quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Não pediremos "por favor, parem de nos oprimir"

Texto colaborativo escrito por Flávia e Thaís.

Imagem de CLIT Zine 

Hoje vamos falar da tal “educação” feminina. Por se tratar de um assunto que nos afeta diretamente, pedimos desculpas pela provável confusão do texto. Isso se deve ao nosso elevado grau de emputecimento. Oh, wait. Nós precisamos mesmo começar um texto falando olha, desculpaê, é que eu estou chateadinha com a maneira como sou forçada a pedir desculpas o tempo inteiro? Assim, por existir? Por estar respirando e ocupando lugar no mundo? Porque é exatamente assim que a gente se sente ao tentar abrir a boca pra falar qualquer coisa. E quando a discussão é dentro do próprio feminismo, amigxs, a coisa se torna ainda mais frustrante. Seguinte: tá rolando por aí um cartaz feminista que reforça a importância do NÃO na vida de uma mulher. Não - uma palavrinha tão simples mas que tem o poder de transformar a nossa vida. Pra melhor.

Parece óbvio que o patriarcado, com todas as suas artimanhas, procura nos forçar a baixar a cabeça e resignarmos com o fato de que certos comportamentos nos são proibidos, por irem de encontro àquilo que seria da "natureza" da mulher. Nesse cenário, o NÃO se configura como algo permitido às mulheres, desde que falado do "jeitinho" certo. 

Não vamos entrar na questão de que o movimento feminista é amplo, plural, e portanto abarca diversas vertentes. Queremos questionar, hoje, o porquê do cartaz ter gerado mal-estar. A princípio, podemos elencar os seguintes fatores:
1. Essa idéia, de que a mulher precisa ser dócil e saber usar da sua inteligência com meiguice, é algo tão arraigado entre nós que o cartaz em questão gerou protestos. De feministas. Teve gente dizendo que não é pra tanto: a mulher pode conseguir o que quiser sendo educada e falando baixo. Como se conseguir direitos fosse algo tão simples como pedir uma pizza.
2. Não demorou e surgiu o fatídico argumento: as mulheres, hoje em dia, estariam querendo "imitar" os homens. Sim, porque nós acreditamos com base empírica que o gênero é um construto social; nós lutamos para que o gênero que nos foi atribuído desde muito cedo em nossas vidas não nos defina. Batalhamos para que essa noção de gênero não se sobrepuje à nossa condição humana. Tudo isso para que alguém tenha a brilhante idéia de jogar o caô da "imitação˜ do homem.

É claramente perceptível como as mulheres são condicionadas a sempre se calarem, serem dóceis, sorrirem sempre e falarem com jeitinho. O termo "Bitch" é um bom exemplo da disparidade da avaliação dos comportamentos ditos masculinos e femininos. A mulher que busca realizar qualquer coisa, que tem um pulso mais firme e diz claramente o que quer é chamada por esse termo, enquanto se um homem faz exatamente o mesmo, ele é um bom chefe, um cara que busca colocar em prática suas coisas e afins.

 No cotidiano vemos outros exemplos: há quem diga "odeio gente barraqueira, se for mulher então...", "fumar é feio, mas se for mulher então...". "mulher que fala alto é feio demais" e etc. Espera-se que mulheres sempre ajam de forma muito dócil, passiva, sorridente, mesmo quando são ofendidas, têm seus direitos cerceados ou mesmo simplesmente queiram viver de acordo com o que acreditam. 

 Não é só na hora de criticar o comportamento feminino que essas características impostas às mulheres se tornam claras. Como se espera que mulheres sempre sejam recatadas, boazinhas, dóceis, não se espera que as mulheres reajam. Então, supõe-se que mulheres precisam de proteção, não conseguem fazer várias coisas sozinhas. Afinal, somos vistas como "apenas uma mulher, esses seres frágeis e passivos". 

Sequência de tweets da Carina Prates.
Clique na imagem para ler.
O comportamento feminino é condicionado a seguir esses moldes de "educação". Desde a infância nos deparamos com esses ensinamentos tipicamente femininos. As meninas muitas vezes são xingadas se o caderno está desorganizado, se brincou na rua e sujou a roupa, por terem se sentado de pernas abertas e afins. Enquanto os meninos não sofrem essas represálias citadas. E essas diferenças na criação, nas represálias, no que se incentiva é que cria a suposta "natureza feminina". 

É importante destacar que nós mulheres devemos aprender a dizer não, sermos grossas quando necessário, sentar da forma mais confortável, não temer falar nossas idéias, ideais, sentimentos e vontades. Nós devemos aprender que não é errado gritar se sentimos em perigo, que ao buscar nossos direitos, a gente não tem que pedir "por favor", que fechar a cara para quem nos aborrece e ofende é normal e aceitável. E apoiar tudo isso não é ser contra a gentileza, é simplesmente dizer que podemos reagir ao desrespeito e que nossas idéias e nossos incômodos podem ser ditos e ouvidos.

Dessa forma, acreditamos que o cartaz sugerindo que a mulher aprenda a dizer não representa uma luz em meio a tantos outros que querem regular o comportamento feminino tendo em vista apenas o paradigma "limpinho" e socialmente aceitável do silêncio.






segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Os "Bons costumes" e o slut-shaming.




Texto colaborativo escrito por Flávia e Thaís.
Por Débora Vaz - Postada na página "Homem Feminista de Verdade".
Sérgio Cabral, governador do estado do Rio de Janeiro, aprovou a lei "da moral e dos bons costumes" proposta pela deputada Myrian Rios. Segundo a deputada, essa lei é um “Programa de resgate de valores morais, sociais, éticos e espirituais”, mas segundo os críticos, ela é um programa que limitará a liberdade individual com o fim de promover valores cristãos, o que feriria o estado laico.

Myrian Rios é um nome que os militantes de direitos humanos não simpatizam, porque ela já fez declarações vinculando homossexualidade com pedofilia, disse também que não contrataria uma babá lésbica e se manifestou contra a PL122. Enfim, ela é uma das paladinas a favor da "família cristã" e contra os direitos de parcela da sociedade. 


O histórico da deputada nos mostra que seus ideais, por mais que em sua superfície possam ser interpretados como "universais", não passam de uma tentativa descarada de normatizar a sociedade brasileira através de valores "cristãos" que seguem uma pauta discriminatória machista e homofóbica.

Sabemos que o estado é laico, ou seja, não é ateu e nem religioso. A aprovação de uma lei que se propõe a resgatar valores "espirituais" é, pra dizer o mínimo, um deboche direcionado às minorias - religiosas e atéias. Não é preciso muito esforço para perceber que a deputada não está se referindo a espiritualidades candomblé, umbandista, muçulmana, hare-krishna ou qualquer outra vertente não-cristã. 

Com tudo isso, vieram à tona os debates acalorados. Não vamos nos ater aos defensores de tal projeto de lei porque só sendo reacionário-master para não perceber o quão prejudicial e inconstitucional ela é. Falemos da reação de quem é, aparentemente, contra o projeto da deputada Myrian Rios. Pipocaram cartazes ridicularizando a deputada. Ficou claro que, pra muita gente, o que desabona o projeto de lei não é o seu caráter discriminatório e claramente inconstitucional. O que gerou a reação acalorada foi o fato de a deputada ter...posado nua no passado. 

Imagem do Zine Estridente - frase de Paula Mariá
Pronto. Desvendado o mistério. Pra uma parcela da população brasileira, o problema nem é a lei em si, mas sim o fato de que a deputada Myrian Rios, por ter um passado que ~a condena~ (sério, gente, sério), não teria "cacife" pra falar em moral e bons costumes. Nós aqui do ativismo ficamos ainda com mais vontade de correr pras montanhas.

Condenar a deputada por um dia ter posado nua e usar esse fato pra desvalorizar o que ela fala/pensa não é só "apontar a hipocrisia dela". É julgar seu comportamento com base no moralismo sexual que permeia nossa sociedade. Não há como afastar o fato de que posar nua é considerada uma forma de desqualificação do "valor" feminino e por mais que se afirme que a intenção é boa porque o que se quer é apenas "apontar uma hipocrisia", a divulgação da imagem dela nua, perante o contexto social que nos encontramos, acaba por dar forças aos "bons costumes". A mensagem não é recebida conforme o esperado, por causa do significado social que posar nua tem. Dizer "dePUTAda" e "uma vez vadia, sempre vadia" não é apenas "apontar uma hipocrisia", é fazer "slut-shaming".

Buscar no passado da deputada "um histórico imoral" como forma de desqualificá-la, no lugar de criticar as atitudes machistas, homofóbicas e anti estado laico dela é colaborar com a perpetuação da perseguição de todas as mulheres que fogem, alguma vez na vida, da suposta moralidade feminina. 



terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Victoria's Secret e a reação feminista

Imagine um belo dia ensolarado em que você levanta e abre a sua janela, dá bom dia aos pássaros, contempla a natureza, faz o seu ritual diário de limpeza corporal e desjejum e senta em frente ao computador, não necessariamente nesta ordem.

Você abre o seu twitter e sorri, sem querer acreditar, ao dar de cara com suas amigas calorosamente celebrando o fato de que a rede de lingeries Victoria's Secret lançou uma campanha feminista.

Extasiada, você abre o link que está sendo compartilhado freneticamente por todxs xs seus contatos, e vê uma beldade negra, linda, curvilínea, com um enorme sorriso no rosto e uma calcinha rosa-choque com os dizeres “não significa não”. Estão fazendo lingerie que coloca a questão do consentimento em pauta. Você resgata a sua fé na humanidade, que andava abaladíssima, e pensa “agora sim as coisas vão mudar”.

Tudo lindo até que, mais tarde, a realidade bate ao seu twitter: não se tratava de uma campanha real da Victoria's Secret, que lançou nota dizendo não se responsabilizar pelas fotos divulgadas. Era tudo uma ação feminista. Tudo não passou de uma grande trollagem. Uma trollagem do bem.
Você então retoma seus afazeres, domésticos ou de trabalho, com aquela sensação de que tava bom demais pra ser verdade. Que alegria de pobre dura pouco. Que não tem jeito, as coisas não vão mudar mesmo.

Eu penso que a cena descrita acima ilustra a realidade de muitas, muitas mulheres norte-americanas que realmente acreditaram se tratar de uma campanha sensata da VS. Essa loja conhecida por reforçar padrões machistas que colaboram para a manutenção da cultura do estupro. A loja que apregoa a idéia de que é cool ser passiva e nunca discutir. A loja que lançou uma calcinha com os dizeres “sim, não, talvez” assim jogados ao vento, como se tudo não passasse de mero joguete de sedução. A loja que, pela sua própria decoração, vende a idéia de que a função primária da roupa íntima é seduzir. E que seduzir é uma obrigação de toda mulher. 


Eu confesso que perdi o babado todo, pois como já avisei aqui antes, eu geralmente vivo em órbita. Em resumo, meu jornal tá sempre velho. Acabei ficando decepcionada por saber que não se tratava de uma campanha REAL da VS mas, na boa, eu fiquei muito, muito feliz em perceber que nós, mulheres, estamos ganhando cada vez mais força e ficando cada vez mais articuladas. Seja em campanhas bombásticas como essa, seja em pequenos folhetos explicativos deixados em banheiros públicos, a realidade é que as redes sociais estão causando uma revolução no mundo. Enquanto os publicitários insistem em continuar em suas torres de marfim patriarcais, nós estamos aqui pra gritar e fazer valer os nossos direitos. E tem dado resultado.

A VS retirou o site dake do ar, mas o ocorrido não durou muito tempo. A justiça norte-americana reconheceu a validade do site, enquanto instrumento de protesto. Então vocês podem conferir a campanha aqui.

Eu sei que já tratamos disso aqui, mas nunca é demais reforçar e esclarecer acerca da cultura do estupro. Deixo-lhes as palavras das organizadoras da intervenção, as Feministas de Baltimore:

“Cultura do estupro trata-se de coisas que permitem que o estupro seja visto como normal e impede xs sobreviventes de falar abertamente a respeito. A cultura do estupro silencia. Em uma cultura do estupro, as pessoas estão rodeadas por imagens, linguagem, leis, e outros fenômenos do dia-a-dia que validam e perpetuam o estupro. Isso inclui piadas, tevê, música, propagandas, jargão legal, leis, palavras e imagens que fazem com que a violência contra a mulher e a coerção sexual pareçam tão normal que as pessoas pensam que o estupro é inevitável. Ao invés de verem a cultura do estupro como um problema a ser mudado, as pessoas em uma cultura do estupro pensam na persistência do mesmo como “é assim que as coisas são”. 


É importante que grupos menores, de base, levantem suas vozes e falem a respeito daquilo que lhes interessa. Quando as pessoas vêem uma imagem como Estupro é Estupro ou então PINK Ama Consentimento em um ambiente importante como o Facebook, mesmo que elas não se ocupem da imagem por muito tempo, isso pode ajudá-las a ver a cultura do estupro que antes estava invisibilizada. Ou então isso irá inspirá-las a criar uma imagem, uma idéia, uma realidade. Isso é importante porque mostra que não importa o quão grandes os gigantes corporativos sejam, as pessoas realmente possuem o poder de serem ouvidas e mudarem aquilo que as oprime utilizando-se das mesmas ferramentas. E nós podemos ser ainda mais eficientes do que esses gigantes”.

Precisa dizer mais?

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

E a igualdade?


Quando se fala da Lei Maria da Penha, das cotas para negros na universidade pública e na diferença do tempo de contribuição para aposentadoria entre homens e mulheres, há um argumento discordante universal que é invocar o princípio da isonomia para criticar tais normas, sendo que a base dessas normas é justamente o princípio invocado. Esclarecer esse princípio é algo urgente para facilitar o entendimento das pessoas a respeito dessas normas.

Imagem retirada daqui.
O princípio da igualdade funciona de duas formas: para determinadas coisas, como o princípio do contraditório, ampla defesa, legalidade e diversos outros, todos são iguais. Mas a igualdade material e substancial vai além, ela busca trazer uma igualdade de oportunidades, então o que acontece é que grupos que são vulneráveis por causa da cultura vigente e influência da história recebem leis próprias para tentar igualar essas oportunidades, tentar igualar a situação das pessoas na ordem fática.

"O princípio da isonomia não trata de uma igualdade formal, uma vez que igualar os desiguais dessa forma, é ignorar as pluralidades sociais que compõem um Estado Democrático de Direito e impedir a participação plena de todos os cidadãos. A igualação de grupos sociais diferentes só faz com que as diferenças fiquem mais claras e se fortaleçam."
Por que não usar apenas a interpretação da igualdade formal? Essa em que todos são iguais e pronto, acabou? Bom, por mais que ela pareça a ideal, nem sempre ela é mais efetiva e aplicável, afinal, se o objetivo desse princípio é tentar proporcionar uma igualdade entre as pessoas, se essa interpretação formal muitas vezes até fortalece ainda mais as desigualdades já existentes, a gente tem que ver isso daí, não? Pense em impostos. O tão famoso imposto de renda tem como base a capacidade contributiva de cada um. Em resumo, quem tem uma capacidade contributiva alta, tem a alíquota de 27,5% calculada em cima de sua renda, enquanto quem não tem capacidade contributiva é isento. E ainda há as variações da capacidade contributiva entre a isenção e os 27,5%. Além do mais, há outros itens que esse imposto leva em conta, como a quantidade de dependentes e afins, tudo pra tentar garantir que os desiguais sejam tratados de formas desiguais no quesito das suas desigualdades. Justo, não? Uma pessoa que recebe um salário mínimo não deve pagar o mesmo que o Eike Batista paga.

I need feminism 
Outro exemplo de igualdade material, mas fora do sistema tributário, são as leis específicas para crianças e adolescentes e também para idosos, afinal, o legislador percebeu que esses dois grupos de pessoas tem certas especifidades e vulnerabilidades, sendo assim, leis específicas tratam o caso deles melhor do que uma lei geral que ignora suas especifidades. A mesma lógica se aplica nos casos das mulheres e dos negros. É fato que uma cultura que afirma que mulheres e negros são inferiores prejudica a participação e a oferta de oportunidades iguais para essas pessoas. As leis específicas visam a efetivação de uma maior participação social dessas pessoas, uma proteção contra discriminações que prejudicam a oferta de oportunidades e a dignidade humana.

A diferença entre o tempo de contribuição para aposentadoria de homens e mulheres é muito usada como crítica ao feminismo e é um bom exemplo para mostrar que a igualdade não é sempre a igualdade formal que sempre é invocada. Os papéis de gênero definidos culturalmente colocam as mulheres numa situação onde elas trabalham fora, como toda a população, e também dentro de casa. O que caracteriza uma dupla ou até tripla jornada, porque o trabalho de casa se estende ao cuidado dos filhos. Enfim, a diferença do tempo de contribuição se baseia no fato de que ainda persiste essa divisão de tarefas que prejudica as mulheres e é uma tentativa de ser justo, afinal, pesquisas indicam que a jornada semanal da mulher costuma ser cinco horas a mais do que dos homens.
Não aguento quando

Há imensos desafios na luta pela igualdade, até hoje a igualação dos salários entre homens e mulheres ainda não ocorreu de fato, homossexuais e trans* não tem seus direitos civis garantidos e por mais que hoje as mulheres tenham o direito de voto e de ser votada no Brasil, o número de mulheres nos representando na política tradicional é muito inferior ao dos homens, o que demonstra que nem sempre só a igualação de direitos do modo "formal" é efetiva. Afinal, a cultura exclui a mulher do espaço público, logo da vida política. Para aumentar o número de mulheres políticas, houve a criação da cota de candidatura de mulheres de 30% para cada partido, o que funcionou parcialmente. Mas mesmo com a existência das cotas, há partidos que tentam burlar o que foi definido, adicionam nomes femininos apenas pra preencher o número de cotas e afins.
Muitas vezes a dificuldade de reconhecer o uso do princípio da isonomia dessa forma substancial está nos nossos próprios preconceitos que se baseiam na mesma cultura que discrimina os grupos que precisam dessa interpretação da igualdade. E muitos dos desafios na aplicação do princípio de forma efetiva está na nossa própria cultura excludente.

Leia também: "Desenhando: Mulheres e crianças primeiro e outros privilégios."