quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O meme do ministro: curtir/compartilhar a birra da exceção


É de conhecimento geral do país que ocorreu recentemente, no Brasil, o julgamento do escândalo de corrupção conhecido como mensalão. Em um extenso voto que durou uma tarde, o ministro Joaquim Barbosa condenou, só nessa segunda-feira (10 de setembro), nove réus envolvidos no famoso esquema de lavagem de dinheiro que despertou a ira de milhões de brasileiros. A cólera se abateu tão fortemente sobre muitos desses milhões, que acabou fazendo com que a corrupção fosse alçada ao status de problema único que assola a humanidade. A corrupção afetou tanto o sono e o raciocínio dessas pessoas, que até reportagens sem relação com o tema converteram-se em espaço para desabafos. Um canguru morreu na Austrália? Brasileiro é muito corrupto mesmo, cara. Um vândalo pichou o trem numa bucólica cidadezinha do interior dos Alpes Suíços? Brasileiro é isso aí, povo incivilizado, corrupto. A corrupção é o câncer que se alastra pela nação. 

Entretanto, não vou negar que em meio a essa avalanche de indignação, que chega ao ponto de querer silenciar outras lutas, muita coisa interessante aconteceu. Percebi, com alegria, que o ministro Joaquim Barbosa, relator do julgamento, foi alçado à categoria de herói pela população brasileira. Ele, que rejeitou o título dizendo-se “apenas um barnabé”, passou a ser visto como modelo de cidadão incorruptível e justo. Vários memes circularam pelas redes, celebrando a vida do nosso ministro e sua atitude enérgica para com os criminosos. A punição exemplar, calcada na Constituição, daria ao ministro credibilidade suficiente até para se candidatar a presidente do Brasil. Pelo menos, foi isso que senti ao presenciar a frequência com que tais memes apareciam em nossos feeds de notícias.

Eu confesso ter ficado feliz com a reação das pessoas à ação do ministro. Entretanto, escrevo-lhes essas mal-traçadas de hoje para deixar registrado um fato que me chamou bastante a atenção. Creio que aí entra em cena a galera insone e com raciocínio afetado a que me refiro no início do texto. Dentre tantos memes comemorativos, circula alguns nada a ver BEM nada a ver mesmo que dizem algo como: “Esse negro não precisou de cotas para entrar no STF”. Vi várias variantes do meme com o mesmo conteúdo. 



Parece que o fato do ministro Barbosa ter brilhado no processo que culminou com a justa condenação dos envolvidos agiu no sentido de alavancar o sentimento de arrebate experienciado pela galera contrária às cotas. Muitxs negrxs publicaram, orgulhosxs, tal meme em seus murais e afins. Acredito que a identificação com o ministro, que teve um longo caminho de luta e superação individual para chegar onde está, forneceu esteio necessário para a viralização de tais memes. 


Em uma estrutura mais superficial, eu vejo esse compartilhamento coletivo como uma insistência em celebrar as exceções, que são raríssimas no Brasil, mas que funcionam como um inebriante exemplo de uma ufania conhecida como meritocracia. A cada foto que eu via, ficava a sensação de que a mensagem era uma só: tá vendo como não precisamos de cotas? Negros são capazes de subir na vida sozinhos!

Um parêntese: eu não deixo de me entristecer e me sentir impotente ao perceber o alto índice de pessoas negras compartilhando essas coisas. Isso prova, a meu ver, que a colonização mental “work” muito bem, pra usar o termo do racista Monteiro Lobato, tamanha é a sua sutileza em incorporar até aquelas pessoas que deviam opor-se fortemente ao sistema, dado o caráter excludente do mesmo.

Agora, em uma análise mais profunda, percebemos o grau de incoerência desse segmento da população brasileira: ficou a impressão de estarem celebrando algo que o ministro não é. Ou seja, ele não é contra as cotas. Tanto que seu voto foi a favor das mesmas. Vejam bem. O ministro é um privilegiado. Dizem que ele já foi faxineiro e tem uma história de esforço e superação pessoal linda pra contar. Isso faz dele uma exceção. Uma exceção que pode, e deve, ser celebrada.

Entretanto, as pessoas insistem em incorrer num erro primário, pra dizer o mínimo. Ao celebrar a exceção, também dão a entender que todo um sistema deve ser feito de...exceções. Assim, é natural, normal e até desejável que a sociedade seja composta por uma maioria que mal consegue pagar o aluguel e uma minoria que, com muita garra, determinação e leitura do Segredo, consegue chegar ao topo. E se alguém questionar tudo isso, a resposta é imediata: quem mexeu no meu queijo?

Eu confesso que fico passada quando me vejo diante desse tipo de raciocínio. Ainda bem que existem muitxs negrxs que, assim como o ministro Joaquim Barbosa, não compram essa idéia de que as exceções seriam suficientes para justificar a situação de pobreza e falta de dignidade em que a grande maioria se encontra, hoje, no Brasil. O fato de o ministro Joaquim ter alcançado o topo é ótimo? Sim. Porém, seguimos sendo uma das nações mais desiguais do mundo. É por isso que eu gostaria de finalizar com as palavras do Sakamoto, que ao meu ver resumem perfeitamente o que ocorre no Brasil desde sempre. Lembram do meu parêntese sobre a colonização mental? Pois é.  

“Parte dos trabalhadores que adentraram a linha do consumo adota com facilidade o discurso conservador. Conquistaram algo com muito suor e têm medo de perder o pouco que têm, o que é justo e compreensível. Mas isso tem consequências. Em pesquisas de opinião sobre políticas de habitação, por exemplo, quem tem pouco abraça por vezes um discurso violento, que seria esperado dos grandes especuladores urbanos e não de trabalhadores. Afirmam que, se eles trabalharam duro e chegaram onde chegaram sozinhos, é injusto sem-teto, sem-terra ou indígenas consigam algo de “mão-beijada” por parte do Estado. Ignoram que o que é defendido por esses excluídos é apenas a efetivação de seus direitos fundamentais: ou a terra que historicamente lhes pertenceu ou a garantia de que a qualidade de vida seja mais importante do que a especulação imobiliária rural ou urbana.

E que dignidade não é algo que tem que ser conquistado a duras penas através do esforço individual, mas faz parte do pacote de direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais que você deveria ter acesso simplesmente por ter nascido. Ignoram porque aprenderam que as coisas são assim.”


11 comentários:

  1. Acho que esse post resume muito melhor meu comentário: http://eterea-essencia.blogspot.com.br/2012/08/o-meu-privilegio-nao-representa.html

    Adorei o texto!

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  2. Eu me sinto tão perdida... Eu não tenho opinião formada sobre as cotas! Eu consigo ver os dois lados, e não sei o que é certo...

    Tipo, não deveria ter cotas porque todos devemos ter a mesma chance. E quem foi injustiçado foram pessoas de outras épocas, não as mesmas de hoje (tipo, foi a avó que foi injustiçada, mas é a neta que hoje está aqui).

    Porém, quando eu leio textos como esses e de outros blogs feministas, eu consigo ver que tem um sentido!!! Eu fico confusa =(

    Alguém já se sentiu assim? =/

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    1. Talvez eu já tenha me sentido 'injustiçada', pq qdo eu estava na condição de oprimida/impedida, mas por causa daquele sentimento de egoísmo enrustido de inconformismo que diz que todo mundo deve sofrer tanto quanto eu sofri. Acho que talvez precise-se voltar na época da colonização, onde os jesuítas para confortar a consciência e a econômia da época diziam que negros não tinham alma. Eram coisas e como coisas eram tratados. (não tinham direitos sobre seus corpos e suas vontades. Mas não vou me estender. tenho certeza que você sabe de tudo isso)
      Com a abolição, que ao contrário do que muita gente imagina, não partiu de uma grande benevolência e conscientização da realeza(princesa Isabel), mas sim de uma pressão política internacional.
      Abolidos, estavam os negros em terras estranhas, sem casa, sem trabalho e sem comida, porque os brancos (a maioria esmagadora) não iam passa a pagar as suas 'coisas' para continuarem fazendo o que faziam antes. E agora sem castigos, sem multilações.
      O tratamento de coisa, deve ser interpretado latu sensu. Coisa é coisa. Coisa não tem inteligência, não tem beleza, não tem sentimentos e nem direitos. Você não faz idéia de como esse raciocínio impregnou na sociedade. Não faz mesmo.
      Mas voltando à parte histórica: como eu não vou pagar coisas pra continuar me servindo o que fazer? contratar imigrantes! Japoneses, italianos, alemães, árabes..... Aí veio a época da imigração e nessa época e foi essa mesma galera q veio pra cá e precisou (além do emprego) de casa. Essas casas eram 'conquistadas' assim, cercando e construindo. Conquistando sua prosperidade. Tenho certeza que você conhece algum desses descendentes q vão contar como era difícil pra eles...mas pelo menos eles recebiam pelo seu trabalho e eram tratados como gente.
      Pra você ver como a exclusão estava tão impregnada q a abolição passou a não ser tão bem vista a ponto de escravos pedirem pra voltar para seus senhores para pelo menos terem o que comer. Essa exclusão foi sendo amenizada, a partir do reconhecimento do negro como gente, mas deixa as suas marcas até os dias de hoje (social e culturalmente falando. Acredite, não é coincidência a parcela esmagadora da população carente ser de negros e pardos)
      Mas felizmente os direitos sociais/políticos estão avançando de tal forma que, que as minorias tem conquistado todo dia pequenas coisas. as oportunidades que não tivemos e estão sendo dadas hoje, devem ser comemoras e não rechaçadas.
      Agora a pergunta: você acha mesmo que há oportunidades iguais sem as cotas? Se sim, por favor me explique em detalhes sua opinião. E, claro, defina oportunidade.

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    2. Então, a primeira coisa que eu falei é que eu não tenho opinião sobre o assunto kkkkkkkk eu não sei o que te responder direito, mas obrigada pelo seu comentário! Me fez relembrar o que eu aprendi sobre a história! Irei refletir isso com a mente aberta =)

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  3. Ah, tudo o que eu penso a respeito desse causo está aqui. E olha que fuincionaria muito bem se mudassemos o "verbete" Joaquim Barbosa por Barack Obama... Uma beijuca e vida longa ao blog.

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  4. excelente texto! um comentário além: me impressiona o fato de que o ministro não fez mais do que a obrigação ao condenar os caras, sabe? parece que o brasileiro realmente quer eleger heróis que lutam contra a corrupção.

    antes desse fato, o ministro era desprezado, diziam até que ele entrou no stf por "cota para negros" em tom de ofensa.

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    1. Pois é, me falaram isso depois que eu publiquei esse texto, que ele era desprezado! Eu fiquei de cara, sério mesmo! Coerência, cadê?

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  5. puxa vida... genial esse teu texto :)

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  6. Ele não precisou de cotas, mas ele é VEEMENTEMENTE a favor das cotas.

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