sexta-feira, 29 de março de 2013

"Não vale o quanto pesa" e a indignação sem profundidade.





A páscoa está chegando e faz um tempinho que eu tenho visto uma movimentação nas redes sociais a respeito dos preços abusivos dos ovos de chocolate no Brasil. Meu face tem mostrado a ampla divulgação de cartazes de "não vale o quanto pesa", ou ainda "compre carne, não ovo". Confesso que o tema gerou em mim uma certa inquietação, que se traduz em forma de questionamentos. São perguntas para as quais eu não tenho necessariamente respostas, mas ainda assim eu creio ser importante colocá-las para discussão. 


Acho que a minha primeira reação ao ver tais posts foi de surpresa, com uma boa dose de frustração por perceber que, hoje em dia, o preço das coisas gera muito mais indignação do que questões sérias envolvendo direitos humanos. Parece, e isso é um desabafo mesmo, que as pessoas de uma forma geral só se preocupam com aquilo que mexe diretamente com o bolso delas. 


Mas, uma pergunta que sempre me vem à mente quando vejo tais posts é: essa pessoa tem noção de que preço é diferente de valor? Eu sei que parece uma pergunta besta - e básica - mas eu acredito mesmo que ela se faz pertinente, pois repassa-se o post à exaustão, como se realmente o valor de um ovo de páscoa estivesse puramente restringido ao seu peso. 


Ora, Flávia, mas você não acha que o valor agregado ao ovo de páscoa está exorbitante, abusivo? A resposta imediata é: sim, o preço realmente está muito além do que seria aceitável. Assim como o preço de praticamente tudo no Brasil. Porém...eu não vejo como posts como esse, que procuram uma solução para o problema mais aparente, ou seja, o preço final do produto, possam ser transformadores. Não consigo entender como esse tipo de campanha pode exercer alguma influência no sistema, alguma pressão para que o sistema mude, sabe? 


Daí que o questionamento acima me leva a outra questão: como o capitalismo convenientemente nos deixa à parte de todo o processo de produção. Chegamos num ponto em que a única coisa que verdadeiramente importa é o suor que gastamos para... comprar produtos. Parece que, ao demandar por preços mais baixos, as pessoas fazem pouca questão de entender que a redução do preço não vai implicar necessariamente em redução de lucros por parte das empresas e corporações. 



Acho que é aí que reside o aperto no meu peito, quando vejo tais mobilizações online. Para além do óbvio "classe média sofre", eu chego à conclusão que, hoje em dia, preocupa-se muito pouco com uma compreensão mais profunda do mundo que nos rodeia. E, pelo menos pra mim, isso é perigoso. Porque nessa equação, fica de fora a mão-de-obra barata, o trabalho escravo, o sofrimento - de humanos e animais - para que possamos exercer nosso poder de barganha em paz. 

Porque é essa a idéia que a preocupação exclusiva com preços faz. Vejo pessoas gabando-se de ter comprado 6 caixas de bombons ao invés do maldito ovo de páscoa caro. Burlaram o sistema? Não sei. Não vejo como o fato de comprar bombons ao invés de ovos possa ser visto como "consumo consciente". Seria consumo consciente de quê? De que não vale o quanto pesa? Mas será que é SÓ isso que importa? 



Hoje em dia está cada vez mais difícil ver indignação com algo que vá além dos nossos bolsos. Não nos vemos mais como parte do problema. E se o problema aparentemente não está em nós, então não há muito o que fazer, certo? Afinal de contas, por que eu deveria me preocupar com o trabalho escravo da Zara, se o que eu quero mesmo é um look daora? Pra que me preocupar com o ciclo de exploração do trabalho infantil envolvido na produção de chocolate, se o que importa mesmo é eu contar prxs amigxs que eu fui zuper esperta e comprei 6 caixas de bombom ao invés do ovo? Pra que estressar com o fato de que o diamante que eu ganhei do bofe é fruto de trabalho escravo no continente africano? Pra que me preocupar com os componentes do meu computador, que foram montados na China, se lá a super-exploração da mão-de-obra barata se justifica pelo enorme contingente populacional do país? 

Acho que já deu pra expressar bem a minha inquietação. O capitalismo se mantém e se reforça ao fazer com que os produtos cheguem a nós como se fosse um passe de mágica, como se nenhum processo complicado, com N fatores que incluem a opressão de muita gente, incluindo nós mesmxs, estivesse envolvido. A forçação de barra chegou a tal ponto que, hoje em dia, é sinal de inteligência o fato de alguém conseguir fazer com que algo - a maquiagem, o visual, a decoração da casa - pareça "natural" sem realmente sê-lo. Pra mim, isso diz muito. A mensagem, clara e sem rodeios, de que você precisa passar uma idéia de despretensão, de que não fez muito esforço para conseguir tal e tal efeito, é resultado direto dessa ideologia em que estamos mergulhadxs - a de que o processo precisa, a todo custo, ser escondido. E a pergunta fica: quem está, realmente, ganhando com isso? 

Deixo aqui duas sugestões de vídeo: A história das coisas e esse aqui da Folha, rapidinho, sobre escravos da moda.  

7 comentários:

  1. Já leio seu blog há um ano, eu acho, e acredito q ainda n tinha deixado nenhum comentário por aqui...

    Parabéns por todas as reflexões desse texto. Muita coisa eu acredito e outras me fizeram pensar. Refletir além do consumo imediato e repensar esse sistema de valores distorcidos. Agradecida!

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    1. Obrigada por nos acompanhar, sei que comentar toma tempo, por menor que seja, então agradeço mesmo o seu comentário!

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  2. Oi Flávia!
    Também leio o blog há tempos e acho que esse é o meu primeiro ou segundo comentário.
    Sempre tive reações super positivas aos posts do ativismo de sofá (aquele da Beyoncé foi foda!), e esse post não foi diferente.
    Contudo, vim comentar sobre duas questões que eu quero levantar:
    1) "Hoje em dia".
    O tom que usas é um que parece dizer que um dia o coletivo já foi mais politizado, que hoje somos muito menos engajados nos temas sérios. Embora eu concorde que realmente o "índice de engajamento do povo" flutue, não acho que ele está muito mais baixo que a média histórica. Mesmo se compararmos com a média dos anos 70, por exemplo.
    Política e religião nunca foram assuntos bem vistos. Small talk sempre foi o tema preferido em reuniões sociais. Mas hoje em dia, vivemos em uma grande reunião social. A internet (e o facebook) faz com que ficamos sempre no "elevador" com os outros. E no elevador não se fala de coisa séria. Só se pode chutar cachorro morto. E tem cachorro mais morto que preços de ovos de páscoa?
    Eu gosto de ver que os meus amigos militantes não compartilharam nada sobre os ovos de páscoa. No entanto, todos que reclamaram dos meus posts atacando machismo, racismo ou homofobia, falando que "não era coisa pro facebook", por exemplo, postaram a história do ovo.

    Então: não é que somos menos politizados, é que a internet dá uma visibilidade maior a quem "não quer balançar o barco". IMO.

    2) Capitalismo.
    Coisas como trabalho escravo, machismo, e violência não estão ligadas diretamente com o capitalismo. O consumismo está, mas acho que dá para separar os dois também.
    Atacar o capitalismo (a troca livre de produtos, via moeda de troca), como um monstro opressor, acho que é errado.
    Me explicar aqui levaria alguns parágrafos a mais, e tornaria o todo menos fácil de ler. Peço desculpas.
    O ovo de páscoa tem o exato preço que ele deveria ter. Se não tivesse, o preço cairia. O preço final do produto tem a ver com quanto as pessoas querem pagar. Minha mãe comprou dezenas de ovos esse ano (como todo ano) mesmo sabendo que estava pagando muito mais por cada grama de chocolate. Para ela, o valor do ovo é esse. É maior do que o seu peso em chocolate.

    Ao postar coisas contra o preço final de um produto (o ovo), que só é mais caro que seu primo próximo (a barra), por ter mais demanda, o pessoal não está querendo mudar nada. Estão apenas falando do tempo "e essa chuva que não para, hein?".

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    1. Oi Fox, obrigada por comentar! Seus pontos são muito interessantes. No caso do "hoje em dia", me desculpe se ficou parecendo que eu estava reclamando como se tivesse existido um tempo em que as pessoas eram mais politizadas. Também não acho que o engajamento esteja menor agora do que antigamente. Porém, o que eu pensei na hora de escrever o texto foi em um tempo em que o consumismo não ditava tanto o nosso comportamento, sabe? Eu pensei exclusivamente em termos de consumo. Obviamente, as pessoas de antigamente eram menos consumistas porque o mundo não era tão industrializado, mas mesmo assim houve um tempo em que as pessoas pensavam melhor a respeito do que consumiam e, seja pela escassez daquela época (tanto de recursos como de produtos disponíveis no mercado), eu sinto que o consumo chegou a tal ponto em que o processo é totalmente ignorado e é isso que eu questiono. Mesmo a internet sendo "conversa de elevador" como vc diz, é frustrante perceber que as pessoas se empenham em falar "aí galera, vamos celebrar a páscoa com consumo consciente" ao compartilhar um cartaz desses. Acho que foi isso que eu quis desabafar - que isso não é consumo consciente. E que se o processo não está sendo levado em conta, as indústrias acabam lucrando mais com isso.

      E agora com relação ao capitalismo, eu realmente não concordo, embora ache interessante o seu ponto de vista. Acho que o preço final dos produtos poderia ser o mesmo, se não houvesse tanta exploração de mão-de-obra, ou seja, se as empresas tivessem menos lucro. Quando as pessoas se mobilizam para tentar baixar o preço de alguma coisa, a mobilização geralmente gira completamente em torno do preço final do produto. Até hoje, eu vi pouquíssimas pessoas se posicionando abertamente contra o lucro excessivo das empresas. Elas querem mesmo é baixar o preço e eu vejo que isso pode até ser feito, mas às custas de baixar ainda mais o pagamento dado à mão-de-obra, e é por isso que eu reclamo. Parece que nós aceitamos muito facilmente a idéia de que as empresas precisam ter lucros exorbitantes. Isso é dado como algo natural do capitalismo. São questões que me inquietam, mesmo não tendo respostas a elas.

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  3. O post é um verdadeiro "pense fora da caixinha", é realmente muito bom.

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  4. Bacana. O que me incomoda nem é tanto a "fuga" que a classe-média que poderia comprar os ovos caros, mas que "dá valor" ao dinheiro e acaba gastando o mesmo dinheiro para comprar várias barras de chocolate... É sim que essa fuga é vista como cidadania. Digo, como ação de um cidadão politizado, como algo que o sujeito faz para a melhora do país, como um imperativo moral para o bem da nação.

    Quando nossas ações política - micropolíticas - se resumem em comprar duas barras ao invés de um ovo, então estamos atolados numa ideologia burra de mercado.

    A moça de cima falou que se fosse para o preço abaixar, ele abaixaria. Eu duvido. O preço envolve uma relação simbólica da mercadoria com os sujeitos - essa relação que vai conduzir uma demanda alta ou não. Não se trata de uma escolha racional pautada nas opções que o mercado nos dá. Em última instância, o mercado não dá opções, ele obriga a comprar. Opção só existe se você puder não comprar, mas só não pode comprar quem não tem grana para comprar. A compra se torna um divisor de incluídos e excluídos. Então, reclamar do preço do ovos, me parece, é expressão de uma revolta aos moldes do "Acorda Brasil" ou dos movimentos contra corrupção. Revoltas de classe-média, revoltas inócuas, revoltas pautadas num senso de crítica ao povo, numa crítica ao cidadão brasileiro que não é tão bom, tão moral, tão inteligente para deixar de comprar o ovo de chocolate ou para parar de votar no PT, por exemplo.

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  5. Como se a barra de chocolate também tivesse um preço justo.

    Barra de chocolate da Lacta a R$ 3,99 e 170 gramas? Atualmente essas barras são de 150 gramas (ou menos que isso) e custam, no mínimo, R$ 5,00.

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