domingo, 29 de setembro de 2013

O moralismo da frase "se não quer engravidar, não transe"

Texto de Thaís e Flávia.


"Se não quer engravidar, não transe" é uma frase que sempre aparece nas discussões sobre a legalização do aborto e ela é sintomática sobre como o exercício da sexualidade feminina ainda hoje é julgado negativamente e sofre tentativas de controle e condenação.

Indiretas Feministas

Sob o prisma das relações entre casais cis e héteros, a culpa da gravidez indesejada sempre recai sobre a mulher, principalmente por causa do moralismo que ainda permeia a sociedade quando falamos sobre a sexualidade feminina. Numa sociedade com um machismo vigente, a sexualidade feminina só é vista como existente se acessória da masculina, sendo o desejo sexual feminino considerado inexistente, coloca-se como dever da mulher "se preservar". Essa lógica machista e slutshammer reflete também na ilógica responsabilização apenas da mulher quando se fala em gravidez indesejada.

Dentro desse contexto, responsabiliza-se apenas a mulher porque não se espera que ela não deseje ter filhos e que a sexualidade dela exista sem ser no âmbito familiar. E essas mulheres que não são vistas como castas, conforme a lógica machista, merecem a gravidez indesejada e, para alguns mais sádicos, até a morte decorrente do aborto clandestino como uma punição. Em uma cultura falocêntrica em que o prazer da mulher é visto como algo secundário, punir a mulher com uma gravidez indesejada faz parte de uma estratégia de manutenção do patriarcado. Obrigar a mulher a levar uma gravidez indesejada adiante é um ato de tortura, é querer justificar um erro com outro (dizem que toda mulher sabe se proteger, e a que não se protege é vista como alguém que precisa ser punida por isso, e a gravidez é vista, justamente, como um punição).

O processo de culpabilização ignora que todos os métodos contraceptivos têm margem de falha e que a mulher não é a única responsável pela gravidez e nem pelo possível fruto dela. Ainda hoje homens não participam dos cuidados da casa e nem do cuidado de seus filhos, sendo assim, a mulher, caso tenha o filho, comumente é a pessoa que se responsabilizará por ele e muitas vezes sozinha. Como a responsabilidade da gravidez indesejada é colocada nos ombros apenas da mulher grávida, percebe-se que a intenção é punir a sexualidade dela e colocá-la para servir de exemplo para outras mulheres. Para deixar ainda mais clara a intenção moralista dessa responsabilização única da mulher é só pensar em como a mãe solteira sofre um estigma fortíssimo de vadia. O patriarcado pune tanto a mulher que decide prosseguir com a gravidez, quanto a mulher que decide interrompê-la.

A favor da despenalização do aborto
É importante destacar que essa culpabilização ignora diversas nuances que merecem ser expostas e questionadas, entre elas destaca-se o fato de que mesmo pessoas de classe média que na teoria tem todo acesso do mundo à informação raramente sabem que algumas interações medicamentosas podem diminuir a eficácia da pílula anticoncepcional, por exemplo. Imagine então como o acesso à informação, ao atendimento médico para que haja um planejamento familiar, aos contraceptivos e à educação sexual como um todo é ainda mais restrito para pessoas em situação de vulnerabilidade social. E num país como o Brasil, que tem uma desigualdade social gritante, ignorar essa realidade é ser negligente e elitista. Nesse ponto, um lembrete, há uma feminização da pobreza e numa sociedade racista, a questão de classe é permeada pela questão étnica e também de gênero. Sendo assim, as maiores vítimas que a criminalização do aborto e a ausência de políticas públicas de educação sexual eficazes traz são as mulheres negras e pobres.

A luta pela legalização do aborto vai além da legalização em si, educação sexual para todos e acesso a contraceptivos e atendimento médico ginecologista é também parte da bandeira. Muitas das pessoas que são contra a legalização do aborto e dizem que hoje em dia só fica grávida quem quer, e que por isso a pessoa deve arcar com as consequências, ignoram que o fundamentalismo religioso e sua influência no nosso Estado que na teoria é laico influencia negativamente na eficácia da educação sexual que temos, logo na prevenção. Afinal, eles militam contra o uso da camisinha e métodos contraceptivos como a pílula anticoncepcional e sua distribuição gratuita e pressionam para que a educação sexual oferecida seja falha e se baseie em pregar a abstinência.

Outro ponto que ainda hoje é muito comum dentro de relações cisheteronormativas é a pressão exercida por homens para que as mulheres não usem camisinha, que é um método que além de contraceptivo, é também uma forma de se proteger de doenças sexualmente transmissíveis. As vítimas de violência doméstica compõem um grupo de risco também quanto às gravidezes indesejadas e abortos clandestinos, devido sua situação de vulnerabilidade, viver em constante ameaça e ter seus direitos básicos e autonomia restringidos pela violência. E quem diz "só engravida quem quer" as negligencia numa crueldade gritante, visto que a violência sexual é um componente de relações abusivas e elas são mulheres que não tem acesso aos direitos sexuais e reprodutivos.

O fato de que "alguma mulher poderá se aproveitar do sistema" é outro forte argumento dos chamados
Fotocampanha promovida pela Marcha Mundial das Mulheres.
"pró-vida" que não encontra respaldo na realidade. Pois toda lei é passível de ser burlada, e todas as pessoas podem se aproveitar de uma lei para agir de má-fé, isso é da natureza humana. Entretanto, isso não permite que as liberdades individuais simplesmente deixam de existir. No caso da mulher, essa liberdade é tirada dela, sob a desculpa de que algumas irão se aproveitar de tal liberdade para fazer uso indiscriminado dela - e isso revela uma infantilização da mulher, isso é a sociedade falando para a mulher que ela NÃO é capaz de agir com maturidade, e isso é inadmissível.

"Se não quer engravidar, não transe" é uma frase que atenta contra os direitos reprodutivos e sexuais e a autonomia da mulher e ignora diversos aspectos sociais e de saúde pública que permeiam a ideia da legalização do aborto. O moralismo, junto com a negligência racista e elitista que permeia nossa sociedade dificulta o acesso das mulheres aos métodos contraceptivos, à educação sexual eficaz e de qualidade e ao planejamento familiar. Enquanto isso, mulheres pobres, principalmente negras, são condenadas à morte ou ao escárnio por serem mães solteiras e a ver o ciclo da pobreza se repetir.

Obs: Não só mulheres podem engravidar, homens trans e pessoas não binárias que tem útero também podem. Logo, todos os direitos defendidos pelo texto, como o aborto seguro e educação sexual, se estendem a essas pessoas. 


Pra quem não viu, sugerimos fortemente este vídeo aqui. E é sempre bom recordarmos os textos que já foram postados a respeito neste blog, como o texto da Thaís e o guestpost  escrito pelo Henrique Marques-Samyn. 


Lei é eficaz para matar mulheres, diz especialista.

domingo, 22 de setembro de 2013

Garnier, a nossa receita é uma resistência a você


Eu ainda vivia na Índia quando percebi, meio que pela primeira vez, a agressividade da marca Garnier. Fiquei a matutar sobre os aspectos imperialistas que permeavam a propaganda que eu tinha diante de meus olhos. No comercial em questão, uma modelo aparecia se recordando da sua infância, de um tempo em que sua mãe lhe dizia algo como "uma boa garota faz umectação antes de cada lavagem". 


Cabe aqui um breve parêntese: quem sabe um pouquinho de Índia tem noção da importância dada ao uso de óleos nos cabelos. Há uma variedade de óleos para os mais diversos problemas, sendo que o óleo de coco é considerado por lá o mais básico e essencial para cuidados de rotina. O uso do óleo de coco como um pré-shampoo é uma tradição da qual as indianas se orgulham muito. 


Pois bem, voltando ao comercial. Após se lembrar da tal infância, a modelo fala algo como "mas cadê o tempo?", e o que se desenrola é uma explicação de como a maravilhosa marca garnier, que unira shampoo e óleo no mesmo produto, seria a saída para todos os problemas do universo. Seguem algumas tomadas, com modelos curtindo a vida e seus cabelos esvoaçantes (e bem photoshopados), dando a entender que elas só teriam a ganhar com a praticidade do produto. Até que chega o momento que eu achei particularmente tenso e agressivo: a modelo principal (do início do vídeo) destrói os vidros de óleo com um estilingue. O link do vídeo pode ser encontrado aqui


Iniciei meu texto com essa historinha porque foi exatamente dela que eu me lembrei quando, dois anos depois (ou seja, ontem), me deparei com um comercial brasileiro da marca garnier, estrelado por Dani Calabresa (o comercial em questão já conta com mais de 1 milhão de visualizações no youtube). E o que ficou claro pra mim, ao assistir o tal comercial? Exatamente, a agressividade da marca. Vou tentar expor o que eu penso a respeito disso. 


Uma coisa que todas as pessoas sabem acerca do capitalismo é que ele age movido pelo lucro. Única e exclusivamente, lucro. Acho que todo mundo tá ciente disso, inclusive comentários do tipo "ahh, isso é marketing! Marketing é assim mesmo!" denunciam que a galera sabe que é assim que o capitalismo, representado com maestria pelo seu amigo e braço direito - o marketing - consegue sobreviver. O que fica menos claro, dada a sua sutileza, é a forma que o capitalismo encontra de se fixar e soar natural e até útil, na vida das pessoas. Se o marketing é seu braço direito, o utilitarismo é seu mascote. Através do utilitarismo, o capitalismo consegue reforçar e, porque não, cimentar o discurso da praticidade na vida das pessoas. 


E de onde vem, necessariamente, esse discurso da praticidade? Pensemos na marca, especificamente.
Não podemos nos esquecer que se trata de uma multinacional, subsidiária da L'oreal. É uma gigante da indústria de cosméticos, cujas cifras (mi? bi?) lionárias eu nem consigo imaginar direito. Uma coisa, entretanto, é certeira: como uma empresa que atua em escala global, a marca precisa entender a dinâmica dos mercados locais para conseguir sobreviver. É óleo que as indianas querem? Daremos óleo a elas! Mas… como fazer frente a uma prática milenar já consolidada, com marcas que antecedem a Garnier e possuem um apelo local e familiar que a Garnier não tem? Ora, é simples: com uma postura imperialista. Nós, dessa multinacional que se instala em todos os lugares para obter lucros desmedidos, estamos aqui para salvá-las de práticas retrógradas e primitivas. Nós representamos a modernidade eurocêntrica que prega a primazia da praticidade na vida das pessoas. Nós somos a modernidade que destrói a cultura local. Com um estilingue. 


E o que o discurso da praticidade faz? Bom, ele estabelece o binário bom x ruim. E o ruim, gente, é sempre a prática 'retrógrada' e 'tribal' de quem não tem a pele branca. Por exemplo, é ruim ter cabelo crespo, pois cabelo crespo não seria prático. Ao que fica a pergunta: por que precisamos tanto assim de praticidade? Porque simplesmente não passa na cabeça desses imperialistas que alguém possa curtir passar um tempo se cuidando. Porque tempo é precioso demais, pois você precisa ser produtiva (ou seja, gerar dinheiro pro sistema), ou então, como no caso das propagandas, ter mais tempo para se divertir - e cuidar dos cabelos não seria uma diversão. 


Na propaganda da Garnier brasileira, essa dinâmica da praticidade fica muito clara. A Garnier precisa passar por cima de toda uma prática que é consolidada no Brasil, ou seja, as famosas receitas caseiras para cuidados capilares, para se reafirmar enquanto marca. A Garnier precisa se utilizar de blogueiras famosas que, em toda a sua ingenuidade, aceitaram de bom grado fazer um comercial que vai contra tudo aquilo que elas construiram (eu acompanho a Rayza Nicácio e ela sempre enfatizou cuidados em casa para os cabelos). E as fãs seguidoras da Ray e demais blogueiras que se indignaram com a tal propaganda (meu caso) foram acusadas de inveja. "Vocês queriam estar exatamente onde ela está, ou seja, ganhando dinheiro!" Porque, vejam bem, no mundo de hoje, o mercado suplanta princípios. E reclamar de alguém que se converte à lógica do lucro a todo custo te coloca, automaticamente, na posição de herege. 


Imagem tirada da page do Blog Cantinho da Nanda - Vejam como a Garnier faz chacota com a receita dela, em um tom bem agressivo. 
O cenário é desolador. Mas, há esperança. Há vozes, ainda que escassas, que se opõem a essa lógica mercadológica e utilitarista. Há um movimento que diz em alto e bom tom que as nossas receitas caseiras NÃO serão trocadas por um produto industrializado de qualidade duvidosa. Nós estamos aqui, na Índia, em todos os lugares em que essas práticas imperialistas esdrúxulas acontecem. Oferecemos resistência a essas práticas. Estamos aqui lutando para que os cabelos crespos não sejam sinônimos de ressecados, como a Dani Calabresa quis enfatizar (e o cabelo da Ray é hidratado e muito bem cuidado, diga-se de passagem). Estamos aqui para dizer que a nossa identidade não está à venda, tampouco é negociável. Se uma, duas, ou várias blogueiras não perceberam isso, é porque está na hora de lutarmos ainda com mais empenho. 

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Eu tenho voz e digo: cantada não é elogio!

"Não te conheço, então não me chame de meu bem"

A campanha "Chega de Fiu fiu", organizada pelo site "Olga", recentemente publicou os resultados de uma pesquisa que o site promoveu sobre o assédio sexual no espaço público. Junto com várias pessoas que se sentiram contempladas ao ver esse problema social sendo tão falado e denunciado, surgiram também muitas pessoas, principalmente homens cis e héteros, revoltados com a indignação das mulheres com as cantadas.

Um dos principais argumentos utilizados por esses defensores do que eles chamam de "cantada inofensiva" é que ela tem a finalidade de elogiar, é apenas "parte da paquera". Eles se dizem preocupados com o fato de que essa "perseguição às cantadas" poderia impedir que a paquera acontecesse.

Mesmo com uma pesquisa que mostra que 83% das mulheres não gosta dessa abordagem, mesmo depois de vários relatos que mostram que mulheres se sentem incomodadas, ofendidas e até aterrorizadas com esse assédio, como podem essas pessoas insistirem nessa ideia de que as "cantadas" são inofensivas?

E como podem dizer que o terror que a maioria das mulheres vivem é uma paquera, quando vários relatos mostram que se você se mantem em silêncio constrangida com o assédio, o agressor profere ofensas e ameças? Como pode ser paquera sendo que uma das partes está claramente desconfortável, constrangida, incomodada e com medo da possibilidade daquela pessoa que "mexeu com ela" agredi-la? Como tamanha misoginia pode ser considerada uma forma de aproximação amorosa/sexual?
"Sua cantada me dá nojo" - Page Revolução com Fofura

O principal ponto para desmistificar o assédio como uma forma de abordagem para aproximação é que se uma das partes não demonstrou interesse em participar daquilo, não há como se falar em flerte ou paquera, porque não há mútuo interesse, não houve consentimento de uma das partes. A violação da liberdade da mulher é tamanha que as pessoas acreditam que existe um direito exclusivo para os homens de dizer para a passante o que pensa sobre o corpo dela, como se a gente andasse na rua segurando uma plaquinha dizendo "como estou hoje?". Nossos corpos não estão disponíveis para ser avaliados, nós não estamos interessadas em ouvir o que esses caras acham de nós. Somente a ideia de que é aceitável que homens desconhecidos avaliem nosso corpo e se sintam no direito de dizer o que acharam já demonstra como o espaço público ainda não é um espaço seguro para as mulheres.

Pensar que a "cantada de rua" é uma forma de elogio é ignorar a voz das mulheres que se manifestam contra essa conduta, é ignorar que mulheres tem o direito de ir e vir no espaço público sem ter seus corpos avaliados e também é ignorar que nós não precisamos da aprovação masculina.

Outra coisa que ronda o argumento do "e como fica a paquera?" é que ela se baseia numa heteronormatividade absurda. A "cantada de rua" será incômoda não só para as mulheres héteros que, pasmem, não precisam de aprovação masculina 24 horas por dia, mas principalmente para as lésbicas que sequer tem interesse em paquerar homens.

A sociedade vê a paquera como algo que deve partir do homem,  o suposto jogo da conquista que alegam que será prejudicado com essa revolta contra a "cantada" parte de uma fala masculina, que tem sido considerada incômoda pelas mulheres. Sendo assim, se vê que a ideia de conquista não está atrelada ao consentimento de ambas as partes. E deixa claro ainda que nestas situações a mulher é vista como um troféu, um objeto de enfeite e deleite. A mulher mais uma vez é desconsiderada como sujeito, ignora-se que ela tem sexualidade própria, desejos e sentimentos. É difícil para essas pessoas entender que só é paquera se há reciprocidade e consentimento. Gritar "gostosa" para uma mulher na rua não é paquera, assim como quando um colega de trabalho ou de sala de aula insiste durante seis meses em chamar a colega para sair, elogiá-la o tempo todo sem intimidade, num constante assédio que ignora que já foi dito não um milhão de vezes também não é.

O foco do que chamam de cantada, mas que na verdade é uma violência, é a manutenção e demonstração de poder. Não é paquera; se fosse, os desejos, a voz, e os sentimentos das mulheres teriam relevância e não veríamos tantas pessoas dizendo que o resultado dessa pesquisa é exagerado e tanta gente justificando essas agressões em nome de uma paquera que ignora os desejos de uma das partes.

É sintomático que diante de tantos relatos do terror que várias mulheres passam diariamente, tantas reclamações sobre essa conduta, tantas mulheres confessando o medo que sentem, ainda haja tanta gente afirmando que falar e combater o assédio no espaço público é uma bobagem. Os vários relatos de assédio não são a única uma amostra da misoginia de todo dia, a negligência com o que mulheres tem a dizer e essa insistência em nos tratar como objeto também o é.

Bons links: "Cultura do estupro no espaço público: nosso direito de ir e vir ameaçado"
"Mulheres e cantadas: uma relação de medo" 

"Quando eu ando na rua, eu não o faço para que você avalie meu corpo.Cantada não é elogio, é uma violência! E um sintoma de como a sociedade ainda não vê a mulher como gente."