Inicio o texto de hoje narrando um caso que aconteceu comigo, quando eu morava nos EUA. Ainda hoje, confesso, eu me lembro do medo que senti, e isso me causa um mal-estar danado, principalmente porque eu sempre tentava me convencer de que eu estava exagerando.
Pois bem. Eu fui fazer compras em um hipermercado, não muito distante da minha casa. Usei o GPS para chegar ao local. Acabei demorando, entretida que estava com tantos ítens de decoração lindíssimos que vi por lá. Depois de um tempo, volto ao meu carro, e tenho a brilhante idéia de não usar o GPS, pois pra mim, o caminho estava fresco na memória.
Acontece que eu me perdi. Escureceu mais rápido do que eu imaginava e, de repente, as ruas eram todas iguais. Eu estava perdida em uma área residencial próxima ao supermercado, e não conseguia: a. retornar à loja, b. encontrar o caminho de casa. Fui ficando aflita, e ao perceber que estava girando em círculos, eu parei o carro. Enquanto eu abria o porta-luvas para pegar meu gps e ligá-lo, as luzes das casas começaram a acender. Eu estava parada em frente a uma casa, e enquanto digitava meu endereço no gps, eu percebi uma cabecinha me espiando pela cortina. Era uma mulher branca.
A sensação de medo é indescritível até hoje, quase dois anos depois do ocorrido. O gps demorou uns trinta segundos para reaver o mapa, e eu confesso que foram trinta segundos bem demorados. Eu tremia, meu coração parecia que ia sair pela boca, e tudo que eu conseguia pensar era: vou levar um tiro. Na cabeça.
Até hoje eu não sei explicar direito de onde me veio esse pensamento. Talvez de tanto escutar a velha frase "a pessoa errada, na hora errada, no lugar errado", eu fiquei com aquela sensação de que tava tudo errado naquele momento que eu estava vivendo. Cheguei em casa ainda trêmula, contei o ocorrido ao meu marido, que ficou bem preocupado. Depois de conversarmos sobre o assunto e eu prometer que nunca mais deixaria de ligar o gps, mesmo que eu tivesse certeza do caminho, eu meio que o convenci, e convenci a mim mesma, que eu estava sendo exagerada. Afinal de contas, eu fiquei ali parada por menos de um minuto.
Mas, a pulga nunca saiu detrás da minha orelha. Eu sabia que o meu maior desconforto se dava ao fato de que (me disseram) o Texas tem mais armas do que gente e que a lei do 'stand your ground' (algo como 'defenda seu território') é uma realidade por lá. Mas, eu estava parada na rua, não havia motivo para me preocupar. Pelo menos é o que eu repetia pra mim mesma sempre que a história martelava na minha cabeça. Lembro ainda que no outro dia eu contei o caso pra minha professora de inglês, que me pediu, com voz de assombro: "nunca mais faça isso, eu sei que você realmente pensou que sabia o caminho, mas nunca mais faça isso, por favor".
Essa semana, eu me deparei com o seguinte título de uma notícia (em inglês): "Mulher negra é morta por pedir ajuda em uma vizinhança branca". Renisha McBride bateu o carro em uma região habitada majoritariamente por brancos, em Detroit. A bateria de seu celular tinha acabado, e ela resolveu então pedir ajuda em uma casa próxima. Acabou sendo morta. É a tal lei do 'stand your ground' em ação. Renisha morreu por ser negra. Porque pessoas negras são sempre suspeitas. Porque a Renisha, assim como eu, provavelmente cresceu ouvindo a história da "pessoa errada no lugar errado". É um eufemismo que nós ouvimos, ao invés de "pessoa negra em vizinhança branca" ou, ainda "mulher no espaço público". Ouvimos esse tipo de coisa porque é mais fácil culpabilizar a vítima. Aposto que se algo tivesse acontecido comigo, teriam jogado toda a culpa no fato de eu não ter usado o gps aquela noite. Assim como certamente devem estar especulando que a Renisha, na verdade, errou em tocar a campainha de uma casa desconhecida. Mesmo que ela não tivesse outra escolha.
O dia da Consciência Negra (20 de Novembro) está se aproximando. Uma data para lembrar toda a trajetória de sofrimento e exploração sofrida por escravas e escravos no Brasil. Mas não só isso. Pra mim, trata-se de um momento para reflexão, introspecção, ação. Em um mundo globalizado, os problemas também encontram-se interconectados. E eles são muitos, e bem complexos. O medo que eu senti nos EUA é o medo que praticamente todas as pessoas negras sentem no Brasil. Em um mundo realmente justo, a negritude não é confundida com criminalidade. Em um mundo realmente justo, pessoas negras, mulheres e demais minorias não são "pessoas erradas" porque esse conceito, simplesmente, não faz sentido.