segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Estética e futilidade: Uma associação fundamentalmente misógina medieval


Aviso: Esse texto não tem de forma alguma a intenção de fazer qualquer tipo de julgamento, determinar a necessidade de uma preocupação específica ou desmerecer quem não a prioriza. O objetivo é exclusivamente destrinchar e compreender a participação da misoginia na formação do conceito de futilidade que temos hoje.
Quem tem essa mania de se enfiar em qualquer discussão do facebook às mesas de bar percebe facilmente uma crítica constante nas rodas de intelectuais, cults ou seja lá como a gente (se) chama: A aversão do culto ao corpo.
Usei essa expressão por ser deliberadamente a mais usada, mas na real, muito me incomoda o uso da palavra “culto”, pois não é exatamente disso que se trata. Essa crítica não se foca apenas na idolatria e nos possíveis males causados por uma visão unilateral (pelo contrário, ela por si só é uma visão unilateral), mas abrange todo o conceito de futilidade. Bem explicadinho é assim: Acredita-se que questões como a moda, estética e preocupação visual em geral, são vazias e vão na contramão do que seriam as verdadeiras preocupações sociais. Gostar e dedicar-se a tais assuntos seriam praticamente um atestado de falta de inteligência. Esse conceito de futilidade está disseminado a tanto tempo que nos parece plenamente natural, é uma verdade bem pouco questionada. Entretanto quando voltamos historicamente podemos perceber associações entre a argumentação moderna que sustenta essa afirmação e os dogmas medievais, o que elucida sua origem.
Embora tal conceito possa ser considerado de origem filosófica, precisamos considerar a ligação entre filosofia e igreja, um não está completamente emancipado do outro, especialmente se tratando da Idade Média. E foi nela mesma, a Era das Trevas, que se fixou a depreciação da preocupação estética.
A imagem do homem sábio está ligada a uma aparência desprovida de vaidade. A filosofia passa a dizer que o homem que deseja conquistar o mundo da sabedoria necessariamente se desprende da futilidade terrena que é visual. Essa mesma vaidade criticada aqui é condenada pela bíblia, apenas a nível de exemplo, em Levítico está escrito “Não cortareis o cabelo, arredondando os cantos da vossa cabeça, nem danificareis as extremidades da tua barba.” (19:27). Percebem como a aparência do homem sábio e a do homem de deus são próximas?
Sendo assim, a estética e a sabedoria são colocadas de uma maneira maniqueísta, são opostas. Enquanto a racionalidade é primordial, a estética é secundária. Junte a isso o fato de que a vaidade - e a estética em geral - vem sendo associada as mulheres desde uma historinha que não sei se vocês conhecem, na qual uma mulher é retirada, formada a partir da costela de um homem. Simbolicamente nessa versão da criação a mulher já vem como um pedaço, ou seja, sua essência é secundária, ela já é o próprio adorno.
Nesse contexto o conhecimento,  a razão e a filosofia são colocados como contrários e superiores a toda característica que está ligada ao conceito de mulher. A partir daí foi instituído o medo e a demonização do corpo, das formas e da vaidade.
Resumidamente, a futilidade, que foi conceituada com base em toda a construção bíblica do feminino passou a ser condenada socialmente. E é esse o vestígio que vemos até hoje em uma sociedade intelectualmente moralista que carrega consigo essa visão contraditória da sabedoria e da vaidade.
Para as mulheres restaram as piadas de loira burra. A loira, no caso, é apenas um exemplo do que seria bonito (o que explicita o padrão de beleza europeu vigente) e, consequentemente, fútil. Para os homens restou o diagnóstico de metrossexual caso manifestem preocupação estética afinal, como homens, suas mentes deveriam estar exclusivamente voltadas para o campo da razão.
E ainda acredita-se que neste campo da razão conhecimentos como moda e arte não são válidos, ou são menores do que os outros. Por terem essência estética são secundários e consequentemente ligados ao conceito bíblico de feminino e ao conceito medieval de futilidade.
Esses (pré)conceitos pautados na moral cristã se manifestam socialmente até hoje e são fortes motivos para julgamento. Além disso, se um campo do conhecimento é válido e o outro não, fica claro para qual “devemos” seguir para ter qualquer tipo de reconhecimento. Essa hierarquização é machista e extremamente castradora que não nos permite dar a devida atenção a nossa própria sabedoria e a direção na qual ela nos leva.
Como se precisássemos necessariamente escolher entre dois campos opostos: Corpos e artes ou razão e filosofia. Não precisamos. Não somos essa visão misógina, sólida e chapada dos seres humanos. Nosso conhecimento merece ser valorizado por si, pela atenção que nós damos a ele, pelo nosso desejo. Não pelo julgamento (ainda tão Velho Testamento) alheio.

9 comentários:

  1. Cara, cabuloso!!!!

    Ou seja, formidável, fabuloso, maravilhoso texto!!!!

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  2. Eu gostei muito do texto, trouxe várias reflexões e já escrevi sobre algo desse tipo tbm: http://eterea-essencia.blogspot.com.br/2012/02/gente-nao-quer-so-comer-gente-quer.html. Mas quero fazer apenas duas observações: Isso que conhecemos cm Idade das trevas é uma falácia criada pelo Iluminismo. Não houve essa "idade das trevas", foi uma época conhecimento, arte pulsante, mas com o Iluminismo e sua postura antropocentrica, tudo o que veio da Era Medieval foi colocado cm "trevoso", muitos registros foram queimados e o que conhecemos dessa época (pelo menos nós, que não nos aprofundamos tanto) é apenas o que veio após a fase Iluminista.
    Tbm não vejo isso do se abster da vaidade cm algo machista e misogino, já que, se formos para pegar a Bíblia cm base, homens e mulheres eram incentivados a se abster dos prazeres terrenos, da vaidade e dos bens materiais. Outras religiões, cm o Brudismo, tbm pregam isso.
    Acredito que a crítica aqui seja mais referente aos estereotipos, já que crescemos achando que "ou se é bonita, ou burra" o que não é de forma nenhuma verdade! Mas tbm acho que é válida essa crítica pelo excesso de querer se enquadrar nos padrões e esquecer-se do resto, há mesmo pessoas assim, homens e mulheres.
    Bem, é a primeira vez que comento aqui!Gostei muito do texto ^^!

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    1. Dayane, eu concordo que homens e mulheres sejam ensinados a se abster, entretanto isso é misógino sim, pois o carnal, o fútil era associado ao feminino. Afinal, como eu disse, a Eva nasce já como o próprio adorno do homem. Ela é quem oferece a maçã e tudo o mais, entende? O homem deve fugir justamente da mulher que é a figura demonizada.

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  3. Vejo que tem casos de pessoas que gostam de manter uma boa aparência e mesmo assim estar de bem como a vida, por vezes até uma vaidade pequena como uma mecha de cabelo de outra cor faz a pessoa se sentir feliz.

    O que eu não gosto é desse padrão de beleza inalcançável onde a maior vítima sem sombra de dúvidas é a mulher, pois é como se existisse uma obrigação dela ser sempre jovem e magra pra não ser desvalorizada, tanto as mulheres quanto os homens chegam a submeter a certas coisas que acabam até mesmo com a própria saúde para estar no padrão de beleza.

    Eu sinceramente não veria graça em um mundo onde todas as pessoas fossem altas, brancas, magras e de olhos azuis, pois o que torna o ser humano algo com uma identidade própria são suas diferenças, pois existem altos, baixos, gordos, magros... Jamais um deveria ser melhor ou pior do que o outro, apenas diferentes como duas nuvens no céu, mas sem perder a sua beleza.

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    1. Então, eu concordo com você. Ia adicionar isso no texto, mas acho que ficaria grande demais hehe. Para mim o problema não é gostar do corpo, de roupas, de arte em geral. O verdadeiro problema é o padrão, ele é o vilão da história, ele que não permite que "cultuemos" de fato nosso corpo, nossos gostos estéticos e etc. Ele é quem nos aprisiona.

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  4. Outro dia estava refletindo sobre isso.
    Como a mulher está SEMPRE errada.
    Porque é cobrada uma vaidade, uma beleza, que não são naturais - ninguém tem cabelos naturalmente hidratados e brilhantes(não importando a forma ou cor); unhas naturalmente arredondadas, desprovidas de cutícula, e com cores variadas; pele naturalmente lisa, corada e macia, o tempo todo.
    Essas coisas exigem um tempo mínimo de dedicação, cuidado e produtos.
    E ainda nem se falou sobre forma física, que exige um mínimo cuidado na alimentação e exercícios constantes - isso se a pessoa desejar ser mediana, e não ultra magra ou "sarada"...
    Mesmo assim, aquelas que praticam tudo isso são recriminadas.
    Há uma carga muito grande, constante, e negativa, a tudo o que é feminino.

    Como que algém consegue me dizer que não há misoginia, gente?

    (por sinal, acho que é a primeira vez que comento, mas o blog é ótimo e os textos são muito pertinentes, bem abordados e bem escritos. Parabéns!)
    PS: Eu sei que existem homens que também sofrem pressões, mas isso acontece exatamente por terem comportamentos considerados femininos - e, portanto, piores ainda em homens....

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  5. Eu chamo isso de "misoginia social". Tudo que é entendido como feminino é discriminado, tratado como de menor valor, até produtos culturais que meninas e mulheres gostam. Bandas como Restart e Backstreet Boys, livros como Crepúsculo e 50 shades of Grey, novelas, filmes românticos, são sempre tratados como inferiores, as pessoas têm até vergonha de assumir que curtem. Um homem ofende o outro o chamando de mulher ou dizendo que ele entende de cozinha e moda. Porque mulher, na visão social, é inferior. E não podemos aceitar isso.

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  6. Concordo bastante com o texto. Só não sei se concordo com o trecho “Não cortareis o cabelo, arredondando os cantos da vossa cabeça, nem danificareis as extremidades da tua barba.” é válido para respaldar a crítica, pois também é uma preocupação com a aparência. Achar que cabelo e barba grandes são má aparência é algo de hoje, puramente cultural também.

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