Por Flávia Simas e Thaís Campolina
A invisibilidade das pessoas trans* e suas questões, como a busca pela despatologização da transexualidade, como a luta pelo reconhecimento do nome social, contra a violência com motivações transfóbicas e pelo respeito no mercado de trabalho é um fato. A mídia e a sociedade praticamente não dão espaço para tratar sobre o tema da transexualidade e raramente é possível ver matérias que tratem do assunto de forma séria e sem transfobia.
Um erro muito comum em várias matérias jornalísticas é colocar a pessoa transexual que foi vítima de um crime como vítima de homofobia e não de transfobia, o que demonstra uma clara confusão a respeito de orientação sexual e identidade de gênero. O uso de pronome masculino ao se referir às travestis e identificar a pessoa trans pelo nome que ela não identifica como seu também são recorrentes. Os erros citados são demonstrações de transfobia e reiteram esse preconceito.
Além dessa invisibilidade que se constrói em cima da marginalização das pessoas trans*, é muito comum que as pessoas transexuais só sejam lembradas num momento: para fazer piadas a respeito de sua identidade, o que é uma forma de manter a marginalização. O programa virtual Porta dos Fundos é um exemplo recente disso.
Não é de hoje que o Porta dos Fundos decepciona a gente. É de se surpreender que um programa que tem tanta visibilidade e que é visto por muitas pessoas como uma nova forma de humor esteja fazendo mais do mesmo. É frustrante perceber que, embora possamos ver alguma novidade em alguns vídeos, eles estejam errando tanto a mão, e de forma tão grosseira.
E o que seria fazer mais do mesmo? Seria utilizar do velho humor que expõe e humilha grupos oprimidos. Mais uma vez temos um programa que não se propõe exatamente a ser libertador, mas apenas a vender um produto, que, apesar de soar moderninho, não faz nada muito diferente do que os "humoristas" do Zorra Total têm feito há anos, ou seja, rir das minorias.
Há vários aspectos que podem ser levados em consideração ao analisarmos, por exemplo, o vídeo "Casal Normal", do canal Porta dos Fundos (por respeito às pessoas trans, não linkaremos o vídeo aqui). Primeiro, sobre a questão da arte em si: qual o limite da arte? Deveríamos pautá-la? Até que ponto a arte pode se dar ao direito de ser politicamente incorreta?
Acreditamos que a arte, em si, não deveria ser pautada. Entretanto, entendemos que a arte não acontece num vácuo. Há sempre um contexto que precisa ser levado em consideração, e se a arte se decide por seguir o caminho mais fácil, ou seja, o que perpetua o status quo, ela reafirma as desigualdades. Mas, deveria a arte se preocupar com isso? Gostaríamos que não. Porque gostaríamos, na verdade, que reforçar preconceitos não fosse um produto tão rentável.
É no mínimo curioso que uma arte que apenas repete o que vem sendo feito desde sempre tenha a seguinte descrição: "PORTA DOS FUNDOS é um coletivo criativo que produz conteúdo audiovisual voltado para a web com qualidade de TV e liberdade editorial de internet." Porque basta assistir ao vídeo "Casal Normal", que por falar nisso não é o primeiro vídeo transfóbico do coletivo, para percebermos que a criatividade em questão tem seus limites. Ou seja, o limite é o da rentabilidade de um riso fácil e sem comprometimento com a realidade brutal que afeta milhões de pessoas trans mundo afora. Tal "liberdade editorial de internet" limita-se, assim como a televisão, àquilo que o "povo quer". E o povo quer rir.
Tratemos então, do segundo ponto, ou seja, o riso. Acreditamos que nenhuma argumentação nossa aqui surtirá mais efeitos que o documentário O riso dos outros. Dessa forma, aconselhamos quem ainda não assistiu ao filme que o faça o quanto antes. Por ora, é necessário refletirmos acerca de um fator que primordialmente caracteriza o riso: a insensibilidade. Para que o riso aconteça, é necessário não apenas um distanciamento da outra pessoa, objeto do humor, mas também uma boa dose de crueldade. Ou, como diria Bergson, é preciso "uma anestesia momentânea do coração". Ainda segundo Bergson, de forma geral o riso acontece a partir do defeito alheio. Rir daquilo que não nos parece "normal" é exatamente o que faz com que uma piada "dê certo".
No nosso entendimento, é aí que está o problema. As minorias são alvo fácil do humor justamente por se encaixarem naquilo que o senso comum considera como "anormal". É aceitável rir de alguém que não se parece com você. Em uma sociedade em que as minorias são tão marginalizadas e em que há uma negação 1. do problema e 2. da própria realidade de dor dessas minorias, é um tanto fácil ganhar rios de dinheiro reforçando negativamente a diferença. E sair pela tangente, afirmando que vai fazer piada com aquilo que o povo quer ouvir. Efeitos de uma sociedade em que o lucro precede a humanidade das pessoas. E o direito fundamental e humano que tais pessoas possuem de serem respeitadas.
A arte e o humor podem e devem ser criticados caso reafirmem o status quo e se baseiem em humilhar um grupo de pessoas. Mas é comum que as pessoas coloquem o humor num patamar inalcançável a críticas e ignorem que a suposta piada se baseia em desrespeitar pessoas, ignorar fatos sociais, reafirmar padrões e preconceitos.
Imagem retirada da page Transexualismo da Depressão |
Infelizmente há vários exemplos de piadas transfóbicas, a maioria delas faz questão de desrespeitar a identidade de gênero da pessoa trans. Ariadna, ex-bbb, foi vítima de várias agressões no dia do homem, por exemplo, com essa desculpa de que era humor. A última imagem extremamente transfóbica que vimos ser discutida na internet tinha o seguinte título "Prós e contras de se namorar um travesti", desde a leitura da chamada a gente percebe que a mulher trans é mais uma vez tratada no masculino, tendo assim sua identidade de gênero desrespeitada. Além disso, a "piada" reafirma padrões de gênero e ainda tem o absurdo "se você bater nela, ela não vai poder ir na delegacia das mulheres", que além da clara transfobia, é uma frase extremamente misógina. Não tem nada de engraçado em ridicularizar mulheres trans*, muito menos em colocar a violência contra elas como algo ok e que pode ficar impune.
Fazer humor não é proferir discursos de ódio como se isso fosse engraçado. Isso é agressão. E ignorar esse aspecto de violência desse tipo de "piada" que citamos é banalizar as mortes motivadas pela transfobia, é contribuir para que o desrespeito contra as pessoas trans no ambiente de trabalho, na rua, em casa, na faculdade, na escola, continue acontecendo e tal grupo permaneça sendo tratado com negligência.
Quanto ao vídeo "Casal Normal", reiteramos nosso repúdio ao mesmo, pois ele colabora para a manutenção da transfobia. A partir do momento em que se brinca de forma tão irresponsável com questões sérias e que urgem por uma reflexão de toda sociedade, o humor não é mais humor, e sim maldade. O vídeo é praticamente inteiro transfóbico, mas cabe destacar duas situações especialmente tensas: 1. o reforço da idéia de que a transexualidade é algo que não pode ser explicado às crianças (a velha pergunta 'e as crianças' entrando em ação, para cimentar a noção de que pessoas trans são bizarras e, portanto, cômicas); 2. a insistência do diretor da escola em saber qual era o nome "real" dessas pessoas, em uma clara demonstração de desrespeito à verdadeira identidade das mesmas.
Por fim, quem diz que a crueldade é uma condição sine qua non para a existência do humor, parece se esquecer que tal crueldade pode ser dirigida a grupos que não se encontram em situação de vulnerabilidade. Um humor que não destrua ainda mais a vida dessas pessoas é possível. E há humoristas que conseguem captar isso, como o documentário O Riso dos Outros bem atesta.
Indiretas feministas |
Um texto brilhante que esmiúça todas as nuances transfóbicas do vídeo em questão pode ser lido aqui. E um relato pessoal de Flávia acerca de cissexismo e transfobia pode ser lido aqui.
Fico muito feliz quando vejo pessoas maduras o suficiente pra não agir na defensiva quando recebem uma crítica. Vi que o blog foi considerado omisso por não falar em transfobia e achei ótimo que vocês tenham escrito sobre o assunto mostrando que ouvem críticas como uma forma de construir.
ResponderExcluirSue
Fico agradecida pelo seu comentário, Sue. Obrigada, mesmo. É exatamente esse o raciocínio. Tentaremos ao máximo fazer a nossa parte. Abraços.
ExcluirOlá Flávia,
ResponderExcluirLindo e esclarecedor artigo sobre um tema de abordagens, geralmente, tão evasivas. Acho que é a segunda vez em minha vida que leio a palavra "transfóbico" . A primeira vez que tive acesso a esta palavra foi com minha lindíssima amiga Fabrícia, uma amável travesti aqui de Sergipe .
Fazer pouco da minoria e ignorar sua dor só se explica na falta de sensibilidade com sentimentos alheios, pois é inadmissível acreditar que os humoristas do Porta dos Fundos e outros da mesma linha não tenham amigos e amigas de diversas orientações sexuais o que torna a piada mais desumana .
A outra face é o dinheiro - como bem escreveu -, pois canais assim são parceiros do Youtube e monetizam seus vídeos - ganham um dinheiro bom - , então vez por outra lucram com as lágrimas daqueles ainda desprovidos de segurança sócio-jurídica .
Parabéns Flávia .
Eros.
Eros, sua mensagem é bacana, mas só queria te corrigir a respeito do "amigos e amigas de diversas orientações sexuais", porque ser travesti não é uma questão de orientação sexual e sim de identidade de gênero. Mas de fato é assustador como ridicularizar pessoas trans em tom de piada é desumano e sinal de falta de empatia.
ExcluirA leitura desse texto pode te ajudar a entender a diferença: http://blogueirasfeministas.com/2013/01/a-morte-e-a-morte-de-uma-travesti/
Obrigada, Eros. Ah, o texto é de dupla autoria, foi escrito a quatro mãos por mim e pela Thaís Campolina. E a mensagem da pessoa anônima acima é bem pertinente. Mais uma vez, valeu pelo comentário!
ExcluirO comentário anônimo é meu, como não estava no meu computador não consegui logar pra sair com meu nomezinho.
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