O texto que vos apresento abaixo está longe de ser uma unanimidade. Eu mesma confesso que nunca pensei na Beyoncé como um "grande ícone feminista". Tenho mudado de idéia. Principalmente por ter visto a última apresentação da diva, e pela leitura do texto abaixo, que traduzi com o intuito de postar aqui. E também pela leitura desse outro texto aqui (em inglês).
Para contextualizar: o artigo trata, basicamente, da apresentação bombástica que a Beyoncé fez durante o intervalo do jogo de abertura do Super Bowl. Uma explicação rápida acerca do que é o Super Bowl se encontra aqui.
O nosso intuito, ao trazer esse texto para vocês, é estimular um debate a respeito. Eu, Flávia, acredito ser muito importante que mais e mais pessoas famosas se assumam feministas. Mesmo que elas se contradigam volta e meia, ou frequentemente, eu acho crucial que tenhamos mais visibilidade. E mais irmandade, afinal, ninguém está livre de contradições. Eis:
"Se o que você viu foi uma cantora vendendo sexo às massas em um figurino minúsculo, deixe-me dizer que você viu o que você queria ver.
Se o que você viu foi uma exposição ofensiva, inapropriada e hipsersexualizada de pernas e outras partes mal-cobertas, deixe-me sugerir que você viu apenas o que você estava encarando, não o que realmente aconteceu naquele palco.
Se o que você viu foi uma artista levando homens (e mulheres) por toda a América a cometer o pecado da luxúria em seus corações, você perdeu o ponto totalmente.
Porque a performance da Beyoncé domingo passado em Nova Orleans não foi sobre sexo. Foi sobre poder, que a Beyoncé teve em abundância. Na verdade, o show dela foi uma das mais constrangedoras, encorpadas e proféticas demonstrações de poder feminino que eu já vi na televisão mainstream.
O fato de uma mulher negra ter se afirmado e se apropriado do seu poder durante essa celebração misógina e consumista conhecida como o Super Bowl realçou a bravura e o brilhantismo da mesma. Não é de admirar que as pessoas tenham tentado retomar o controle dela e de seu corpo ao marginalizar e sexualizar a sua performance.
A Beyoncé estava atraente, sexy? Certamente. Mas, mais do que tudo, ela estava poderosa. Poucas coisas são mais ameaçadoras à audiência masculina do que uma mulher bonita e poderosa que não precisa de um homem, nem mesmo de um olhar masculino.
Talvez os amigos não notaram conscientemente que não havia sequer um homem no palco. Durante aqueles poucos minutos, não houve vozes masculinas e nem corpos masculinos no controle, apenas mulheres que se recusaram a ser apropriadas. E não se tratava apenas de muheres dançando lá em cima, apesar do foco das câmeras ter sido basicamente nisso. As mulheres no palco estavam criando, tudo. Elas se apropriaram de imagens tradicionais masculinas e as transformaram em femininas - não apenas imitaram os homens. Elas estavam reinvindicando papéis e instrumentos tradicionalmente ligados a homens: os chavelhos e os saxofones, o solo pirotécnico de guitarra.
Elas foram ferozes, mas se negaram a se masculinizar ou a se objetificar.
Parte de meus amigos zombaram da Beyoncé, postando insultos como " pior intervalo de show de todos os tempos" ou "tirem essa porcaria desse projeto de música do meio do campo". Teve um que simplesmente rotulou toda a apresentação como "Peitos do Sul Selvagem", um sofisma decididamente racista e sexista.
A resposta das minhas amigas foi marcadamente diferente. Uma exclamou, "o corpo dela é maravilhoso! Eu adoro como ela é encorpada! Eu quero aquele corpo e aquela energia!" O corpo da Beyoncé é importante - não porque é hipersexualizado - mas porque se tratava apenas de um corpo de mulher, não de um corpo de mulher esculpido para um homem.
Então aqui, no meio dos comerciais e de uma cultura que objetificava as mulheres e seus corpos e no meio de um espetáculo esportivo que constrói poder em termos de violência, a Beyoncé começou sua performance derrubando a narrativa. Ao caminhar pelo palco, Beyoncé demonstrou mais poder em um punhado de passos premeditados e desafiadores que ambos os times durante todo o primeiro tempo. Em resumo, durante aqueles poucos passos, andando como uma mulher, a Beyoncé declarou posse daquele palco - daquele estádio - e, mais importante, reinvidicou posse de seu próprio corpo durante as mais misóginas e objetificantes quatro horas de cultura de massa.
É preciso ser guerreira pra conseguir fazer algo assim. Não foi de surpeender que na metade do show, a deusa guerreira hindu Durga apareceu, encarnada pela Beyoncé. Numa tela de pop-up, mãos emergiram e rodearam a Beyoncé por trás. Não se tratavam de mãos masculinas. Não eram as mãos de Justin Timberlake ameaçando despi-la em um "guarda-roupas defeituoso". Tratam-se das mãos dela e elas tentam abraçá-la, não para possui-la mas sim para expandir seu poder.
A imagem de Durga é a mais apropriada para a performance da Beyoncé. Durga, cujo nome significa um forte que não pode ser invadido. Durga, a mãe, a guerreira, a que protege do mal. Durga, a guerreira que luta contra demônios, e os vence.
Durante as duas semanas passadas, críticas foram disparadas à Beyoncé por dublar o hino nacional nas festividades de posse do presidente Barack Obama. Ela foi satirizada e descartada. Mas, domingo passado, a Beyoncé riu por último.
Quando as ex-integrantes do Destiny's Child deixaram o palco, a Beyoncé irrompeu em um poderoso número de dança. Naquele momento, parecia que ela estava dançando sobre o túmulo fresco do sexismo, da supremacia masculina, de todos os trolls que tentaram reduzi-la a qualquer coisa que não fosse bonita, talentosa, poderosa, qualquer coisa que fosse menos que uma mulher.
Foi uma dança de desafio.
E todas as mulheres do palco se juntaram a ela.
Não houve vergonha.
Beyoncé presenteou o mundo com a sua performance. Por 14 minutos, as mulheres não foram posse de ninguém. Ao invés disso, durante aqueles minutos poderosos e proféticos, a Beyoncé e as mulheres do palco se apropriaram da noite.
Naquela noite, os homens, a misoginia, a objetificaçao ou sexismo não venceram, ainda que tenham contado com a maior parte do tempo no ar.
Ao invés disso, graças à Beyoncé, as mulheres se apropriaram do Super Bowl XLVII."
* Texto de David Henson. Original, em inglês, aqui.