Nascida numa pequena cidade, mas criada em uma capital, Brasília, eu jamais tive contato com o trânsito que não fosse caótico. Desde criança estou habituada aos engarrafamentos e à falta de estacionamentos. Mas apenas desde que comecei a dirigir foi que entendi o quanto o carro é salvo-conduto para comportamentos agressivos (Coisa que Walt Disney já falava 30 anos atrás), machistas e até criminosos. Não sei se esse comportamento é ocasionado unicamente pelo stress dos longos períodos preso no trânsito, ou por outras frustrações que são despejadas quando o motorista se esconde atrás do volante. O que sei, e que posso afirmar é que em pouco tempo de direção (eu dirijo a cerca de 4 anos) eu me vi em algumas situações que variaram de constrangedoras à perigosas.
Por aqui o trânsito tem algumas peculiaridades interessantes. Brasília foi a primeira cidade do país a adotar o cinto de segurança obrigatório e o respeito absoluto à faixa de pedestres. Só essas duas características tornam o trânsito muito mais seguro para motoristas e pedestres. Mas ainda há muito a se fazer principalmente no sentido de melhorar a circulação de pedestres e ciclistas dentro da cidade. Brasília foi projetada para a circulação de automóveis, as vias são largas, há até uma via expressa que corta a cidade, porém não temos ciclovias suficientes, transporte coletivo ou de massa de qualidade. E por aqui tudo é muito longe. O somatório desses fatores faz com que antes mesmo do brasiliense médio pensar em comprar uma residência, ele deseja ter um carro. Comigo não foi diferente, logo que comecei a trabalhar como arquiteta consegui adquirir meu primeiro automóvel.
Ainda uma motorista insegura, passei por algumas situações ocasionadas por falhas minhas, decorrentes da minha falta de experiência. Qual mulher em situação similar nunca ouviu as seguintes frases: "Só podia ser mulher!", "Volta pra cozinha!" e "Ê, Dona Maria!"? Quando na realidade as falhas foram provocadas pela insegurança e inexperiência? O problema maior é que não pára por aí. Por duas vezes no meu primeiro ano de direção, a minha integridade física foi ameaçada. Ainda hoje, quando eu falho é possível ouvir alguma das grosserias acima. E olha, no trânsito todo mundo erra. Meu pai tem 40 anos de direção e ainda comete pequenos deslizes. Ser imperfeito é normal. Esse tipo de julgamento afeta potencialmente a segurança das motoristas, fazendo com que elas mesmas interiorizem esse machismo e apliquem no seu dia-a-dia, repetindo essas ofensas contra outras motoristas.
Na primeira ocasião em que me senti ameaçada, meu único erro foi não dar passagem para um motorista apressado. Irritado, ele me perseguiu e "fechou" o meu carro, quando cheguei à uma via de menor circulação de veículos. Fui obrigada a frear. O motorista desceu do carro dele e partiu para cima de mim. Minha única reação foi engatar a ré e sair o mais rápido que consegui pelo mesmo lugar em que havia chegado. Eu até hoje me pergunto o que teria acontecido se eu topasse entrar numa discussão com aquele homem. E principalmente, me pergunto: se eu não fosse mulher, ele teria agido como agiu? Será que ele persegue todos os motoristas que não lhe dão passagem? Eu acredito que se fosse homem não teria passado por esse trauma. Em outro momento, eu falhei. Quase dei uma fechada em um motociclista, mas eu o vi a tempo de evitar um acidente. Pedi desculpas e segui em frente. Mais à frente a mesma situação, parei em um semáforo e ele parou na minha frente. Desceu da moto para vir me dar sermão, por sorte os outros motoristas que estavam parados no semáformo interviram a meu favor. Curiosamente nunca fui abordada dessa maneira por uma mulher. Não estou afirmando que mulheres nunca se descontrolem no trânsito (inclusive vi um vídeo essa semana envolvendo uma motorista de Brasília), estou afirmando que acontece menos.
O que dá a um motorista o direito de agir de forma agressiva, inquisidora com qualquer outro motorista, especialmente com as mulheres? Simples: O trânsito é espaço público, e consequentemente masculino. Por mais que muitas mulheres estejam atrás de um volante, por mais que os números mostrem que mulheres sofrem menos acidentes mortais, por mais que racionalmente se saiba que o que define um bom motorista não é o gênero, o espaço pré-definido pela sociedade para a mulher é a esfera privada. Portanto, o carro ainda é um assunto masculino, ainda não nos dão o direito de ir e vir com a mesma tranquilidade com que os homens transitam pelas vias. É por isso que para alguns homens, mulher e direção só podem estar unidos de alguma forma, quando a mulher é objetificada. Quando será possível pensar em um "Salão de automóveis" sem uma mulher lindíssima ao lado de um veículo?
Nenhum comentário:
Postar um comentário