sábado, 8 de junho de 2013

Marcha das vadias: rara oportunidade de liberdade da mulher no espaço público

Aproveitando que hoje aconteceu a Marcha das Vadias em Londrina (PR), aproveito para trazer meu relato atrasado sobre o que vivenciei na MdV de São Paulo.

A polêmica Caitlin Moran faz um apelo em seu livro “Como ser Mulher”: a assumir sua adesão ao movimento subindo numa cadeira berrando “Sou feminista”.


Para muitas de nós, esse momento de subir numa cadeira e gritar seus ideais feministas para o mundo tem uma data certa: A marcha das Vadias. Por mais que cada uma de nós declare seu ativismo no dia a dia, em ciberativismo, nas conversas de bar, nas atitudes, nos estudos, na universidade, no trabalho, em família, é nesse instante que um coro lindo se forma para mostrar o quanto o patriarcado nos oprime e dizer que não toleramos mais a violência contra o gênero feminino.

Arquivo pessoal
Aguardei ansiosamente pela data. Não só pelo protesto em si, mas por saber que ali eu encontraria meus pares. Mas, como nossas rotinas nem sempre colaboram, meu dia 25 de maio estava abarrotado de atividades inadiáveis.

Foi por esse motivo que eu me atrasei, iniciei minha marcha uma hora depois daquela definida pela organização. Perdi a oficina de cartazes, estando há duas quadras da praça do ciclista. E perdi a saída da marcha por responsabilidades escolares há menos de dois quilômetros da esquina da Paulista com a Augusta. Frustração define.

Dadas as adversidades, eu fiz, acompanhada de uma amiga, uma marcha um pouco mais silenciosa. Ambas vestidas de “vadias” atravessamos a rua Augusta, saímos dos Jardins até a Praça Roosevelt. E foi nessa nossa caminhada que a cada esquina, fosse um boteco, ambulantes, transeuntes ou motoristas, notávamos que as roupas curtas, ainda que com as pernas protegidas por meias opacas e casacos cobrindo nossos colos e abdome,  davam margem a olhares libidinosos, comentários grosseiros, convites inoportunos.

Será que é necessária muita empatia para que um assediador entenda que isso é agressão? Que um "psiu", "ê, lá em casa" e outros comentário análogos não são elogios? Em que momento nossas roupas autorizaram o assédio? Onde há previsão legal de que machistas detêm o direito de rotular pela vida sexual que eles imaginam que temos? 

Não, não há respeito à individualidade, à tranquilidade e à dignidade de uma mulher na rua. E está enganado que isso depende do quanto a vestimenta feminina revela o corpo.

Comportamento machista revisitado minutos depois de mil e quinhentas pessoas passarem por ali, celebrando o direito de se vestir como quiser. Homens se impondo, validando a masculinidade por meio de cantadas. Não te parece um abuso ainda maior? 

Num dia normal esse tipo de assédio me ocasionaria acuada, enojada, desprotegida, com aquela sensação de desprezo que toda mulher conhece e que tanto tememos demonstrar. Mas, naquele dia, e só naquele dia, a cada quadra que eu ultrapassava, a sensação de empoderamento aumentava. A rua era nossa.

Nós também sentimos calor
Ao final da caminhada quase que solitária (Geisa, obrigada pela companhia), encontrar uma bateria entoando cânticos feministas me marcou. Foi ali, que eu encontrei amigos, pude, aliviada, despir meu casaco, refrescar meu corpo e me rotular “vadia”. 

A cada grupo que eu via, meninas, mulheres, algumas crianças, homens, cartazes, sons e sensações, eu alimentava mais meu feminismo, reforçando todo o orgulho que eu tenho de berrar, sussurrar ou argumentar minha posição de feminista.


Importante mencionar que, cumprido o papel de ativistas, um grupo, cuja amizade se materializou na marcha, se reuniu para uma confraternização. 

Amigxs do grupo "Machismo Chato de Cada Dia"

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Eclipse Love - amar é estar à sombra de alguém




Tá, meu título foi enganoso. Devia ter sido "amar é estar à sombra de um homem". Porque é exatamente isso que o curso de uma agência intitulada Eclipse Love, que a Folha teve o infortúnio de trazer à tona essa semana, ensina. 

Bom, eu acho que é meio óbvio que eu discordo de todo o conceito que é vendido em tal curso, ainda mais sendo alguém-que-carrega-a-tal-da-carteirinha. Eu nem tenho muito a dizer a respeito, além de: acho triste. 

Isso mesmo, coleguinhas. Eu acho triste que tais seminários existam (tenho certeza que a Eclipse Love não é a única empresa destinada a vender status quo em formato "inovador"). 

Acho triste que alguém acredite tão piamente que o seu eu verdadeiro, que a sua essência, que aquilo que lhe define como ser humana, ou seja, a sua capacidade de falar e pensar por si própria, seja visto como algo indigno de amor. Que a pessoa acredite que, para ser amada e benquista por outrém, é preciso se anular, vestir um personagem, ser outra pessoa, um holograma, uma inexistência.

Achei especialmente deprimente o parágrafo: 

"Para a psicóloga Ana Letícia Pereira, 30, o capítulo foi bastante proveitoso. Ela acredita que perdeu um partidão por ter feito um pedido diretamente para o garçom durante um jantar. "Demonstrei ser independente demais.""

O que dizer? Nessas horas, me faltam palavras, sabe? Eu preciso então recorrer ao velho "exemplifico me expondo" para tentar explicar o meu sentimento nesse momento. 

Porque pra mim está muito claro que um relacionamento, qualquer relacionamento, é algo que envolve troca. Não digo troca no sentido imbecilizante de cobranças e exigências absurdas, mas uma troca sincera de afeto, boas energias, empatia, idéias. E nessa troca, penso eu, há que existir alguma negociação. É assim com tudo na vida. Estamos o tempo todo negociando sentidos para fins de comunicação. E, se não houver comunicação, não há relacionamento que se sustente. Daí a importância de ceder, e isso vale para os dois (ou mais!) lados da moeda. Eu não sei definir o que seria um relacionamento saudável para além do óbvio: em uma relação saudável, não há violência. De nenhuma forma. O que há, repito, é diálogo, é negociação. Com AMBAS as partes fazendo concessões. 

Mas, eu nem sempre pensei assim. Porque eu sou, também, fruto de uma cultura que busca "partidos". Vejam bem o grau de desumanização a que nos sujeitamos. De muito bom grado, acreditamos que "partido" é uma pessoa, e não uma idealização. Eu já me culpei por ter perdido um "bom partido". O crime? Ter contado piadas em um churrasco. Em um ambiente informal, eu ousei ser eu mesma. Eu fiz todos rirem e ri bastante também. Eu me senti feliz falando besteiras. Eu não usei salto, eu não usei maquiagem, eu não fiz carão. Eu relaxei, não me utilizei de artifícios e artimanhas para manter o bofe. A conclusão a que cheguei, na época com a ajuda de amigas e familiares, foi a de que eu tinha errado. Porque "homens não gostam de mulheres engraçadas, pois elas aparecem mais que eles". 

Chegaram a me dizer que eu ia acabar sozinha. Por falar demais. Por não ser delicada. Por contar piadas. Por ter o cabelo ruim (sim, ouvi). Enfim, que eu, tal como me apresentava à sociedade, não era digna de arrumar um bom partido. E eu, do alto da minha tolice, acreditava que bom partido = amor. E eu acreditei que eu não era digna de amor. Que a mim, não seria possível, jamais, arrumar um bom partido. O que fiz? Me joguei em outro relacionamento errado. Não, eu não era louca pela pessoa. Eu apenas o achava bonito. E ouvia de amigas que a tal beleza do bofe era algo tão essencial que eu não poderia, jamais, deixar o bom partido passar. 

Então eu fui me adequando. E fui cedendo a exigências descabidas. Não entrarei em pormenores de tais exigências. Limito-me a dizer que elas eram muitas, e bem estranhas. E eu, por um tempo, me ajustei. À revelia de tudo que eu era, sentia e pensava, eu me ajustei. Não houve violência física, mas eu acredito que a violência psicológica que eu sofri foi bem danosa. Mas não foi irreparável, não. A violência foi bem grande, mas não foi maior que eu. 

Eu. Essa palavrinha, "eu", me surgiu na última discussão que tivemos. Daquelas longas discussões de relacionamento, que eram, na real, bem unilaterais. Daquelas discussões em que eu sempre baixava a cabeça, pois o medo de ficar sozinha era maior que o medo da violência que eu sofria. Sem pensar muito, eu apenas disse "sai do meu carro, agora". Ele não esperava tal reação. Pra falar a verdade, nem eu imaginei que era isso que sairia da minha boca. Mas foi, e eu repeti o pedido. Ele saiu, eu fui embora e, naquela noite, não chorei. Também não dormi. Fiquei lendo e relendo o conto "A moça tecelã", de Marina Colasanti. 

No dia seguinte, me veio o luto. Eu me permiti chorar a perda. Mas, não me arrependi. Era como se um piano tivesse sido tirado das minhas costas. Eu, que me achava indigna de amor e tinha me apegado a um relacionamento falho por medo de ficar a sós comigo mesma, resolvi me aceitar. E, me aceitando, percebi que eu não precisava de um bom partido. Que eu não precisava mais me esforçar para ser outra pessoa em nome de uma fatídica "boa primeira impressão". Arrependimento? Nem por um segundo. 

E o que eu diria à psicóloga Ana Letícia, se acaso tivesse a chance de com ela me comunicar? Bom, além de contar minha história, eu diria isso: gata, não compensa demonstrar ser algo que você não é. Não compensa usar máscara. Máscara só traz angústias. Pois um dia você vai precisar tirá-la para respirar melhor. Se a primeira impressão é a que fica, o seu "partidão" vai esperar que você seja, para todo o sempre, a sua máscara. E você, minha cara, com certeza é melhor que isso. Você não precisa de um "partidão", mas sim de um ser humano que te entenda, em toda a sua complexidade. A culpa não é sua de pensar assim. Somos ensinadas a pensar assim. Mas podemos, juntas, construir uma sociedade mais justa e deixar um futuro melhor, mais pé no chão, sem tanto medo e sem tanto eclipse, para nossas filhas.

domingo, 2 de junho de 2013

O que está acontecendo em Istambul

O texto a seguir é uma tradução de "What is happening in Istanbul", publicado pela escritora Defne Suman em seu blog. O texto é um relato dos conflitos em Istanbul, de como eles começaram e do que os "motivou". Como diz a própria autora, a internet é basicamente o único meio que restou para se disseminar informação, pois a mídia do país vem ignorando os acontecimentos. A tradução também pode ser encontrada aqui.



O que está acontecendo em Istambul

Para meus amigos que moram fora da Turquia: Estou escrevendo para que vocês saibam o que tem acontecido em Istambul nos últimos cinco dias. Eu preciso escrever porque a maioria das fontes de mídia foram desligadas pelo governo e o boca a boca e a internet são as únicas formas que restaram para nos explicarmos e pedirmos ajuda e apoio.

Há quatro dias um grupo de pessoas que não pertencem a nenhuma organização ou ideologia específica se reuniram em Gezi Park, em Istambul. Entre eles, muitos dos meus amigos e alunos. A razão era simples: para evitar e protestar contra a iminente demolição do parque para a construção de mais um shopping no centro da cidade. Existem inúmeros shoppings centers em Istambul, pelo menos um em cada bairro! 

A demolição das árvores deveria começar no início da manhã de quinta-feira. As pessoas foram para o parque com seus cobertores, livros e crianças. Elas montaram suas tendas e passaram a noite sob as árvores. No início da manhã, quando os tratores começaram a puxar as árvores de cem anos de idade, os manifestantes se levantaram contra eles para interromper a operação.Eles não fizeram nada além de se colocar diante das máquinas. Nenhum jornal, nenhum canal de televisão estava lá para cobrir o protesto. Foi um blackout total da mídia.
Foto da página Occupy Gezi no Facebook

Mas a polícia chegou com os veículos com canhões de água e spray de pimenta. Eles expulsaram as multidões para fora do parque.À noite, o número de manifestantes se multiplicou, assim como o número de forças policiais ao redor do parque. Enquanto isso, o governo local de Istambul fechou todos os caminhos que levam à Praça Taksim, onde o Gezi Park está localizado. O metrô foi fechado, as balsas foram canceladas, estradas foram bloqueadas.

No entanto, mais e mais pessoas fizeram o caminho até o centro da cidade a pé. Elas vieram de toda Istambul. São pessoas de todas as origens, diferentes ideologias, diferentes religiões. Todas elas se reuniram para impedir a demolição de algo maior do que o parque: O direito de viver como cidadãos honrados neste país.

Elas se reuniram e marcharam. A polícia perseguiu-as com spray de pimenta e bombas de gás lacrimogêneo e jogou seus tanques sobre as pessoas, que devolviam o ataque com porções de comida. Dois jovens foram atropelados pelos tanques e foram mortos. Outra jovem, uma amiga minha, foi atingida na cabeça por uma das bombas de gás lacrimogêneo. A polícia estava atirando diretamente contra a multidão. Após uma operação de três horas ela ainda está na UTI em estado muito crítico. Enquanto escrevo isto, não sabemos se ela vai ficar bem. Este blog é dedicado a ela.
Essas pessoas são meus amigos. São meus alunos, meus parentes. Elas não têm nenhuma “agenda escondida” como o Estado gosta de dizer. Sua agenda está lá fora. É muito claro. O país inteiro está sendo vendido para as empresas pelo governo para a construção de shoppings, condomínios de luxo, estradas, barragens e usinas nucleares. O governo está procurando (e criando, quando necessário) qualquer desculpa para atacar a Síria contra a vontade de seu povo.

Acima de tudo, o controle governamental sobre a vida pessoal de seu povo tornou-se insuportável nos últimos tempos. O Estado, sob sua agenda conservadora, passou muitas leis relativas ao aborto, à cesariana, à venda e uso de álcool e até mesmo em relação à cor do batom usado pelas aeromoças.

As pessoas que estão marchando para o centro de Istambul estão exigindo seu direito de viver livremente e ter justiça, proteção e respeito do Estado. Elas exigem participar dos processos de tomada de decisão em relação à cidade em que vivem.

O que elas receberam, pelo contrário, é força excessiva e enormes quantidades de gás lacrimogêneo disparado diretamente em seus rostos. Três pessoas perderam a visão.No entanto, elas ainda marcham. Centenas de milhares se juntam a elas. Milhares atravessaram a Ponte Bósforo a pé para apoiar as pessoas em Taksim.

Nenhum jornal ou canal de TV estava lá para relatar os acontecimentos. Eles estavam ocupados com a transmissão de notícias sobre Miss Turquia e "o gato mais estranho do mundo".A polícia continuou perseguindo as pessoas e pulverizando spray de pimenta a ponto de cães e gatos de rua morrerem envenenados. 

Escolas, hospitais e até hotéis cinco estrelas em toda a Praça Taksim abriram suas portas para os feridos. Os médicos encheram salas de aula e quartos de hotel para prestar os primeiros socorros. Alguns policiais se recusaram a pulverizar pessoas inocentes com gás lacrimogêneo e abandonaram seus postos. Ao redor da praça foram instalados aparelhos para evitar o acesso à internet e as redes 3G foram bloqueadas, então moradores e empresas da região cederam suas redes wi-fi para as pessoas nas ruas. Restaurantes ofereceram água e comida de graça.

Pessoas em Ankara e Izmir foram para as ruas para apoiar a resistência em Istambul.A grande mídia continuou mostrando a Miss Turquia e "o gato mais estranho do mundo".
***
Estou escrevendo esta carta para que vocês saibam o que está acontecendo em Istambul. Meios de comunicação não lhe dirão nada sobre isso. Não no meu país, pelo menos. Por favor, postem tantos artigos quanto puderem, espalhem as notícias.
Eu estava postando artigos que explicam o que está acontecendo no Facebook na noite passada e alguém me perguntou o seguinte:
“O que você espera conseguir reclamando do nosso país para estrangeiros?”
Este blog é a minha resposta a essa pessoa.Pelo chamado “reclamar” sobre o meu país, espero ganhar:
Liberdade de expressão e discurso,
Respeito dos direitos humanos,
Controle sobre as decisões que tomo em relação ao meu próprio corpo,
O direito de me reunir legalmente em qualquer parte da cidade sem ser considerada uma terrorista.
Mas, acima de tudo, por espalhar os acontecimentos aos meus amigos que vivem em outras partes do mundo, eu espero obter o seu conhecimento, apoio e ajuda!
Por favor, espalhem as notícias e compartilhem este blog.
Obrigada!

Defne Suman."