quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Mulher: sujeita de si e de sua sexualidade

Indiretas feministas 


Em uma sociedade que a sexualidade feminina é colocada sempre como acessória da masculina, em mais uma afirmação da heteronormatividade vigente e também do machismo, é de se esperar que mulheres que amam/desejam/se sentem atraídas por mulheres sejam vistas como aberrações.

O fato dessas mulheres não se sentirem atraídas por homens ou apenas por homens, as coloca como indesejáveis dentro do patriarcado. A sexualidade feminina ser colocada como algo que só existe para agradar homens se desdobra em dois fenômenos muito conhecidos pelas bissexuais e lésbicas que é a transformação da sexualidade delas num fetiche para homens héteros e a negação da sexualidade delas como existentes. Como, dentro do patriarcado, a mulher não é vista como sujeita de si e nem de sua sexualidade, ao fetichizar as relações entre mulheres, coloca-se o desejo que existe entre elas como algo inexistente, como se elas estivessem relacionando entre si apenas para agradar a sexualidade masculina. Numa mesma tacada invisibiliza-se lésbicas e as bissexuais e coloca como inexistente o desejo entre mulheres ao reduzir a sexualidade delas ao fetiche masculino.

Marcha das Vadias de Curitiba
"Sou uma mulher bissexual e só passei a reconhecer minha sexualidade dessa forma com o feminismo, porque deixei de encarar o "gostar de mulher" como algo anormal e perceber o meu desejo como parte de quem eu sou. Há algum tempo atrás, estava entre algumas amigas e comentei sobre minha sexualidade e elas a desqualificaram. Foi dito, entre várias coisas absurdas, que eu não era bissexual porque eu namoro um homem e que minhas experiências com mulheres eram apenas uma fase. E não foi só isso: começaram a me interrogar sobre quantas mulheres eu já tinha ficado e quem eram elas, como se houvesse uma quantidade certa de mulheres pra eu poder me reconhecer como bissexual, porque elas só sabiam de uma das minhas vivências. Não tenho palavras pra definir o quanto me senti mal, porque além de duvidarem da minha voz e autonomia pra afirmar "sou bissexual", o interrogatório que fizeram foi num tom tão inquisidor, num tom de que duvidavam das minhas experiências e por isso queriam saber nomes. Isso me revoltou não só como mulher bissexual, mas também como "amiga". Percebi que a bifobia é presente até mesmo em grupos de pessoas que se consideram progressistas, porque o tempo todo a minha bissexualidade foi ligada ao fato de eu estar solteira, como se fosse uma fase de carência e rebeldia. Foi colocado até que provavelmente eu ficava com mulheres pra "chamar atenção". O que me surpreende é quando beijei uma mulher pela primeira vez, contei para minha mãe que eu era bissexual e ela aceitou tranquilamente e a mesma afirmação num grupo de amigas distantes nos levou para uma polêmica desrespeitosa. Vejo que a minha afirmação de que eu também gostava de mulheres incomodou tanto justamente pelo fato de atualmente eu namorar um homem. Parecia impossível para essas pessoas que mesmo num relacionamento hétero e monogâmico eu continuasse a afirmar que eu também gostava de mulher. Percebi que por mais que todas ali soubessem das minhas experiências com mulheres, isso não importava, porque elas consideravam o relacionamento com um homem como uma espécie de cura, uma prova de que "a fase passou"." - Patrícia*, nome fictício.
Via Feminista Cansada

O relato acima mostra um dos aspectos da bifobia que é a tentativa frequente de afirmar que a bissexualidade é só uma fase. No caso das mulheres bissexuais, isso se desdobra em falas como "você se relacionava com mulheres para chamar atenção", no caso, a ideia presente nessa frase é de que aquelas relações só aconteciam com finalidade de atrair a atenção masculina, justamente por causa da fetichização da relações entre mulheres.

"Eu sempre fui reservada. Associei por anos a vida afetiva e sexual ao privado, não gosto de me expor, não gosto de chamar atenção. Simplesmente é meu modo de conduzir minha vida. Então, essa ausência de companhia me alocou sempre em categorias. Ou eu era a amiga feia encalhada, ou a garota cubo de gelo, ou a estudiosa sem tempo, ou a promíscua velada, ou a sapatão, ou a má influência para as amigas comprometidas. Tantos rótulos. O que eu demorei a notar é que o pior dos rótulos era meu. Eu tinha medo de demonstrar publicamente qualquer modo de afeto por preconceito contra quem eu sou. E eu sou bisexual. Minha introversão tinha a função de blindar meus sentimentos. Não queria ser apontada como a indecisa, ou aquela que tem medo de enfrentar a sua sexualidade e, por segurança permanece em cima do muro. Sim, eu gosto de meninas. Sim, eu gosto de meninos. E não vejo o motivo pelo qual essa minha flexibilidade de gostar de pessoas incomodar outras pessoas. Num domingo desses, enquanto eu cozinhava com minha mãe, ela fez um comentário sobre o posicionamento de um primo meu. Ele deixou de usar a expressão "amigo" para convidar familiares para o casamento com seu "companheiro". No comentário ela falava em coragem. Não como algo valente, como orgulho, foi com o toque de que finalmente ele havia saído do armário.  Foi com esse tom que eu senti que não poderia me manter silente. E falei que eu gosto de meninas. Também. Bem assim, que eu somo afetos, que eu não excluo gêneros. A reação dela foi de choque seguido de imediato questionamento "você pratica isso?". A cara de nojo que ela fez me reduziu a uma afrontadora. Que eu poderia ser quem eu sou, escondido, sem que ela saiba de qualquer detalhe que lhe cause ojeriza. Desde então não falamos sobre, mas a cada saída minha, quando eu durmo fora, ela procura reforçar que não confia em mim, nas pessoas com as quais eu me relaciono e meus amigos. Ela reverteu isso tudo para um ataque pessoal. A filha rebelde que não nasceu para dar a ela os netos desejados. A filha dela que não nasceu para casar no altar vestida de branco. A filha dela que a envergonharia caso aparecesse com uma outra moça.Parece que é impossível para ela aceitar que a filha que a ama, e que espera pelo amor de volta, possa também amar outras mulheres. Que essas duas formas de amor não podem coexistir em mim." - Bárbara*, nome fictício. 
Mais um relato e mais uma faceta de como age a discriminação. O caso acima relatado expõe como qualquer orientação sexual diversa da hétero é vista em nossa sociedade, como uma mancha na honra da família, uma vergonha. É comum ouvir pessoas falando que até aceitam pessoas não héteros, desde que elas vivam sua sexualidade só entre quatro paredes e afins. A frase tem a intenção de passar uma ideia de aceitação do outro, mas na verdade só passa a mensagem de que a sexualidade não hétero deve ser escondida, pode até existir, desde que não seja exposta, desde que os envolvidos não andem de mãos dadas na rua, beijem em público, se definam como companheirxs.

"São Paulo, Praça Roosevelt, 21 de junho de 2013. Estava com um grupo de pessoas próximas que protestavam contra o projeto de lei que propunha a autorização da Cura Gay por psicólogos. Vi a alegria das pessoas se esvaziar em minutos. Nossos celulares alertavam de um perigo: supostamente um grupo de neo nazistas estava se dirigindo ao ato para causar confusão. A comoção, ao menos no grupo que eu compunha, foi geral. Eu vi amiga chorando. Eu vi pessoas criando estratégias para não sofrer qualquer tipo de violência física. Conversas e gargalhadas, que estavam prometidas para o pós ato, foram trocadas por um esquema de abandonar o local em grandes blocos. Tentando não transparecer nessa atitude nossos medos e nossa orientação sexual.Um ato que era para celebrar nossa diversidade, demonstrar o absurdo que é a tentativa de cura para pessoas que só sofrem pelo preconceito alheio. Um ato derrotado pelo medo. Até quando teremos que ocultar nossa existência em prol do preconceito alheio? Não quero mais sentir medo." - outro relato de Bárbara*, nome fictício. 
O medo também ronda a realidade das mulheres que se relacionam com mulheres. Ele existe em casa, na hora de dizer para a família sua sexualidade, no medo dos pais descobrirem e ser expulsa de casa. Existe na rua, na hora de voltar para casa, na hora de sair com a companheira. Existe dentro de estabelecimentos, quando todo mundo ao seu redor pode se beijar, dar as mãos e se você o faz recebe olhares tortos de muitos e às vezes até "convites" para se retirar do lugar. Existe quando dizem "você precisa de um homem pra te consertar", como se a orientação sexual que difere da hétero fosse algo a ser consertado e curado, e ainda usando uma frase que é um dos pensamentos base do estupro corretivo.



O medo existe, mas a luta continua e é necessário dar a ela visibilidade para fortalecê-la. Cada relato é uma forma de expor as nossas vivências, denunciar as discriminações sofridas e argumentar contra a lesbofobia, bifobia, homofobia e transfobia. Relatos são uma forma de quebrar a invisibilidade que cerca as relações entre mulheres, é dizer que não concorda com Felicianos e Malafaias da vida. 

Esse texto faz parte da 1ª Semana de Blogagem Coletiva pelo Dia da Visibilidade Lésbica e Bissexual, convocada pelo True Love.


terça-feira, 20 de agosto de 2013

Os estupros da Bolívia: cultura do estupro, perdão forçado.

*Trigger Warning* :  este texto expõe um cenário de extrema violência contra a mulher.

Saiu no feministe e, como o artigo era imenso, eu fui adiando a leitura. Até que sábado eu resolvi fazê-la. Confesso que o mal-estar foi tanto que a primeira coisa que pensei em fazer foi traduzir o texto. Diante da impossibilidade de traduzir um texto tão imenso (sério, acho que eu ia levar dias pra conseguir fazer algo decente), resolvi então escrever a respeito. Traçando um paralelo com um assunto que vem sendo bastante discutido entre as feministas brasileiras: o perdão. 

Não pretendo aqui entrar no mérito da religiosidade ou não do perdão. Se tal atitude é um valor humano universal, ou se ela é meramente um artefato das religiões para trazer alguma paz ao coração de quem sofreu algum mal, não importa. O que eu quero dizer aqui é que, independentemente da raiz do perdão, o apelo a ele é muito forte e nós, feministas, precisamos discutir e problematizar o assunto de forma mais profunda. 



Voltando ao artigo. Pelo título, "Estupros-fantasma da Bolívia", já podemos imaginar o que vem pela frente. Um denso relato de estupros em uma comunidade religiosa da Bolívia. Um relato que não deixa dúvidas quanto à capacidade humana de cometer atrocidades. Por anos a fio, mulheres da comunidade acordavam ensanguentadas, com as roupas rasgadas e as camas sujas de terra e de sêmem. Elas não conseguiam se lembrar de praticamente nada e, quando muito, lembravam-se que estavam sendo atacadas, mas não tinham forças para lutar contra o estuprador. 

A comunidade, de religiosos menonitas (algo parecido com os Amish dos Estados Unidos), inicialmente não acreditara nos relatos da primeira mulher que resolveu abrir a boca a respeito. Como acontece com praticamente toda mulher que é estuprada nesse mundo, duvidaram da legitimidade de tais estupros. Chegaram a cogitar que ela estava era de "namorico" pela cidade. Os ataques, porém, não só não cessaram, como se tornaram cada vez mais violentos. Crianças e mulheres de todas as idades eram brutalmente violentadas, sempre à noite, sempre dormindo. 

As mulheres da cidade estavam vivendo uma situação absolutamente nefasta de terror, e alguma explicação precisava ser dada a respeito. Obviamente que, por se tratar de uma comunidade religiosa (cristãos protestantes de origem alemã - inclusive utilizam o baixo-alemão para se comunicarem por lá), a explicação viria carregada de misticismo: o demônio estaria estuprando essas mulheres. E tudo estaria sendo feito por vontade de Deus. Ou seja, se o todo-poderoso estava enviando a provação, era porque elas deveriam aguentar firmes. 

Só se sabe que a situação estava tão absurda que o bispo local resolveu então pedir ajuda às autoridades bolivianas (que geralmente não se metem nas questões internas da comunidade, nem mesmo em casos de crimes, salvo assassinatos, pelo que entendi). Descobriu-se que um grupo de homens pertencentes à comunidade estavam por trás dos estupros. Usando um spray. Agora vou traduzir um parágrafo do texto para que vocês tenham noção dos requintes de crueldade: 

"Então, numa noite de junho de 2009, dois homens foram pegos tentando entrar em uma casa da vizinhança. Os dois delataram alguns amigos e, como um dominó que cai, um grupo de nove homens de Manitoba, de idade entre 19 e 43, acabaram confessando que eles vinham estuprando famílias da colônia desde 2005. Para incapacitar as vítimas e suas possíveis testemunhas, os homens usaram um spray criado por um veterinário de uma comunidade Menonita vizinha, que ele adaptara de um produto químico utilizado para anestesiar vacas. De acordo com as confissões iniciais (que foram negadas posteriormente), os estupradores admitiram que - às vezes em grupos, às vezes sozinhos - eles se escondiam do lado de fora das janelas dos quartos à noite, jogando o spray com a substância pelas janelas para drogar famílias inteiras, e depois entravam nas casas."

Acho que esse relato já seria assombroso se parasse por aí. Mas ele continua. E piora de um jeito que não tem como não pensar em um roteiro de filme de terror. Vou resumir: o governo da Bolívia ofereceu ajuda psicológica às vítimas. O bispo negou a ajuda. Só que ele não só não deixou que elas buscassem auxílio, como obrigou-as a PERDOAR os estupradores. Porque, segundo ele, se elas não perdoassem os estupradores, deus não as perdoaria. Acontece que não é "só" isso. A jornalista que fez a reportagem também fala em incesto. 

Para piorar a vida dessas mulheres, elas TAMBÉM são estupradas dentro de casa. Por irmãos. Pais. Parentes. Gente em quem elas deveriam confiar, sabe? E os relatos dizem que é "normal" serem molestadas, e quando elas levam isso às autoridades (ou seja, bispos e pastores), eles investigam, confrontam o estuprador, que se diz arrependido e voilá! Se ele se arrependeu, minha filha, sua obrigação como cristã é PERDOAR. E elas perdoam. E voltam para casa com seus algozes que agora tomarão cuidado redobrado para não serem pegos novamente. A união e estrutura familiar permanecem intactas. E os crimes continuam acontecendo. Pelo jeito, até hoje. 

Não tem como ler um texto desses e não se sentir impotente. Não tem como não emputecer. A questão maior que eu queria colocar aqui e não sei se vou dar conta é: até que ponto esse microcosmo não está aí nos ensinando o que acontece, sem tirar nem por, na nossa sociedade "aberta"? Até que ponto o perdão é realmente algo que deveríamos almejar? 

Porque sabe, a cultura do estupro já perdoa os estupradores, de antemão. Ao afirmar que a culpa é da vítima. Ao colocar mulheres não como seres humanos, mas como criaturas ardilosas, naturalmente programadas para representar uma tentação na vida dos homens. Não obstante, mulheres de todos os tipos, das consideradas "putas" às "santas", são violentadas. A situação de violência contra a mulher é epidêmica e a cultura do estupro permanece intacta. Bem como a cultura do perdão. 

A dinâmica é bem simples, e bem danosa também. Somos criadas, desde muito cedo, a almejar sentimentos nobres. Nenhum problema aí. Acredito sim que sentimentos nobres precisam guiar as vidas das pessoas. Entretanto, uma análise da forma como tais sentimentos são encorajados leva a crer que estamos falhando miseravelmente no quesito justiça. Porque sempre, repito, SEMPRE, o sentimento de culpa é inculcado na vítima, e não no agressor. Porque quem não perdoa é vista como uma pessoa má pela sociedade. 

Somos criadas em uma cultura que diz que é possível transformar sapo em príncipe. Somos levadas a crer que o amor é a solução para tudo, inclusive para relações violentas. Portanto, em um contexto desses, eu acho complicado falar em vitimização do opressor. Entendo que a humanidade é vítima de todo um sistema criado para aparentemente proteger mulheres e crianças (afinal, é essa a desculpa que ouço desde que me entendo por gente para justificar a opressão desses dois grupos). Entretanto, é inegável que o ônus maior desse sistema (que não funciona) recai sobre as mulheres.

Portanto, diante do exposto acima, fica as perguntas: faz algum sentido dar voz e vez ao discurso do perdão em espaços feministas? Será que um foco maior na busca por justiça, deixando de lado o perdão, que silencia a vítima e não resolve o problema, não seria a melhor saída? Que tipo de sociedade queremos construir (para nós e para as gerações vindouras): uma que efetivamente busca a justiça, ou essa em que o discurso pretensamente suave do perdão continua a manter tantas vítimas em silêncio?

A mulher estuprada já carrega uma carga pesadíssima de culpa, na nossa sociedade. Enfatizar o discurso do perdão é fazê-la carregar a culpa de não conseguir perdoar, de querer se vingar, de odiar, juntamente com toda a culpa que a sociedade já deposita nela. Lutar pelas mulheres significa entender muitas coisas que se passam com elas. O ódio, inclusive.

Para quem se interessou pelo caso, o artigo está bem mais completo e pode ser lido em inglês, aqui.

Por Flávia Simas com colaboração de Thaís Campolina. 

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Porta dos Fundos: transfobia no humor não causa riso, perpetua preconceitos.


Por Flávia Simas e Thaís Campolina  




A invisibilidade das pessoas trans* e suas questões, como a busca pela despatologização da transexualidade, como a luta pelo reconhecimento do nome social, contra a violência com motivações transfóbicas e pelo respeito no mercado de trabalho é um fato. A mídia e a sociedade praticamente não dão espaço para tratar sobre o tema da transexualidade e raramente é possível ver matérias que tratem do assunto de forma séria e sem transfobia. 

Um erro muito comum em várias matérias jornalísticas é colocar a pessoa transexual que foi vítima de um crime como vítima de homofobia e não de transfobia, o que demonstra uma clara confusão a respeito de orientação sexual e identidade de gênero. O uso de pronome masculino ao se referir às travestis e identificar a pessoa trans pelo nome que ela não identifica como seu também são recorrentes. Os erros citados são demonstrações de transfobia e reiteram esse preconceito.

Além dessa invisibilidade que se constrói em cima da marginalização das pessoas trans*, é muito comum que as pessoas transexuais só sejam lembradas num momento: para fazer piadas a respeito de sua identidade, o que é uma forma de manter a marginalização. O programa virtual Porta dos Fundos é um exemplo recente disso. 



Não é de hoje que o Porta dos Fundos decepciona a gente. É de se surpreender que um programa que tem tanta visibilidade e que é visto por muitas pessoas como uma nova forma de humor esteja fazendo mais do mesmo. É frustrante perceber que, embora possamos ver alguma novidade em alguns vídeos, eles estejam errando tanto a mão, e de forma tão grosseira. 

E o que seria fazer mais do mesmo? Seria utilizar do velho humor que expõe e humilha grupos oprimidos. Mais uma vez temos um programa que não se propõe exatamente a ser libertador, mas apenas a vender um produto, que, apesar de soar moderninho, não faz nada muito diferente do que os "humoristas" do Zorra Total têm feito há anos, ou seja, rir das minorias. 

Há vários aspectos que podem ser levados em consideração ao analisarmos, por exemplo, o vídeo "Casal Normal", do canal Porta dos Fundos (por respeito às pessoas trans, não linkaremos o vídeo aqui). Primeiro, sobre a questão da arte em si: qual o limite da arte? Deveríamos pautá-la? Até que ponto a arte pode se dar ao direito de ser politicamente incorreta? 

Acreditamos que a arte, em si, não deveria ser pautada. Entretanto, entendemos que a arte não acontece num vácuo. Há sempre um contexto que precisa ser levado em consideração, e se a arte se decide por seguir o caminho mais fácil, ou seja, o que perpetua o status quo, ela reafirma as desigualdades. Mas, deveria a arte se preocupar com isso? Gostaríamos que não. Porque gostaríamos, na verdade, que reforçar preconceitos não fosse um produto tão rentável. 

É no mínimo curioso que uma arte que apenas repete o que vem sendo feito desde sempre tenha a seguinte descrição: "PORTA DOS FUNDOS é um coletivo criativo que produz conteúdo audiovisual voltado para a web com qualidade de TV e liberdade editorial de internet." Porque basta assistir ao vídeo "Casal Normal", que por falar nisso não é o primeiro vídeo transfóbico do coletivo, para percebermos que a criatividade em questão tem seus limites. Ou seja, o limite é o da rentabilidade de um riso fácil e sem comprometimento com a realidade brutal que afeta milhões de pessoas trans mundo afora. Tal "liberdade editorial de internet" limita-se, assim como a televisão, àquilo que o "povo quer". E o povo quer rir. 

Tratemos então, do segundo ponto, ou seja, o riso. Acreditamos que nenhuma argumentação nossa aqui surtirá mais efeitos que o documentário O riso dos outros. Dessa forma, aconselhamos quem ainda não assistiu ao filme que o faça o quanto antes. Por ora, é necessário refletirmos acerca de um fator que primordialmente caracteriza o riso: a insensibilidade. Para que o riso aconteça, é necessário não apenas um distanciamento da outra pessoa, objeto do humor, mas também uma boa dose de crueldade. Ou, como diria Bergson, é preciso "uma anestesia momentânea do coração". Ainda segundo Bergson, de forma geral o riso acontece a partir do defeito alheio. Rir daquilo que não nos parece "normal" é exatamente o que faz com que uma piada "dê certo". 

No nosso entendimento, é aí que está o problema. As minorias são alvo fácil do humor justamente por se encaixarem naquilo que o senso comum considera como "anormal". É aceitável rir de alguém que não se parece com você. Em uma sociedade em que as minorias são tão marginalizadas e em que há uma negação 1. do problema e 2. da própria realidade de dor dessas minorias, é um tanto fácil ganhar rios de dinheiro reforçando negativamente a diferença. E sair pela tangente, afirmando que vai fazer piada com aquilo que o povo quer ouvir. Efeitos de uma sociedade em que o lucro precede a humanidade das pessoas. E o direito fundamental e humano que tais pessoas possuem de serem respeitadas. 

A arte e o humor podem e devem ser criticados caso reafirmem o status quo e se baseiem em humilhar um grupo de pessoas. Mas é comum que as pessoas coloquem o humor num patamar inalcançável a críticas e ignorem que a suposta piada se baseia em desrespeitar pessoas, ignorar fatos sociais, reafirmar padrões e preconceitos. 

Imagem retirada da page Transexualismo da Depressão
Infelizmente há vários exemplos de piadas transfóbicas, a maioria delas faz questão de desrespeitar a identidade de gênero da pessoa trans. Ariadna, ex-bbb, foi vítima de várias agressões no dia do homem, por exemplo, com essa desculpa de que era humor. A última imagem extremamente transfóbica que vimos ser discutida na internet tinha o seguinte título "Prós e contras de se namorar um travesti", desde a leitura da chamada a gente percebe que a mulher trans é mais uma vez tratada no masculino, tendo assim sua identidade de gênero desrespeitada. Além disso, a "piada" reafirma padrões de gênero e ainda tem o absurdo "se você bater nela, ela não vai poder ir na delegacia das mulheres", que além da clara transfobia, é uma frase extremamente misógina. Não tem nada de engraçado em ridicularizar mulheres trans*, muito menos em colocar a violência contra elas como algo ok e que pode ficar impune. 

Fazer humor não é proferir discursos de ódio como se isso fosse engraçado. Isso é agressão. E ignorar esse aspecto de violência desse tipo de "piada" que citamos é banalizar as mortes motivadas pela transfobia, é contribuir para que o desrespeito contra as pessoas trans no ambiente de trabalho, na rua, em casa, na faculdade, na escola, continue acontecendo e tal grupo permaneça sendo tratado com negligência.

Quanto ao vídeo "Casal Normal", reiteramos nosso repúdio ao mesmo, pois ele colabora para a manutenção da transfobia. A partir do momento em que se brinca de forma tão irresponsável com questões sérias e que urgem por uma reflexão de toda sociedade, o humor não é mais humor, e sim maldade. O vídeo é praticamente inteiro transfóbico, mas cabe destacar duas situações especialmente tensas: 1. o reforço da idéia de que a transexualidade é algo que não pode ser explicado às crianças (a velha pergunta 'e as crianças' entrando em ação, para cimentar a noção de que pessoas trans são bizarras e, portanto, cômicas); 2. a insistência do diretor da escola em saber qual era o nome "real" dessas pessoas, em uma clara demonstração de desrespeito à verdadeira identidade das mesmas. 

Por fim,  quem diz que a crueldade é uma condição sine qua non para a existência do humor, parece se esquecer que tal crueldade pode ser dirigida a grupos que não se encontram em situação de vulnerabilidade. Um humor que não destrua ainda mais a vida dessas pessoas é possível. E há humoristas que conseguem captar isso, como o documentário O Riso dos Outros bem atesta.  

Indiretas feministas


Um texto brilhante que esmiúça todas as nuances transfóbicas do vídeo em questão pode ser lido aqui. E um relato pessoal de Flávia acerca de cissexismo e transfobia pode ser lido aqui


segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Guestpost: Por um feminismo com maior alcance.

Recebemos o pequeno texto abaixo de uma leitora do AdS e achamos extremamente pertinente. Ela trata, basicamente, do pouco alcance que o feminismo atual tem na vida de mulheres que se encontram em estado total de vulnerabilidade. É justo lembrarmos da Marcha das Margaridas, que celebra, no dia 12 de agosto, o Dia da Luta Contra a Violência no Campo. O trabalho da MdM é louvável, e por reconhecermos que faz-se urgente um alcance maior na vida dessas mulheres, recomendamos a leitura do texto, para que possamos, juntas, refletir a respeito e buscar mecanismos de ação nessa área. Sintam-se à vontade para trazer aqui notícias de coletivos que já se empenham nessa área, pois é preciso dar visibilidade a tais coletivos. 

Fiquem então com o texto da Lerysse Scolimoski, estudante de veterinária e militante feminista intersecional. Lerysse faz parte do coletivo da Marcha das Vadias da sua cidade e de uma próxima.



Sou do interior e esses dias estava na rodoviária quando vi uma família rural humilde, o casal heteronormativo com seus vários filhos. Até aí tudo tranquilo, claro, desde que isso tenha sido escolha e não monogamia compulsória e falta de planejamento familiar (decorrente de pouca informação).

Então lembrei da minha família, minha avó, já falecida e da sua triste vida rural. Ela teve de se casar, teve muitos filhos, pois a informação de controle e planejamento familiar não lhe alcançaram e foi socialmente obrigada a permanecer no seu casamento infeliz. Dentro deste casamento infeliz, ela apanhava frequentemente do meu avô, o qual era alcoólatra. E se submetia a uma vida de agressões verbais e físicas, sem opção. Sem saber o que o feminismo é, sem ter opção de escolha pra algo melhor, porque isso não a alcançou.

Então, vi que o feminismo atual está concentrado. Concentrado nas grandes cidades. E que, o que aconteceu com a minha avó, ainda acontece, todo dia, eu vejo isso acontecendo. Toda a vida de inúmeras mulheres que estão à margem, que estão fora do alcance do feminismo das capitais e das cidades mais numerosas. A rotina destas mulheres é a submissão, é o patriarcado, é a misoginia, o machismo, todos os dias, toda a sua vida. E elas não conseguem se libertar, porque a libertação nem as alcança e pelo que vejo, nem tem previsão de alcançar. Devemos nos unir e ajudar xs companheirxs. E devemos nos perguntar: pra QUEM esse feminismo está sendo feito? Porque não vejo o interesse de levá-lo até as populações rurais, aquelas que tem um pedaço de terra pra subsistência à margem das cidades.

A militância deve atingir quem não tem internet, quem não tem saneamento básico, quem não tem condições de ir até outras cidades pela opressão social e patriarcal. A militância TEM DE atingir a todxs.

O que queremos e buscamos é um feminismo intersecional, um feminismo que inclua todxs, que seja um lugar seguro para todxs. E que esteja abrindo espaço, espaços trans*, espaços negros, LGBT, indígenas, espaço para o proletariado e espaço pras mulheres rurais. *