terça-feira, 20 de agosto de 2013

Os estupros da Bolívia: cultura do estupro, perdão forçado.

*Trigger Warning* :  este texto expõe um cenário de extrema violência contra a mulher.

Saiu no feministe e, como o artigo era imenso, eu fui adiando a leitura. Até que sábado eu resolvi fazê-la. Confesso que o mal-estar foi tanto que a primeira coisa que pensei em fazer foi traduzir o texto. Diante da impossibilidade de traduzir um texto tão imenso (sério, acho que eu ia levar dias pra conseguir fazer algo decente), resolvi então escrever a respeito. Traçando um paralelo com um assunto que vem sendo bastante discutido entre as feministas brasileiras: o perdão. 

Não pretendo aqui entrar no mérito da religiosidade ou não do perdão. Se tal atitude é um valor humano universal, ou se ela é meramente um artefato das religiões para trazer alguma paz ao coração de quem sofreu algum mal, não importa. O que eu quero dizer aqui é que, independentemente da raiz do perdão, o apelo a ele é muito forte e nós, feministas, precisamos discutir e problematizar o assunto de forma mais profunda. 



Voltando ao artigo. Pelo título, "Estupros-fantasma da Bolívia", já podemos imaginar o que vem pela frente. Um denso relato de estupros em uma comunidade religiosa da Bolívia. Um relato que não deixa dúvidas quanto à capacidade humana de cometer atrocidades. Por anos a fio, mulheres da comunidade acordavam ensanguentadas, com as roupas rasgadas e as camas sujas de terra e de sêmem. Elas não conseguiam se lembrar de praticamente nada e, quando muito, lembravam-se que estavam sendo atacadas, mas não tinham forças para lutar contra o estuprador. 

A comunidade, de religiosos menonitas (algo parecido com os Amish dos Estados Unidos), inicialmente não acreditara nos relatos da primeira mulher que resolveu abrir a boca a respeito. Como acontece com praticamente toda mulher que é estuprada nesse mundo, duvidaram da legitimidade de tais estupros. Chegaram a cogitar que ela estava era de "namorico" pela cidade. Os ataques, porém, não só não cessaram, como se tornaram cada vez mais violentos. Crianças e mulheres de todas as idades eram brutalmente violentadas, sempre à noite, sempre dormindo. 

As mulheres da cidade estavam vivendo uma situação absolutamente nefasta de terror, e alguma explicação precisava ser dada a respeito. Obviamente que, por se tratar de uma comunidade religiosa (cristãos protestantes de origem alemã - inclusive utilizam o baixo-alemão para se comunicarem por lá), a explicação viria carregada de misticismo: o demônio estaria estuprando essas mulheres. E tudo estaria sendo feito por vontade de Deus. Ou seja, se o todo-poderoso estava enviando a provação, era porque elas deveriam aguentar firmes. 

Só se sabe que a situação estava tão absurda que o bispo local resolveu então pedir ajuda às autoridades bolivianas (que geralmente não se metem nas questões internas da comunidade, nem mesmo em casos de crimes, salvo assassinatos, pelo que entendi). Descobriu-se que um grupo de homens pertencentes à comunidade estavam por trás dos estupros. Usando um spray. Agora vou traduzir um parágrafo do texto para que vocês tenham noção dos requintes de crueldade: 

"Então, numa noite de junho de 2009, dois homens foram pegos tentando entrar em uma casa da vizinhança. Os dois delataram alguns amigos e, como um dominó que cai, um grupo de nove homens de Manitoba, de idade entre 19 e 43, acabaram confessando que eles vinham estuprando famílias da colônia desde 2005. Para incapacitar as vítimas e suas possíveis testemunhas, os homens usaram um spray criado por um veterinário de uma comunidade Menonita vizinha, que ele adaptara de um produto químico utilizado para anestesiar vacas. De acordo com as confissões iniciais (que foram negadas posteriormente), os estupradores admitiram que - às vezes em grupos, às vezes sozinhos - eles se escondiam do lado de fora das janelas dos quartos à noite, jogando o spray com a substância pelas janelas para drogar famílias inteiras, e depois entravam nas casas."

Acho que esse relato já seria assombroso se parasse por aí. Mas ele continua. E piora de um jeito que não tem como não pensar em um roteiro de filme de terror. Vou resumir: o governo da Bolívia ofereceu ajuda psicológica às vítimas. O bispo negou a ajuda. Só que ele não só não deixou que elas buscassem auxílio, como obrigou-as a PERDOAR os estupradores. Porque, segundo ele, se elas não perdoassem os estupradores, deus não as perdoaria. Acontece que não é "só" isso. A jornalista que fez a reportagem também fala em incesto. 

Para piorar a vida dessas mulheres, elas TAMBÉM são estupradas dentro de casa. Por irmãos. Pais. Parentes. Gente em quem elas deveriam confiar, sabe? E os relatos dizem que é "normal" serem molestadas, e quando elas levam isso às autoridades (ou seja, bispos e pastores), eles investigam, confrontam o estuprador, que se diz arrependido e voilá! Se ele se arrependeu, minha filha, sua obrigação como cristã é PERDOAR. E elas perdoam. E voltam para casa com seus algozes que agora tomarão cuidado redobrado para não serem pegos novamente. A união e estrutura familiar permanecem intactas. E os crimes continuam acontecendo. Pelo jeito, até hoje. 

Não tem como ler um texto desses e não se sentir impotente. Não tem como não emputecer. A questão maior que eu queria colocar aqui e não sei se vou dar conta é: até que ponto esse microcosmo não está aí nos ensinando o que acontece, sem tirar nem por, na nossa sociedade "aberta"? Até que ponto o perdão é realmente algo que deveríamos almejar? 

Porque sabe, a cultura do estupro já perdoa os estupradores, de antemão. Ao afirmar que a culpa é da vítima. Ao colocar mulheres não como seres humanos, mas como criaturas ardilosas, naturalmente programadas para representar uma tentação na vida dos homens. Não obstante, mulheres de todos os tipos, das consideradas "putas" às "santas", são violentadas. A situação de violência contra a mulher é epidêmica e a cultura do estupro permanece intacta. Bem como a cultura do perdão. 

A dinâmica é bem simples, e bem danosa também. Somos criadas, desde muito cedo, a almejar sentimentos nobres. Nenhum problema aí. Acredito sim que sentimentos nobres precisam guiar as vidas das pessoas. Entretanto, uma análise da forma como tais sentimentos são encorajados leva a crer que estamos falhando miseravelmente no quesito justiça. Porque sempre, repito, SEMPRE, o sentimento de culpa é inculcado na vítima, e não no agressor. Porque quem não perdoa é vista como uma pessoa má pela sociedade. 

Somos criadas em uma cultura que diz que é possível transformar sapo em príncipe. Somos levadas a crer que o amor é a solução para tudo, inclusive para relações violentas. Portanto, em um contexto desses, eu acho complicado falar em vitimização do opressor. Entendo que a humanidade é vítima de todo um sistema criado para aparentemente proteger mulheres e crianças (afinal, é essa a desculpa que ouço desde que me entendo por gente para justificar a opressão desses dois grupos). Entretanto, é inegável que o ônus maior desse sistema (que não funciona) recai sobre as mulheres.

Portanto, diante do exposto acima, fica as perguntas: faz algum sentido dar voz e vez ao discurso do perdão em espaços feministas? Será que um foco maior na busca por justiça, deixando de lado o perdão, que silencia a vítima e não resolve o problema, não seria a melhor saída? Que tipo de sociedade queremos construir (para nós e para as gerações vindouras): uma que efetivamente busca a justiça, ou essa em que o discurso pretensamente suave do perdão continua a manter tantas vítimas em silêncio?

A mulher estuprada já carrega uma carga pesadíssima de culpa, na nossa sociedade. Enfatizar o discurso do perdão é fazê-la carregar a culpa de não conseguir perdoar, de querer se vingar, de odiar, juntamente com toda a culpa que a sociedade já deposita nela. Lutar pelas mulheres significa entender muitas coisas que se passam com elas. O ódio, inclusive.

Para quem se interessou pelo caso, o artigo está bem mais completo e pode ser lido em inglês, aqui.

Por Flávia Simas com colaboração de Thaís Campolina. 

22 comentários:

  1. Flávia,
    Parabéns pelo texto! Eu não conhecia este caso e com certeza vou ler o artigo citado.
    A única coisa que fiquei em dúvida foi em relação a ideia do perdão no discurso feminista no Brasil. Não tenho referência nenhuma sobre isto, o que tenho conhecimento é exatamente o contrário. Vc tem alguma fonte para me indicar?
    Concordo com a sua reflexão que apesar de bizarra a situação relatada ela é indicativa de uma cultura mais ampla que encontramos fortes indícios em nossas sociedades "abertas". Vou ler o texto e volto para conversarmos. Obrigada por compartilhar. beijos, Gabi

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    1. Olá Gabi Lamego, acho que há um pouco mais de uma semana atrás a discussão sobre o perdão do estuprador e afins surgiu porque a Lola publicou um texto de um estuprador arrependido no blog dela e isso revoltou várias feministas (inclusive eu), porque todo mundo sentiu seu "espaço seguro" violado, sabe? E muita gente não gostou do tom do texto que soava como se a pessoa que não perdoa e sim odeia estivesse errada. Entende?

      Desde então as discussões a respeito disso pipocaram. Tem até um blog que tem relatos de mulheres que foram vítimas de estupro e não só, mas gente que quis opinar a respeito e suas opiniões, chamado "Leia, Lola, leia".

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    2. Thaís,

      Você pode mandar o link desse blog, o "Leia, lola, leia"?

      Tentei encontrar pelo google e não consegui.

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    3. Eis o link: http://leialola.tumblr.com/

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  2. O que me deixou mais revoltada mesmo foi ver que, claramente, uma religião está - mais uma vez - acima do poder da lei, e que estamos muito longe de ter um estado laico não só no Brasil, infelizmente.

    Sobre o perdão, eu não o vejo como uma via de mão dupla. De modo que eu separaria sem maiores problemas o ato de arrepender-se e o ato de ser perdoad@.

    Em casos de estupro ou agressão, eu acredito que a pessoa realmente possa se arrepender. Mas também acredito que se o arrependimento é verdadeiro, ela deve aceitar que a pessoa agredida não tem qualquer obrigação de perdoá-la. Acho que, na verdade, o que deveria ser colocado em discussão são as atividades a serem realizadas pela pessoa que se arrependeu.
    Pedir perdão não é atividade. Pedir perdão é palavra e palavras não trazem nada neste caso, pelo que eu posso ver.
    Pelo contrário, se a pessoa arrependida começasse a participar de ações diretas para que se diminua o índice de estupro e violência contra a mulher, aí sim eu vejo evolução.
    Mas eu gostaria de mais uma vez frisar que: mesmo que x agressor/a se arrependa, e vire x maior militante contra a violência, que vire um/a sant@, não importa: ainda assim não tem cabimento exigir perdão da vítima, se esta não conseguir/quiser perdoá-l@.
    Nada deve ser exigido da vítima. Tudo deve ser exigido d@ agressor/a.

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  3. Esse texto deveria ser lido pelo maior número de mulheres e meninas possível. Sério. Simplesmente sensacional.

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  4. Acredito em reabilitação, acredito em arrependimento, acredito em evolução, se não acreditasse eu não seria feminista, mas o fato de eu ser feminista, mulher, ter sido vítima de inúmeras ações machistas em minha vida, eu sei que o papel do feminismo deve ser acolher e não ditar regras comportamentais de como agir após ser vítima de um estupro. Não há maneira certa de agir, as pessoas são plurais demais pra se ditar como a outra deve se sentir. Uma vítima de estupro já carrega um fardo de culpa que a sociedade depositou nela e o discurso feminista não deve endossar ainda mais a culpabilização da vítima. Sim, acredito que colocar um estuprador arrependimento em evidência e colocar o perdão como a opção mais louvável é uma forma de aumentar esse fardo, é dizer que a pessoa que não perdoa seu agressor é má.

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  5. "Em outubro de 2006, uma chacina dentro de uma escola Amish resultou na morte de cinco crianças entre 6 e 13 anos, além do atirador de 32 anos, que se suicidou.
    O atirador era um motorista de caminhão de leite que atendia a comunidade. Fez reféns 10 meninas. No mesmo dia, membros da comunidade visitaram a família de Roberts (o motorista) para dizer que o perdoavam. No enterro das meninas, o avô de uma das vítimas disse às outras crianças: "não devemos odiar aquele homem" O fato inspirou o filme Amish Grace (Graça e Perdão no Brasil)." (A fonte é da wikipedia, mas acredito que vocês conseguem encontrar em outros sites também).

    Só pra ver que o perdão, em comunidades como estas, são obrigatórios. Mas acho que vocês pegaram um microcosmo para deslegitimar um discurso de direitos humanos, isto é, perdoar o agressor. Perdão e direitos humanos andam juntos. Você não transformar todo mundo em mostro faz com que você também não se torne um.

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    1. Eu conheço o filme. E não, o perdão não é obrigatório só em comunidades como estas. Basta dar uma olhada em como a cultura do estupro se dá no Brasil. O estuprador é imediatamente perdoado e a vítima fica com a culpa. Isso de perdão e direitos humanos andarem juntos é totalmente questionável. Direitos humanos implica em direito à dignidade, não importa se a pessoa é considerada um monstro aos olhos da sociedade. Mas isso não significa fazer vista grossa às leis. Não significa falar que perdoar é melhor que denunciar, por exemplo. Não significa falar que "não compensa" denunciar um agressor porque o crime prescreveu, ou então porque o agressor "não sabia" que estava cometendo um crime. Direitos humanos não é isso.

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    2. Não consigo ver como "perdoar o agressor" pode ser um discurso de Direitos Humanos. Anônimx, parece que você parte do pressuposto que os direitos humanos tem a ver com uma ideia de bondade baseada na cultura judaico-cristã e só. E não em direitos, em dignidade da pessoa humana e em princípios que podem até se basear em alguns aspectos da religião, mas de nenhuma forma é uma "doutrina do perdão".

      Discutir Direito Penal, punitivismo, impunidade, situação carcerária são questões de Direitos Humanos, mas não tem a ver com perdão. A vítima coloca no Estado o poder punir e numa sociedade ideal colocaria no Estado o poder de ressocializar aquela pessoa. Quando os Direitos Humanos, junto com o Direito em si, passa para o Estado a tutela dos direitos nesses casos, ela não diz que a vítima deve "perdoar o agressor", ela diz para vítima que vai trabalhar para que aquilo não mais ocorra e retira dela o direito dela de se vingar.

      Por que não falar sobre os Direitos Humanos e o tratamento dado às vítimas de estupro e violência doméstica promovidos pelo Estado que são péssimos? E sim só falar em Direitos Humanos como se a vítima fosse obrigada a falar "ok, agressor, eu não te odeio mais"?

      Criticar a cultura do perdão não diz respeito a todo mundo sair matando o agressor (e pode até meio que ter a ver com isso, porque né direito a resistência, desobediência civil e legítima defesa também são questões de direitos humanos e todxs nós sabemos que muitas vezes e em muitas situações a reação é uma questão de sobrevivência). A cultura do perdão diz respeito a obrigar que vítimas acatem aquela violência a que lhe foi submetida e ainda é, porque aquela pessoa é "uma pessoa boa", "porque a denúncia e exposição dela vai estragar a vida dela" e isso não é uma questão de microcosmos ou você nunca ouviu falar sobre dependência emocional e mulheres que não denunciam seus agressores? É um perdão que quem comete crimes contra mulheres tem por parte da sociedade, com ou sem o perdão da vítima. É colocar a vítima que odeia muito o seu agressor como uma pessoa monstruosa porque ela não é capaz de perdoá-lo. Querer muito o mal de alguém é diferente de ir lá e matar a pessoa, não acha? Julgar a pessoa que quer o mal de seu agressor é cruel. É desumano mesmo. E ignora que crimes contra mulheres são constantemente negligenciados pela sociedade e também pelo judiciário.

      Reconhecer que pessoas que são vítimas de violência reagem de formas diferentes, sentem coisas diferentes e se empoderam de formas diferentes não é criar monstros, é perceber que somos plurais. E pedir para que o perdão pare de ser a única reação vista como certa, é pedir pra que essas pessoas não carreguem mais um fardo, como foi dito acima por um comentarista.

      Ninguém está falando que agressores jamais mudarão e que são monstros impossíveis de reabilitar, só estamos dizendo que estamos cansadas de sermos obrigadas a achar que toda denúncia feita por nós "estragará a vida do outro" e jamais pensar em nós mesmas e em como a violência contra nós também estragou nossas vidas. A gente que falar sobre ser legítimo odiar também, porque a cobrança pra mulher sempre ser a boazinha, passiva, a pessoa que perdoa tudo é um saco e só aumenta os fardos que a sociedade nos coloca nas costas.

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  6. Esse história do perdão me lembrou o comentário de um homem em um dos textos que surgiram como críticas ao post da Lola. Ele dizia que carregar "ressentimento" era uma "opção" (sim, ele disse opção) legítima, mas perdoar o agressor libertaria a vítima, que o agressor poderia sofrer tanto quanto a vítima por conta do crime cometido, blablablá.

    Isso me deixou tão estressada, que me deu vontade de dar uns tapas no sujeito. Além do absurdo que é um homem querer ditar o melhor jeito que uma mulher pode lidar com uma agressão, é a presunção de achar que não guardar "ressentimento" é uma opção. Parece que tem gente que acha que "perdoar" um estuprador é o mesmo que perdoar o coleguinha que roubou seu apontador no jardim de infância. E, além do mais, mesmo que a vítima perdoe ela não está isenta de sofrer as sequelas do abuso, de lembrar dele, de ter traumas decorrentes dele. Perdão não é libertação.

    As mulheres são educadas de forma a colocar as dores e necessidades dos outros acima das dela SEMPRE. Espera-se sempre que a mulher se sacrifique, perdoe, releve, abaixa a cabeça. Espera-se que as mulheres relevem até os atos mais violentos cometidos contra elas e ninguém vê o absurdo disso.

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  7. Ah Gente, mas pera aí... o Perdão não é apenas um discursos religioso imposto à mulheres vítimas de violência sexual. Este recorte é por demais tendencioso para deslegitimar a possibilidade (não obrigação do perdão).

    Lidar com a violência nunca é simples e perdoar não significa esquecer, muito menos deixar de exigir justiça. Há mais de 15 de anos de estudos que relatam o quando a prisão de agressores não resolve os sentimentos de tristeza e perda das vítimas. Perdão é processo complementar ao processo de prisão e punição do agressor. O que está relatado no texto não é o perdão como ele é defendido por organizações de direitos humanos que atuam em processos de justiça de transição.

    E aí é preciso ter um quadro mais amplo do papel do perdão. Se um caso de opressão e imposição de um política é válida para deslegitimá-la, só vai nos restar enquanto feministas desistir do direito ao aborto. Já que é notório que em países como China e India, mulheres são obrigadas a abortar quando engravidam fora do casamento, ou quando o feto é do sexo feminino.
    Me diz, como estes casos de imposição e opressão, podem fazer regra para todos os outros casos de aborto?

    O seu texto faz a mesmíssima coisa com o perdão.

    O perdão como medida para lidar com o trauma, é uma possibilidade. Ou seja, para ser legítimo, a vítima precisa querê-lo. 2. é medida complementar a execução da justiça para a vítima (que ainda não abriu mão da punição do agressor). 3. Será acompanhado de aprendizado do agressor, submetido a cursos, terapia e tratamento para deixar de ser agressor.

    Acho que vale a pena pesquisar sobre processos de perdão e justiça penal, por que ó, o que está neste texto é só um ponto de uma realidade bem mais complexa e diversa.

    Eu apoio o perdão, se a vítima o quiser, se ele for uma medida complementar ao julgamento, cumprimento de pena pelo agressor e reabilitação do agressor. Fora disso, será como qualquer outra medida de 'emancipação feminina', pode muito bem ser usado como medida de opressão.

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    1. "Há mais de 15 de anos de estudos que relatam o quando a prisão de agressores não resolve os sentimentos de tristeza e perda das vítimas."

      Isso não acontece porque as pessoas não perdoam, acontece porque existe dependência emocional e ela é construída em cima de várias coisas, entre elas o fato de que toda violência contra a mulher é considerada perdoável pela sociedade, o que coloca a mulher como culpada pelo que sofreu. Ela carrega a culpa da violência sofrida e também a culpa de ter estragado a vida de alguém com uma denúncia, porque é isso que é ensinado para todas nós, por causa da impunidade, da culpabilização da vítima e da banalização da violência contra a mulher.

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  8. Eu faço a mesmíssima coisa com o perdão? Não, não faço. India e China não são países cristãos como o nosso. Não há porquê falar em "desistir do aborto" quando o que acontece aqui é diametralmente diferente do que ocorre por lá. O que não pode ser dito, jamais, com relação ao micro-contexto que apresentei nesse texto. A realidade exposta nesse texto não só NÃO é diametralmente diferente da realidade que temos no Brasil (cultura do perdão), como também é totalmente tangível e comparável com o contexto brasileiro (e de outras sociedades cristãs). Perdão não é valor exclusivo de religiões. A forma como a cultura do perdão é propagada, sim.

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  9. Flávia, então me apresente um caso de imposição do perdão no Brasil. Por que nós não somos a Bolívia, em quem embora seja Católica, tem uma história muito mais forte de resistência ao cristianismo. Uma comunidade cristã isolada, não diz muito sobre a Bolívia plurinacional e que se reconhece como indígena.

    E mulheres cristãs também são obrigadas a abortar, mesmo na China ou Ìndia e o fato de lá acontecer exatamente o oposto daqui serve para nos avisar de que a opressão sempre encontra meios de se perpetuar.

    E sim, para mim você continua usando uma situação em particular para generalizar n situações que você não aponta no seu texto.


    Eu discordo que somos condicionadas a perdoar agressores, somos ensinadas a não denuncia-los, mas a sociedade espera que os odiemos. A cultura do linchamento está aí para provar isso. Ah, mas a maioria das mulheres não denuncia. Talvez as brancas de classe média não, mas conheço n comunidades onde estupradores se defrontam com regras não estatais de coerção. Uma das medidas de legitimidade das milícias é essa: escolher casos de estupros para fazer justiça com as próprias mãos. Essa cultura também está aí. E precisamos, igualmente, pensar sobre ela.

    Não discordo dos seus exemplos, mas acho que excluir o perdão como medida legítima, como se ele nunca pudesse ser uma ação 'feminista', é exagerado.

    A opressão não muda com a mudança dos meios, mudar mentalidades é muito mais importante. Se uma vítima quer passar pelo procedimento do perdão, como posso simplesmente dizer que ela é alienada?

    A opressão deixa de ser opressão quando uma mulher diz para outra o que fazer com seus sentimentos e sua vida?

    Para mim, não. Se eu fosse estuprada é bem provável que não passaria por procedimento de perdão algum, mas essa sou eu.

    Reconheço de que outras mulheres podem pensar diferente, sem que isso as torne menos feministas do que eu. Aliás, quem diz quem é ou dever ser feminista? Me parece que estes rótulos não se encaixam na imensa diversidade que temos por aí a fora.

    Para mim é impossível lutar por emancipação feminina sem defender com unhas e dentes que cada mulher deve e pode tomar as rédeas da sua vida para si, que é capaz de ser autônoma, de se auto-conhecer, mudar e se reiventar como quiser quantas vezes forem necessárias.

    Todo esse processo é sempre coletivo e demanda sim de pensamento crítico sobre o mundo e sobre si mesma. Mas não consigo, sem conhecer a pessoa e a situação, dizer que qualquer situação que envolva perdão é ilegítima.

    É um pré-julgamento que não me sinto de direito de fazer sobre a história de uma mulher que lida com a violência que sofreu.

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    1. É claro que mulheres podem pensar diferente e ver o perdão como uma chance de se sentir melhor como sobrevivente daquela violência que sofreu. Não acho que o texto diz que não pode, ele só diz que existe uma cultura de impunidade e de perdão. O texto pega um caso extremo e mostra que de certa forma essa pressão ocorre aqui, no Brasil.

      Os estupradores que são linchados, o que eu não acho bacana e nem defendo de jeito nenhum, são aqueles que atacaram mulheres na rua, que a gente bem sabe que não é o modus operandi mais comum entre estupradores. Os estupros dentro de casamentos, entre "amigos" numa festa continuam ficando impunes, as vítimas sofrendo culpabilização e principalmente: suas denúncias continuam sendo encaradas como uma forma de destruir a vida desses agressores, porque "coitadinhos, apenas cometeram um erro" é o que muitas mulheres escutam quando relatam isso até para familiares.

      "Para mim é impossível lutar por emancipação feminina sem defender com unhas e dentes que cada mulher deve e pode tomar as rédeas da sua vida para si, que é capaz de ser autônoma, de se auto-conhecer, mudar e se reiventar como quiser quantas vezes forem necessárias." - Alguém negou isso, Marcia? A gente tá defendendo justamente o direito da mulher, que sofreu uma violência como o estupro, de odiar seu agressor, sem sentir culpa por isso. Ninguém aqui tá falando que quando as milícias pegam casos esparsos de estupro e matam o agressor é bacana, ninguém aqui é a favor dos linchamentos, a gente só quer dizer "mulher, você não é obrigada a perdoar seu agressor, você pode odiá-lo sem culpa, se quiser", porque existem forças sociais que levam a mulher a não denunciar, se silenciar completamente ao ponto de não contar pra ninguém, se culpar, ser considerada culpada pelos outros e a sociedade vê os estupros como um crime menos hediondo em certos casos sim. É verdade que quando os casos de mulheres que foram atacadas indo para o trabalho na rua por um completo desconhecido causa comoção, causa possibilidade de linchamento e afins. (Isso depende muito também da atuação da mídia nesses casos.) Mas, nos demais casos de estupro, esses que perante a sociedade muitas vezes não são vistos sequer como estupro, porque """"""ela estava querendo""""""""", são negligenciados ao ponto de suas denúncias serem vistas como algo cruel com o agressor. Eu estou longe de ser uma entusiasta do Direito Penal, longe mesmo de acreditar em sistemas prisionais, mas isso acontece. O fato de que há inúmeras violações de direitos humanos nas prisões, nas delegacias, nessa cultura de "bandido bom é bandido morto" é outro assunto.

      O texto simplesmente questiona o porquê de sobreviventes sofrerem com forças sociais que tentam diminuir o que elas sofreram, culpá-las e dizer que elas tem que perdoá-los. O fato de existir cultura de linchamento, de bandido bom é bandido morto não impede que exista também uma cultura de perdão para casos de crimes contra mulheres e outros grupos vulneráveis.


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  10. Thaís, o seu texto não reflete o seu posicionamento no comentário, pelo menos no que eu entendi. Você termina dizendo que sites feministas não poderiam ou deveriam refletir sobre o perdão.

    Claro que concordo com você, também vejo a cultura do estupro como um problema imenso e bastante sério a ser enfrentado pelas vítimas.

    Mas o discurso do ódio, que eu entendo como uma estratégia de luta e sobrevivência, não resolve toda a vida das vítimas.

    Não sei do seu contato com vítimas de violência, mas para muitas vítimas não basta denunciar, odiar, ver o agressor punido ou se livrar da situação de violência.
    O perdão, se uma possibilidade, pode ser um dos muitos jeitos (e eu não sei se temos muitos) da pessoa seguir com sua vida e não deixar aquela agressão se tornar o centro, o fato definidor do que a pessoa é.

    E, por ser tão polêmico, acho que ainda devíamos conversar muito sobre ele.

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    1. Eu tenho contato com algumas sobreviventes e a grande maioria delas sequer chegou a denunciar o agressor justamente por causa do fato de que o estupro que elas sofreram não foram o que todo mundo acha que acontece sempre: um cara maluco as estuprou quando elas voltavam do trabalho. Elas foram estupradas por amigos, namorados, maridos. Muitas vezes bêbadas e em festas. E todas elas sabiam que o fato de terem uma relação com eles e estarem bebendo ou falando alto ou de vestido curto já as colocavam para a sociedade como as culpadas.

      E o texto fala é disso: do fato de que perdoar o agressor dos outros, coagir mulheres a perdoar seus agressores e coisas do tipo são mais uma violência que mulheres sofrem, porque todo crime cometido contra elas são negligenciados por causa que são vistos pelos olhos da misoginia. Proíbem as mulheres de odiar seus agressores, colocam o ódio como uma coisa horrível e quem odeia sente mais uma força de culpabilização, ela se culpa também por não conseguir perdoar.

      Até nas dinâmicas de relacionamento abusivo é perceptível como atuam essas forças do perdão, da culpabilização e afins. Acontece o episódio de violência (muitas vezes psicológica) e no outro dia o agressor busca o perdão. O perdão buscado é uma forma de manipular, mas por que esse perdão ser buscado é tão comum? Porque vivemos numa cultura de perdão de crimes contra mulheres, uma cultura que coloca a mulher como objeto, submissa, que deve obedecer o outro, a mulher ouve a vida toda que é capaz de mudar um parceiro com amor, a mulher ouve que é culpa dela se ela apanhar, se ela for estuprada, se ela for traída.

      Não acho que perdoar o agressor é uma pauta importante para o movimento feminista porque a gente tem que dar liberdade pras mulheres se curarem, se empoderarem, da forma que elas acharem mais efetiva: seja odiando, seja tentando ignorar o que aconteceu, seja perdoando, porque se a gente dita as melhores formas de reagir, a gente age de um jeito que pode levar as mulheres que agem diferente do que o que foi dito se culpar por odiarem, por perdoarem ou por ignorarem. Entende?

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  11. Discutir direito penal, criminologia e direitos humanos nesse sentido não é o mesmo que discutir a questão do penal, até porque a questão do direito penal, prisão e punição é um assunto estatal. Enquanto a questão do perdão é subjetivo. E o assunto do texto não é uma defesa a truculência policial, nem de prisões cruéis e desrespeito aos direitos humanos, é simplesmente uma demonstração do que é a cultura do estupro. E essa cultura do estupro conta com esse perdão que a sociedade dá.

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  12. Vim bater aqui por conta do termo ativismo. Acho que a postura ativista, de sofá ou não é uma tendecia que precisa crescer no sentido da participação e de pressão sobre as autoridades e a sociedade como um todo. Posso me considerar um ativista de sofá e considero minha causa importante e abrangente. Ela intui que a covardia fisica esta por trás do mal social. Gostaria de ter uma opinião de vocês em meu blog.
    Estupro é COVARDIA! É uma vergonha para os homens.

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  13. Vim bater aqui por conta do termo ativismo. Acho que é uma tendencia que precisa crescer no sentido de forma de pressão sobre autoridades e sociedade como um todo. Posso me considerar um ativista de sofá. Mantenho um um blog onde procuro transmitir a mensagem de que a covardia fisica é o mal maior em sociedade. Gostaria de contar com o apoio qualificado de vocês a essa causa universal e urgente.
    Estupro é COVARDIA! E uma vergonha para os homens.

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