre si. Às vezes não acho a paciência necessária para lidar com elas, mas não as culpo. Alguém, em algum momento, me estendeu a mão para me fazer entender o que acontecia comigo. E por diversas vezes eu rechacei as palavras que me foram ditas. Ainda urgia em mim a necessidade de aceitação de uma sociedade que, eu ainda não sabia, nunca iria me aceitar de maneira plena, unicamente porque sou mulher. Mas um dia, eu entendi e estou aqui construindo e desconstruindo o que eu fui e o que eu sou. A cada dia, a todo momento. 

Eu não sei o que será de mim após a marca dos 30, mas aos 29 eu estou muito melhor do que estava antes. Se não estou livre por completo, estou lentamente me dirigindo à minha liberdade. E estou gostando muito. Que venham os 30.