Fiz
o post abaixo e fiquei na dúvida se deveria publicá-lo em meu blog
pessoal ou aqui no Ativismo. Como eu e as meninas chegamos à conclusão
que o assunto é sim relevante para o Ativismo, aqui está. Aviso àquelxs
que não me conhecem: o post é bem pessoal, baseado inteiramente na minha
vivência de 3 anos e meio na Índia.
Quero
iniciar o post de hoje comentando uma notícia lida semana passada, que
diz respeito ao relatório feito pela fundação Thomson Reuters, que
coloca a Índia como o pior país do G20 para as mulheres. Indianos mais
chegados meus ficaram espantados de ver que o país deles ficou atrás até
da Arábia Saudita. Eu só pude pensar uma coisa: eu sabia.
Eu
sabia, e não é só porque eu também havia lido acerca desta outra
pesquisa que abrangeu países além do G20, concluindo que o Afeganistão é
o pior lugar do mundo pra uma mulher nascer e viver, mas que a Índia
está entre os cinco primeiros lugares. Segundo este outro relatório,
mais completo ao meu ver, a Índia é pior até que a Somália no quesito
vida infernal de suas mulheres.
Daí
que sempre que eu vejo discussões a respeito do grande e vergonhoso
problema indiano, vem à tona a velha hipocrisia à qual eu tenho sido
exposta desde que a Índia passou a ter um papel, digamos, mais relevante
em minha vida. Trata-se da manjada desculpa do “ahhhhhh mas a Índia é
assim só nos vilarejos mais pobres e distantes, nas grandes metrópoles
isso já não ocorre mais”.
Eu
confesso que o “argumento” acima, exposto até no texto do portal Terra,
me deixa duplamente emputecida. Primeiro, pelo mais óbvio: fica
parecendo que o problema, na verdade, não é bem um problema, por não
atingir as mulheres mais privilegiadas. “Ah, só acontece em vilarejo”
pode ser traduzido por “ah mas gente pobre não conta”. WTF né.
Segundo,
e agora a parada fica séria: qualquer "cerumano" que tenha vivido na
Índia - e que o tenha feito para além de um ashram da vida - SABE que o
tal do “argumento” é uma falácia. As mulheres mais ricas estão,
literalmente, presas em gaiolas de ouro. E as de classe média, bem, eu
não tenho nem metáforas para descrever a situação delas. Vamos
exemplificar pra ver se fica mais claro? Pois então. Eu sempre falei pro
bofe que é muito estranho que praticamente TODAS as famílias com filhxs
da minha faixa etária (cerca de 30 anos) que eu conheci ali tenham um
filhO primogênito. Eu sempre estranhei e sempre estranharei isso. Porém,
o comportamento da geral é “aborto seletivo só ocorre lá onde o judas
perdeu as botas, minha feeelha, aqui na cidade grande não é assim não”.
Ahã Cláudia.
Olha.
Ainda bem que existem pessoas lindas e delicinhas como o ator Aamir
Khan, que teve a bravura de bater a real em todo mundo. Em um programa
que foi ao ar recentemente e escandalizou a Índia como um todo, ele
prova através de casos REAIS que a questão do aborto seletivo perpassa
todas as classes sociais da Índia. Você pode assistir o programa
(infelizmente as legendas estão em inglês) aqui. Aviso: você VAI chorar.
Mas... e exemplos mais pessoais? Tenho aos montes. A hostilidade para com as mulheres é tanta, que eu posso tentar listar:
1.
Quando alguém tem bebê em alguma empresa, um colega se apressa em
mandar email para toda a equipe. Tudo normal, tudo lindo, só que não.
Via-se claramente que a palavra “bênção” só figurava naqueles casos em
que o bebê era um menino. “Não-sei-o-quê-lá-esh foi abençoado com um
garoto”. Quando se tratava de menina, o email (se chegasse a ser
enviado), dizia apenas “Não-sei-o-quê-lá-esh agora é pai de uma menina”.
Às vezes rolava um “anjo”, decerto pra não pegar mal;
2.
Mulheres chorando no banheiro. Mulheres chorando na cafeteria.
Mulheres chorando no pátio. Não só presenciei como consegui conversar
com algumas. E a queixa era sempre a mesma: mals tratos vindos não só
dos maridos, mas também das famílias dos maridos. Especialmente quando
elas viviam nas chamadas joint families, que é a expressão que eles
utilizam para se referir ao fato de que a mulher largou a sua família e
foi ser escrava da família do bofe. E como é a vida de uma mulher que
trabalha fora e vive com os sogros? Bom, pelo que eu presenciei ali, é
assim: ela trabalha, geralmente, no turno vespertino/noturno. Entra às 4
e sai 1 da madrugada. Pega a van da empresa, que vai deixá-la na porta
de casa por volta de 3 da manhã. Precisa acordar às seis para preparar o
café-da-manhã para toda a família.
Terei de fazer um parêntese: o
café-da-manhã indiano é um ritual. Preparar dosa, idli, chapatti ou
outra coisa que eles gostam de comer, preparar o chai, cortar frutas
para que tudo esteja FRESCO na hora do desjejum leva tempo. Algumas dão a
sorte de ter uma sogra compreensiva que as permite um cochilo entre o
preparo de uma refeição e outra. Outras não contam com isso, pois as
sogras acham que dormir de dia é coisa de gente preguiçosa. Daí que o
jeito é tentar tirar uma soneca no banheiro ou em algum quarto que as
empresas disponibilizam para descanso. Como nada é tão ruim que não
possa piorar, elas ainda têm a obrigação de dar cada centavo de seus
salários aos sogros. Não minha gente, o dinheiro que elas ganham com próprio suor não é delas;
3. Mortes. As mulheres morrem aos montes, não “só” de aborto seletivo.
Sabe aqueles jornais que se você torcer sai sangue? Pois é. Notícias e
mais notícias de mulheres que pegaram o lenço que lhes cobria os seios e
se enforcaram. Mulheres que foram queimadas vivas por sogros/maridos
ávidos por mais dote. O dote é probido por lei na Índia, mas permanece
firme e forte sob a forma de “presentes” que a família da moça tem que
dar para a família do noivo. Só que em muitos casos eles não se dão por
satisfeitos com a quantia recebida por ocasião do casório. E pedem mais.
E fazem pressão. E enchem o saco. E ameaçam de morte. E elas se matam. E
quando não se matam, muitas vezes acabam sendo mortas.
4. Banalização da violência doméstica. Mulher levando tapa na cara em filme kannada
e a galera vibrando, rindo e torcendo para que ela apanhasse ainda
mais? Pois é, já presenciei. Chocada, perguntei pra uma colega “como que
vocês podem rir disso?”, ao que ela prontamente me respondeu “é porque
você não entende kannada,
ela mereceu”. Oi, comassim ela mereceu???? É triste ter que dizer isso,
mas é assim que eles percebem a vida: como um mero desenrolar de ação e
reação. Não, eles não sabem quem foi Hitler ou o que foi o holocausto.
Mas de vez em quando aparecia algo na televisão. E sempre tinha alguém
pra falar “nossa, o Hitler foi um grande líder”. E eu batia boca. E a
resposta que eu ouvia, que eu tinha que ouvir e quase morria por dentro
era uma só: “mas é certeza que os judeus fizeram alguma coisa pro Hitler
reagir dessa forma”. Porque, pra eles, é tudo assim, na base do karma. A
culpa é sempre sua. E o resto que se exploda.
Precisa
falar mais alguma coisa? Assim, antes que algum desavisado venha me
falar que sou uma ingrata, que cospe no prato que comeu, que só fala mal
da Índia, que eu dei “azar” de ter ido pra uma parte não tão
privilegiada da Índia e todo um blá, blá, blá reacionário e castrador,
fica a minha resposta: eu amo a Índia. Não sei do futuro, mas se tiver
que morar lá de novo, o farei de coração aberto. Porém, meus caros, eu
não sou cega. Ainda há muito o que ser feito pelas mulheres ali. E só
lembrando que nós, brasileirxs, também temos muitos problemas. Afinal de
contas, na lista do G20, o Brasil se encontra na décima primeira
posição. Como 20 países foram analisados, não precisa de
uma meditação em posição de lótus pra perceber que esse resultado não é
tão satisfatório, né?
Sou casada com indiano, já fui 3 vezes para a India passando um bom tempo lá, e presenciei vários desses itens citados pela Flávia! É um ambiente altamente machista e do qual nem as mulheres mais educadas e de classes sociais mais altas escapam! E para piorar a opressão, elas são cobradas a serem profissionais excelentes, cheias de mestrado, doutorado, etc e tbm são cobradas a serem supermães, esposas dedicadas e a fazer TODOS os afazeres domésticos com um sorriso no rosto! Vi bem isso na casa de meus sogros: ambos professores universitários, cheios de títulos, mas qdo chegavam em casa, o cara ia assistir TV e a mulher ficava até altas horas cozinhando, lavando e passando. E o pior> sem máquina de lavar, nem microondas, pq para eles são coisas supérfluas e desnecessárias.
ResponderExcluirNesse país fui humilhada diversas vezes por ser ocidental (=puta), mais velha que o marido (= pé na cova) e já ter um filho (=puta de novo). Com pessoas inclusive armando para nos separar e usando de meios ilícitos para minarem minha relação.
Na casa dos sogros, eles achavam q me tratavam bem, mas eu não sei oq eles consideram "tratar bem". Eu não podia mostrar as pernas, não podia sair se não fosse com roupas indianas típicas (aliás, nos primeiros dias, a sogra não queria NEM QUE EU SAÍSSE pq "era vulgar uma mulher sair sozinha", coisa q obviamente eu não acatei!), tinha q acompanha-los em milhares de visitas inúteis, mesmo que estivesse cansada e com dor de cabeça ou simplesmente não quisesse... aguentei tudo isso pq eram apenas 7 dias lá (que pareceram 1 século), mas não pretendo voltar NUNCA MAIS p casa deles.
Pra fechar com chave de ouro: tive uma menina, diana, há 3 meses e NEM UM PARABÉNS RECEBI. Nem um telefonema. Nada. E ainda soube q reclamaram de eu não ter colocado nome indiano nela.
enfim, depois disso tudo, ainda tem gente que me acusa de ser intolerante, COMO ASSIM???
#DESABAFO
Pois é Sheila, depois a intolerante é vc... não tá óbvio pras pessoas que vc não recebeu nem um parabéns porque teve uma menina e não menino?
ExcluirEu assisti o vídeo e fiquei chocada.
ResponderExcluirLembrei na hora da novela Caminho das Índias, porque na época, eu ouvi muito "a Índia hoje é diferente, as pessoas estudam, são mais esclarecidas" então eu realmente imaginava que esse tipo de coisa relatada no post e no vídeo não existiam mais, que era um país menos machista.
Eu assisti pensando "perai, então só se procria com mulher?" pq quanta burrice também né...mulher só fica grávida com homem e pq são as mulheres que morrem antes mesmo de nascerem? Ou que sofrem abusos de poder e violência dessa forma?! É algo ridículo de se ver...são abortos e venda de mulheres...É triste.
Aqui também tem mtooo machismo, mas nossa...to sem palavras.
Oi Letícia, então, dei apenas alguns exemplos pq na verdade eles são tantos, e tão chocantes, que daria um post quase infinito. Eu já estava na Índia quando a novela foi ao ar, mas acompanhei alguns capítulos pelo youtube e posso te falar seguramente: a romantização ali é bem alta. Quase nada confere com o que vi e vivi no dia-a-dia indiano.
ExcluirSó de ler seu post e ver o vídeo (que eu me segurei MUITO pra não chorar) já fiquei chocada. Uó isso. Mas gostei do post, pq levanta uma questão que a gente não para pra pensar.
Excluirinfelizmente as mulheres sofrem em todos os lugares do mundo, mesmo nos países nórdicos a gente vê uma cerca banalização da violência contra a mulher. mas admito que o relato de suas impressões me chocou mesmo.
ResponderExcluirtambém me segurei pra não chorar ao ver o vídeo.
Mari
Esse país é realmente uma porcaria.... existem vários motivos que apontam a Índia como uns dos piores países para se viver, não só estupros, mas também vários problemas populacional como abastecimento de água, pobreza extrema e muitos outros.....
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