quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Nota de repúdio à decisão judicial de negar o aborto à mulher com gravidez de risco


Aí você acorda como todos os dias, acessa a internet no seu computador e se depara com uma notícia que atenta contra os direitos reprodutivos da mulher. Acho que isso está virando rotina, sabe? Quando se trata de aborto, o punitivismo é centralizado na mulher. A mulher, essa irresponsável que não se preveniu, que sabia dos riscos, é ela afinal, que deve ser punida. Se preciso for, e muitas vezes é, será punida com a morte. E talvez até com o aval da justiça.

Imagem da página "Nós denunciamos"
O caso mais recente aconteceu em Belo Horizonte. Você pode ler nesse link. Resumindo a situação: Uma mulher portadora de doença cardíaca entrou na justiça para obter o direito ao segundo aborto, devido à gravidez de alto risco. O juiz, alegando ser esse um direito já auferido pela requerente em outra ocasião, passou por cima da determinação legal de que o aborto no país é permitido em caso de risco para a saúde da gestante. Tomou como partido suas próprias convicções. Acusou-a de não se prevenir, acusou-a de ser negligente. E assim, sei lá com que propósito que não seja punir a mulher e torná-la um daqueles exemplos tenebrosos em que a justiça foi algoz de um inocente, um juiz sentenciou uma mulher à morte. Ou melhor, ele aumentou severamente a possibilidade dessa mulher perder a vida, seja por levar até o fim uma gravidez de risco, seja por tentar um aborto ilegal.

Ainda que ela realmente não tenha usado algum método contraceptivo (o que parece ser apenas uma suposição), é preciso notar como é recorrente nesses casos em que se alega "negligência" da mulher (nunca do homem, a contracepção é sempre responsabilidade dela) que ninguém tente entender os processos que levam uma mulher a não se proteger. Não analisam a vergonha que é, por exemplo, para uma mulher comprar camisinha em uma farmácia. É um constrangimento causado pelo julgamento da sociedade e dela mesma sobre si. Sabe por quê? Usar um método contraceptivo, exceto nos casos em que é receitado por médicos por questões de saúde, significa que a mulher faz sexo. E ter uma sexualidade livre, desprendida, bem resolvida, é algo que nossa sociedade reprime fortemente nas mulheres. 

Imagina só que ainda temos o costume medieval de chamar de "puta", a mulher que usa roupa curta, que vai curtir a noite, que é baladeira e principalmente a mulher que gosta de sexo. Ainda chamam de "rodada" aquela mulher que escolheu ter vários parceiros. As escolhas pessoais de uma mulher sobre o assunto "sexo" são cercadas de julgamentos. Se existe a tal negligência com a contracepção ela decorre de um processo de opressão em que mulheres internalizam esses julgamentos e aplicam sobre si mesmas. 2013 bate na porta, mas o Medievo não quer sair, sabe? Tenho ouvido um tanto de gente dizer que "tem mulher que não se dá ao respeito", um pessoal separando mulheres em "para pegar" e para "casar", uma galera falando em "mulher de verdade" (Sério, gente, chega de chorar de saudade da Amélia) e até mesmo em "mulher virtuosa" e tudo isso baseando-se nas condutas sexuais das mulheres. Condutas que dizem respeito apenas a elas. 

Por outro lado, homens não se sentem na obrigação da contracepção. E por favor, entendam que falo do panorama geral e sei que existem exceções. Sabe aquela expressão "golpe da barriga"? Ela é expressamente dirigida às mulheres, porque é DELAS, não deles a função de se proteger da gravidez. Assim, começamos a punir as mulheres antes mesmo da gravidez, apenas por ela ser capaz de engravidar. E é claro, existe também o fato que as mulheres são comumente invisibilizadas em relacionamentos onde há desigualdade de poder e consequentemente, de voz, de ação.

A moça de Belo Horizonte cometeu três crimes terríveis: Engravidou, abortou (legalmente) devido ao alto risco da gravidez, engravidou de novo. Ah não, espera, nada disso é crime! Porém, mesmo não sendo uma criminosa, ela foi condenada por um juiz, mas também por toda uma sociedade que retira das mulheres o poder de manifestar opinião e tomar decisões a respeito de seus próprios corpos. Ao pedir o segundo aborto, ela não está "banalizando" o aborto, ninguém fica feliz de passar por uma experiência traumatizante dessas, ela está apenas requisitando o direito legítimo de continuar vivendo.  Enquanto a sexualidade da mulher for passível desse tipo de comentário, enquanto juízes poderosos acreditarem que mulheres devem sofrer por engravidar, enquanto todo mundo fizer apontamentos sem analisar a opressão que recai sobre as mulheres, casos como o dessa moça serão normais.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

O Machismo por trás da música "Esse cara sou eu"


Morena e Théo, o casal principal de Salve Jorge
Sabe aquela música do Roberto Carlos que é a faixa principal da trilha sonora da novela "Salve Jorge", tema do casal Morena e Théo? "Esse cara sou eu"? Prestei um pouco mais de atenção na letra e preciso tecer alguns comentários sobre o assunto. Provavelmente alguém virá dizer "é só uma música" ou "é só uma novela". Mas a soma de todas as músicas e de todas as novelas são representativas. Uma grande parte da nossa cultura musical e televisiva são reflexo de determinados preconceitos e acho que sempre vale o questionamento sobre o que estamos de fato consumindo.

Eu assisto novelas. Confesso que no momento não tive a paciência de acompanhar a novela da Glória Perez, mas conheço novelas e sei que elas são mantenedoras de certos preconceitos, valores, status quo. De vez em quando, uma novela ousa botar uma discussão na mesa de jantar das famílias e é muito produtivo. Então tento não vilanizar as novelas, por saber que elas também promovem, vez ou outra, alguns debates. Se não fosse assim não haveria tanta polêmica em torno de colocar em alguma novela um beijo homossexual.

O amor romântico
exaltado desde a infância
As novelas, em geral, ainda são o campo de propagação de alguns preconceitos arraigados. E é o meio mais efetivo na cultura brasileira de manutenção do "amor romântico" como ideal de felicidade e por isso pode-se dizer que a música do Roberto está bem colocada dentro da programação. Assim como os contos de fada da Disney que ensinamos as crianças a gostar, assim como as revistas adolescentes, assim como as comédias românticas, as novelas continuam nos oprimindo em idade adulta. Continuamos acreditando que é somente através de uma relação heterossexual, monogâmica e tradicional, que seremos felizes. O eterno mito das mulheres incompletas. Alguém tem visto nas novelas uma "mocinha" sem "mocinho"? sem par romântico? Eu até vejo novelas em que o romance fica um pouco de lado, mas não o suficiente para afirmar que a personagem central é alguém que não precisa de outra pessoa para ser completa.

Na música do Roberto Carlos, a princípio, a gente pensa que o tal "cara" é alguém atencioso, alguém preocupado e gentil. Só que nessa atenção escondem-se alguns aspectos interessantes do que a sociedade espera de uma mulher, de um homem e do relacionamento entre os dois. E de como somo condicionados a idealizar esse sujeito que supostamente é "O CARA". Quando o Roberto Carlos diz:

"O cara que pensa em você toda hora
Que conta os segundos se você demora
Que está todo o tempo querendo te ver
Porque já não sabe ficar sem você"

Falarei um pouco por mim, namoro à distância com alguém e essa idéia de "não sabe ficar sem você" é perfeitamente superável. O amor romântico carrega consigo o conceito de posse. É impossível "ficar sem", "ficar longe", não observar o que a pessoa faz, onde ela está, com quem ela está. Pode parecer exagero meu, mas é verdade. Há quem afirme até que não existe amor sem ciúmes. Pois deixe eu falar logo, existe sim. Nós é que somos treinados desde pequenos para sermos incapazes de amar sem possuir. 


Se existe algo extremamente danoso é a idéia de posse. É exatamente essa coisificação da mulher que nos sujeita à violência, desde as simbólicas às violências físicas mais brutais. Daí surge o "crime passional" (expressão que normalmente é usada como eufemismo para feminicídio), da associação de paixão e posse. Que talvez comece nessa frase "Eu, que  não sei ficar sem você" e pode terminar em "Se você não é minha, não será de mais ninguém". Precisamos ter muito cuidado com os caras que não sabem ficar sem a mulher.


"O cara que pega você pelo braço
Esbarra em quem for que interrompa seus passos
Está do seu lado pro que der e vier
O herói esperado por toda mulher

Por você ele encara o perigo
Seu melhor amigo
Esse cara sou eu"

A canção está reafirmando que a mulher espera do homem que ele a proteja, que haja de acordo com esses papéis pré-estabelecidos de gênero em que a mulher é frágil e que sua segurança está nas mãos de um homem. E nem preciso comentar o quão heteronormativo é a afirmação que toda mulher espera por um herói. O cara, afinal, é mais uma versão do príncipe no cavalo branco.

"O cara que sempre te espera sorrindo
Que abre a porta do carro quando você vem vindo
Te beija na boca, te abraça feliz
Apaixonado te olha e te diz
Que sentiu sua falta e reclama
Ele te ama
Esse cara sou eu"

Aqui, por fim, ele traz a idéia do cavalheirismo. Bom, amigos, vamos deixar uma coisa clara, uma coisa é a gentileza. A pessoa que abre a porta do carro para mim, deveria abrir para todas as pessoas. Isso é gentileza. Se um amigo meu está com frio e eu ofereço o meu casaco, não estou sendo "cavalheira", estou sendo gentil. Gentileza é um tipo de empatia. A gente faz algo por outra pessoa porque essa atitude é típica de um modo de ser. Cavalheirismo é outra coisa, esse é o nome que se dá à idéia de que mulheres devem ser presas em uma redoma. É uma forma de nos chamar de incapazes. Incapaz de abrir a porta do carro, incapaz de pagar as próprias contas, incapaz de tomar as rédeas da sua vida sem um homem por perto. Cavalheirismo é, como o próprio nome fala, uma atitude que parte de um homem para uma mulher, não é um gentileza altruísta, mas uma gentileza com segundas intenções. As gentilezas de gênero são assim, mal intencionadas. Pode até ser que o cara não queira fazer sexo com você porque abriu a porta do carro, mas com certeza ele acredita que aquilo faz dele um homem mais respeitável. O problema é que também torna a mulher mais passiva, mais dependente (note que estou usando como exemplo a porta do carro, mas na verdade estou tratando do somatório de cavalheirismos que são comuns na nossa sociedade). Cavalheirismo é uma forma de dominação, sim.

É extremamente prejudicial para TODOS, homens e mulheres, que estejamos idealizando o tipo perfeito de ser humano com quem deveríamos nos relacionar, primeiro porque são expectativas vazias, já que as pessoas não vêm com manual de instrução com todas as especificações de fábrica perfeitamente anotadas para que possamos saber se aquela pessoa é mesmo a ~~ideal~~. E segundo, porque esse cara da música, que parece tão legal, soa como exemplo de "entitlement". O termo designa a sensação de merecimento que acomete alguns homens. Sabe quando um homem assedia alguém na rua? Ele faz isso porque sente que pode, sente que merece. E assim é nesse relacionamento, ele acredita que se a protege, se paga suas contas, se abre a porta do carro, se pensa nela... Ele tem poder o sobre ela para que ele seja amado em retribuição. Só que não se trata de uma operação matemática em que esses cavalheirismos e sentimentos dele são somados e o resultado é o amor correspondido.

É exatamente a falta de compreensão que não existe fórmula do amor que frusta tanto quem tenta se enquadrar nesses perfis ideais e acaba com a cara na poeira. Sabe o que isso acaba gerando? aquele mimimi mascu de "friendzone". Homens que não entenderam ainda, tomem nota: não é porque vocês tratam alguém bem que essa pessoa é obrigada a amar, ok? Vocês podem achar que estão sendo legais, mas as outras pessoas podem não pensar assim. Fiquem cientes disso e parem de acusar as mulheres de colocarem vocês na "friendzone", afinal amigos também fazem gentilezas e a mulher tem o direito de acreditar que você é só um amigo. Tratar as pessoas bem deveria ser algo natural e desprovido de interesses, se você é gentil esperando amor ou favores sexuais, você não é um cara legal. 

Por fim, ressalto que todas as características desse "cara" da canção, são frequentemente exaltadas, como se fossem aquelas que tornam esse homem, o ser humano ideal para fazer uma mulher feliz e isso é extremamente castrador e normativo, pois a felicidade de uma mulher pode nem sequer residir em outra pessoa. A felicidade pode estar em si mesmo ou em qualquer lugar.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Bullying machista: Somos todas Karina, Amanda, Denise...


Com o crescimento do uso das redes sociais e da internet, aumentou consideravelmente os casos de divulgação de imagens íntimas de mulheres. E as mulheres vítimas dessa exposição costumam sofrer uma verdadeira caça às bruxas. As bruxas do século XXI são as mulheres que fazem sexo.
A mulher que "cai na net" é massacrada por julgamentos, ofensas e culpabilizações. Mesmo muito dos "defensores" as chamam de tolas por terem confiado em alguém. As mulheres são proibidas de confiar em qualquer pessoa e devem estar sempre atentas, sob pena de serem consideradas culpadas. Quem divulgou as fotos ou os vídeos não foram elas, pode ter sido um ex-namorado, um vizinho chantagista, um hacker, mas a culpa é da mulher. Elas deveriam ser castas, não fazerem sexo e se fizerem, jamais se deixarem fotografar ou serem filmadas. Os nomes que são lembrados não são os dos caras que divulgaram as imagens dessas mulheres sem o consentimento delas. Os nomes marcados, as vidas que são destruídas, são as dessas mulheres. Sendo que fazer sexo não é crime, mas expor pessoas na internet sem autorização o é.
  
Um caso que chocou o mundo foi o da Amanda Todd, canadense de 15 anos que suicidou-se por não aguentar mas as perseguições machistas e misóginas que ultrapassaram os muros da escola. Essas perseguições foram causadas pela divulgação de imagens dela mostrando os seios. Ela sofreu ameaças, chantagens, entrou em depressão, foi ofendida e ameaçada pelos próprios colegas, acabou se envolvendo com drogas e no fim, suicidou. Uma história triste, onde se vê claramente o poder do machismo e da misoginia e como a caça às bruxas às mulheres consideradas "vadias" é cruel.
Via Não aguento quando.
A internet vira um tribunal para essas mulheres expostas. Expor essas imagens são uma forma de vingança específica contra mulheres. Afinal, enquanto fazer sexo é considerado um horror para as mulheres, uma forma de "desvalorização", para os homens a lógica que se aplica é contrária. Por que as mulheres não expõem imagens íntimas de homens? Simplesmente porque expor essas imagens não funcionaria como vingança, os papéis não se inverteriam. Ela continuaria a "vadia". A mulher que fizesse isso, seria chamada de louca, ciumenta, histérica. Afinal, a loucura e o ciúme são relacionados à irracionalidade, característica constantemente atribuída às mulheres. E o homem seria considerado vítima, ele não seria considerado culpado, ninguém diria que "ele mereceu". Afinal, o machismo diz que o sexo é humilhante e degradante pra mulher, enquanto para o homem não.

O termo "caiu na net", cunhado no orkut e muito utilizado hoje, banaliza o que a exposição dessas imagens íntimas de fato é. Um crime, uma crueldade, uma forma de vingança e de humilhação. Viola-se o consentimento da mulher, coloca-se o corpo daquela mulher como um corpo disponível para ser visto por todos que queiram. A imagem não surge do nada, ela é postada por alguém. Atrás dessa "postagem", há ameaças como "se você me pagar tal valor, eu não divulgo suas fotos", ou até mesmo "se você me abandonar, nosso vídeo vai para internet". Há a espera pela reação de julgamento da sociedade, há a intenção é humilhar.

Muitas vezes muitos dos que utilizaram essas fotos e vídeos para o próprio prazer, são os primeiros a julgar aquela mulher e montar seu tribunal. A pessoa é vista apenas como entretenimento para os julgadores. Afinal, o bullying se sustenta nessa cultura de ódio que diz que certos tipos de pessoas devem provar o seu valor para conquistarem respeito. O respeito para as mulheres não é considerado algo inerente, ele deve ser provado. E exercer sua sexualidade é considerado uma afronta ao comportamento ideal da mulher. E qualquer mulher que foge desse ideal conservador e machista, é considerada merecedora de exposição, humilhação e até mesmo violência.



quinta-feira, 29 de novembro de 2012

A violência de gênero e o amor romântico

Esse texto foi retirado do site Pikara Magazine, a versão original é de Coral Herrera Gómez. Abaixo a tradução, feita por mim (o texto é longo, mas vale muito a pena).


O amor romântico é a ferramenta mais potente para controlar e submeter as mulheres, especialmente nos países em que são cidadãs de plenos direitos e onde, legalmente, não são propriedade de ninguém. 

São muitos os que sabem que combinar o carinho com os maus-tratos serve para destruir a autoestima de uma mulher e provocar sua dependência, por isso utilizam o binômio maus/bons tratos para deixá-las perdidamente apaixonadas e assim poderem dominá-las. 

Um exemplo disso é Káliman, cafetão mexicano que explica como prostituir as mulheres: Escolhe-se as mais pobres e necessitadas, preferencialmente aquelas que estão desejando sair do inferno caseiro em que vivem ou aquelas que precisam urgentemente de carinho porque se encontram isoladas socialmente.  Os cafetões seguem um roteiro para a perfeição: Primeiro as enchem de amor, atenção e presentes durante dois meses, fazendo com que elas acreditem que são as mulheres da vida deles e que sempre terão dinheiro disponível, tanto para as necessidades quanto para os caprichos. Depois jogam-nas cerca de dois dias em um prostíbulo para que as moças “façam terapia”: se resistem, brigam, se enfezam é melhor deixar que passem esse tempo sozinhas. Jamais se pede perdão. É necessário que sofram até que seu orgulho desmorone e se coloquem de joelhos, aceitando a derrota. 

O macho deve se manter firme, mostrar seu desprezo, deixá-la nos momentos de raiva e nunca ter piedade das lágrimas da esposa. Essa técnica lhes assegura que ela atenda seus desejos e trabalhe para ele nas ruas ou em prostíbulos; a maioria delas não tem para onde ir e, segundo eles, uma vez que provam do luxo não querem voltar para a pobreza. 

Esse relato de horror é muito comum no mundo inteiro. Não somente cafetões, mas também muitos namorados e maridos tratam as mulheres como éguas selvagens que precisam ser domesticadas para que sejam fiéis, submissas e obedientes. Muitos seguem acreditando que as mulheres nasceram para servir e amar aos homens. E muitas de nós, mulheres, seguimos acreditando nisso também. 

“Por amor” nos apegamos a situações de maus-tratos, abusos e explorações. “Por amor” nos unimos a homens horrendos, que a princípio parecem príncipes encantados, porém que logo nos enganam, se aproveitam de nós ou vivem às nossas custas. “Por amor” aguentamos insultos, violência, desprezo. Somos capazes de nos humilhar “por amor” e ainda nos gabarmos por nossa intensa capacidade de amar. “Por amor” nos sacrificamos, nos anulamos, perdemos nossa liberdade, perdemos nossas redes sociais e afetivas. “Por amor” abandonamos nossos sonhos e metas, “por amor” competimos com outras mulheres e nos tornamos eternamente inimigas, “por amor” deixamos tudo... 

Este “amor” quando chega, faz de nós mulheres de verdade, nos dignifica, nos deixa puras, dá sentido a nossa vida, nos dá status, nos coloca acima do resto dos mortais. Este “amor” não é somente amor: É também uma salvação. As princesas dos contos de fadas não trabalham: são mantidas pelo príncipe. Em nossa sociedade, alguém que te ame é sinônimo de êxito social, ser escolhida por um homem te dá valor, te faz especial, te faz mãe, senhora. 

Esse “amor” nos prende em contradições absurdas “deveria deixá-lo, porém não posso porque o amo/porque com o tempo ele irá mudar/porque ele me quer/porque é o que tenho”. É um “amor” baseado na conquista e na sedução e em uma série de mitos que nos escravizam, como o de que “no amor tudo pode”, ou o de que “uma vez que se encontra a sua metade da laranja é para sempre”. Esse “amor” nos promete muito, porém nos enche de frustração, nos aprisiona a seres para quem damos todo o poder sobre nós, nos sujeita a papéis tradicionais e nos pune quando não nos ajustamos ao que foi estabelecido para nós. 

Esse “amor” nos transforma também em seres dependentes e egoístas, porque utilizamos estratégias para conseguir  o que queremos, porque nos ensinam que é preciso dar para receber e porque esperamos que o outro “abandone o mundo” do mesmo modo que nós fazemos. Tanto que o “amor” que sentimos nos transforma em seres amargurados que vomitam diariamente censuras e reclamações. Se alguém não nos ama como nós amamos, esse “amor” nos faz vitimistas e chantagistas (“eu que daria tudo por você”). 

Esse “amor” nos leva ao inferno quando não somos correspondidas, ou quando somos traídas, ou quando nos abandonam: porque quando nos damos conta estamos sozinhas no mundo, sem amigas e amigos, familiares ou vizinhos, dependentes de um homem que acredita ter o direito de poder decidir por nós.
Por isso esse “amor” não é amor. É dependência, é necessidade, é medo da solidão, é masoquismo, é uma utopia coletiva, porém não é amor. 

Amamos patriarcalmente: O romantismo patriarcal é um mecanismo cultural para perpetuar o patriarcado muito mais potente que as leis: A desigualdade está aninhada em nossos corações. Amamos desde o conceito de propriedade privada e desde a base da desigualdade entre homens e mulheres. Nossa cultura idealiza o amor feminino como um amor incondicional, abnegado, entregue, submisso e subjugado. As mulheres são ensinadas a esperar e amar um homem com a mesma devoção que se ama a deus e se espera Jesus Cristo. 

A nós mulheres nos foi ensinado a amar a liberdade do homem e não a nossa própria. As grandes figuras da política, da economia, da ciência e da arte tem sido sempre os homens. Admiramos os homens e os amamos a medida em que são poderosos; as mulheres privadas de recursos econômicos e propriedades precisam dos homens para sobreviver. 

A desigualdade econômica por razões de gênero leva a dependência econômica e sentimental das mulheres. Os homens ricos nos parecem atraentes porque tem dinheiro e oportunidades. E porque somos ensinadas desde pequenas que a salvação está em encontrar um marido. Não nos foi ensinado a lutar para que tenhamos os mesmos direitos, mas sim a estar bonita e conseguir alguém que te mantenha, te queira e te proteja, ainda que para isso tenha que ficar sem amigas, ainda que tenha que se unir a um homem violento, desagradável, egoísta ou sanguinário. 

O exemplo mais claro que temos são os chefes do narcotráfico: Tem todas as mulheres que quiserem, tem todos os carros, drogas, tecnologias que quiserem, tem todo o poder para atrais as moças solitárias, sem recursos nem oportunidades. 

A desigualdade estrutural que existe entre mulheres e homens se perpetua por meio da cultura e da economia. Se gozássemos dos mesmos recursos econômicos e pudéssemos criar nossos bebês em comunidade, não teríamos relações baseadas na necessidade, acredito que amaríamos com muito mais liberdade, sem interesses econômicos por medo. E diminuiria drasticamente o número de adolescentes pobres que acreditam que engravidando vão garantir o amor do macho ou ao menos uma pensão alimentícia durante anos de sua vida. 

Os homens também são ensinados a amar a desigualdade. A primeira coisa que aprende é que quando uma mulher se casa com ele é “sua mulher”, algo parecido com “meu marido”, porém pior. Os homens tem duas opções:  ou se deixam amar desde acima (machos alfa), ou se ajoelham ante à amada em sinal de rendição (escravo). Os homens parecem manter-se tranquilos enquanto são amados, já que a tradição os ensina que não devem dar muita importância para o amor em suas vidas, nem deixar que as mulheres invadam todos os espaços, nem expressar em público seu afeto. 

Toda essa convenção é rompida quando a esposa decide se separar e dar início, sozinha, ao seu próprio caminho. Como em nossa cultura vivemos o divórcio como um trauma total, as ferramentas das quais os homens dispõem são poucas: podem se resignar, deprimir, se autodestruir (alguns se suicidam, outros se envolvem em uma luta até a morte, outros dirigem em alta velocidade na contramão) ou reagir com violência contra a mulher que diz amar. 

Aqui é quando entra em jogo a maldita questão da “honra”. A maior exposição do padrão duplo: Os homens perseguem as mulheres de maneira natural, as mulheres devem morrer assassinadas se cedem aos seus desejos. Para os homens tradicionais, a virilidade é um orgulho e está acima de qualquer meta: Pode-se viver sem amor, porém não sem honra. 

Milhões de mulheres morrem diariamente por “crimes de honra” a mando de seus maridos, pais, irmãos, amantes ou por suicídio (obrigadas por suas próprias famílias). Os motivos: Falar com um homem que não seja seu marido, ser estuprada ou querer se divorciar. Um único rumor pode matar qualquer mulher. E essas mulheres não podem construir uma vida própria fora da comunidade: Não tem dinheiro, não tem direitos, não são livres, não podem trabalhar fora de casa, não há forma de escapar. 

Contudo, as mulheres que gozam de direitos também se veem presas em suas relações matrimoniais ou sentimentais. Mulheres pobres e analfabetas, mulheres ricas e cultas: A dependência emocional feminina não distingue classes sociais, etnias, religiões, idades ou orientações sexuais. São muitas em todo planeta as mulheres que se submetem a tirania do “aguente por amor”. 

O amor romântico é, nesse sentido, uma ferramenta de controle social e também um anestesiador. Nos vendem-no como uma utopia possível, porém a medida que vamos caminhando em direção a ele, buscando a relação perfeita que nos faça felizes, achamos que a melhor forma de se relacionar é perdendo a própria liberdade, e renunciando tudo com o objetivo de assegurar a harmonia matrimonial. 

Nessa suposta harmonia, os homens tradicionais desejam esposas tranquilas que os amem sem pedir nada (ou muito pouco) em troca. Quanto mais deteriorada está a autoestima das mulheres, mais elas se vitimizam e mais dependentes são. Por isso mais dificuldade tem em entender que o amor de verdade não tem nada a ver com a submissão, nem com o sacrifício, nem com resistência. 

O casal é o pilar fundamental de nossa sociedade. Por isso a Igreja, os bancos penalizam as solteiras e promovem o matrimônio heterossexual; quando o amor acaba ou se rompe vivemos como um fracasso, como um trauma. Nos desesperamos completamente: Não sabemos separar nossos caminhos, não sabemos tratar com carinho alguém que quer se afastar de nós ou que encontrou uma nova parceira. Não sabemos como administrar as emoções: Por isso é tão frequente a troca de ameaças, insultos, vinganças entre os cônjuges. 

E por isso também tantas mulheres são castigadas, maltratadas e assassinadas quando decidem se separar e reiniciar suas vidas. A quantidade de homens que não possui ferramentas para enfrentar uma separação é muito maior: Desde pequenos aprendem que devem ser os reis e que os problemas são solucionados com violência, impondo sua autoridade. Seus heróis não choram, a não ser que alcancem seus objetivos (como ganhar uma copa de futebol ou exterminar os androides). 

O que nos ensinam nos filmes, contos, novelas, séries de televisão é que as mocinhas dos heróis os esperam com paciência, os adoram, cuidam e estão sempre dispostas para se entregar ao amor quando eles tiverem tempo. As moças da publicidade oferecem seus corpos como mercadoria, as boas moças dos filmes oferecem seu amor como prêmio pela valentia masculina. As boas moças não abandonam seus maridos. As moças más que acreditam ser donas de seus corpos e sua sexualidade, que acreditam ser donas de suas próprias vidas, que se rebelam, sempre acabam tendo seu castigo merecido (a prisão, doença, ostracismo social ou a morte). 

As moças más não são somente odiadas pelos homens, mas pelas boas moças também, porque desestabilizam toda a ordem “harmônica” das coisas quando tomam decisões e rompem com as amarras. Os meios de comunicação de massa nos apresentam os casos de violência contra a mulher como crimes passionais, e justificam os assassinatos e a tortura com expressões como “ela não era uma pessoa muito normal”, “ele havia bebido”, “ela estava com outra pessoa”, “ele, quando descobriu, enlouqueceu”. E se a matou foi porque “algo ela havia feito”. A culpa então recai sobre ela e a vítima é ele. Ela pisou na bola e merece um castigo. Ele merece se vingar para acalmar sua dor e reconstruir seu orgulho. 

A violência é um componente estrutural de nossa sociedade desigual, por isso é necessário que o amor não se confunda com possessão, da mesma forma que não devemos confundir a guerra com “ajuda humanitária”. Em um mundo onde utilizamos a força para impor ordens e controlar as pessoas, onde exaltamos a vingança como mecanismo para administrar a dor, onde utilizamos o castigo para corrigir desvios e pena de morte para reconfortar os lesados, é necessário mais do que nunca aprendermos a nos querer bem. 

É vital que entendamos que o amor deve estar baseado no bom trato e na igualdade. Porém não somente ao cônjuge, mas a sociedade inteira. É fundamental estabelecer relações igualitárias, nas quais as diferenças sirvam para nos enriquecer mutuamente, não para submetermos uns aos outros. É também essencial empoderar as mulheres para que não vivamos sujeitas ao amor e também ensinar aos homens a administrar suas emoções, para que possam controlar sua ira, sua impotência, sua raiva e seu medo, e para que entendam que as mulheres não são objetos pessoais, mas sim companheiras de vida. 

Além disso, devemos proteger os meninos e as meninas que sofrem em casa a violência machista, porque terão que suportar a humilhação e as lágrimas de sua heroína, sua mãe, porque terão de aguentar os gritos, os tapas e o medo, porque terão de viver aterrorizados, porque são órfãos, porque o mundo deles é um inferno. 

É urgente acabar com o terrorismo machista: Na Espanha o machismo já matou mais pessoas que o terrorismo nos Estados Unidos. No entanto, as pessoas se indignam mais ante ao segundo, saem para as ruas para protestar contra a violência, cuidam de suas vítimas. O terrorismo machista é considerado uma questão pessoal que afeta determinadas mulheres, por isso muita gente que ouve gritos de socorro não reage, não denuncia, não intervém. 

Dando uma olhada nos números, podemos perceber que o pessoal é político e também econômico: A crise acentua o terror, pois muitas não podem considerar se separar, e o divórcio se dá para os casais que podem se permitir isso economicamente. Uma prova disso é que agora se denunciam menos casos e em algumas ocasiões as mulheres são deixadas para trás; com os custos judiciais aprovados na Espanha, as mulheres mais humildes nem se dispõem a ir denunciar: apelar para a justiça é coisa de rica. 

É urgente trabalhar com homens (prevenção e tratamento) e proteger as mulheres e seus filhos e filhas. Devemos empoderar as mulheres, porém devemos trabalhar também com os homens, se não toda luta será em vão. É necessário promover as políticas públicas para que tenham um enfoque de gênero integral e é necessário que os meios ajudem a gerar uma rejeição generalizada a essa forma de terror instalado em tantos lugares do mundo. 

É necessária uma mudança social, cultural, econômica e sentimental. O amor não pode estar baseado na propriedade privada, e a violência não pode ser uma ferramenta para solucionar problemas. As leis contra a violência de gênero são muito importantes, porém precisam vir acompanhadas de uma mudança em nossas estruturas emocionais e sentimentais. Para que isso seja possível temos que transformar nossa cultura e promover outros modelos de relacionamentos amorosos que não estejam embasados em lutas de poder para dominarmos ou nos submetermos. Outros modelos de femininos e masculinos que não estejam embasados na fragilidade de umas e na brutalidade de outros. 

Temos que aprender a romper com os mitos, a nos livrar da imposições de gênero, a dialogar, a desfrutar das pessoas que nos acompanham pelo caminho, a nos unir e nos separar com liberdade, a tratarmos com respeito e ternura, a assimilar as perdas, a construir relações bonitas. Temos que romper com os ciclos de dor que herdamos e reproduzimos inconscientemente, e temos que libertar as mulheres, os homens e os que não são nem uma coisa nem outra, do peso das hierarquias, da tirania dos papéis e da violência. 

Temos que trabalhar muito para que o amor se expanda e a igualdade seja uma realidade para além dos discursos. Por isso esse texto é dedicado a todas as mulheres e homens que lutam contra a violência de gênero em todos os pontos do planeta: Grupos de mulheres contra a violência, grupos de autorreflexão masculina, autores e autoras que investigam e escrevem sobre esse fenômeno, artistas que trabalham para dar visibilidade a esse mal social, políticos e políticas que trabalham para promover a igualdade, ativistas que saem às ruas para condenar a violência, professores e mestres que fazem seu trabalho de sensibilização nas aulas, ciberfeministas que recolhem assinaturas para dar visibilidade a assassinatos e impulsionar leis, líderes e lideranças que trabalham nas comunidades para erradicar o maltrato e a discriminação das mulheres. A melhor forma de lutar contra a violência é acabar com a desigualdade e o machismo: analisando, tornando visível, desconstruindo, denunciando e reaprendendo junt@s.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Violência simbólica e agressores em potencial


Quando se fala em violência contra a mulher, a indignação é consenso. Por sorte, já chegamos em um nível de repugnância social imediata ao imaginar um marido espancando a sua esposa. Particularmente, eu nunca ouvi ninguém dizer em público “se o jantar não está quente tem que bater mesmo!”. E isso é bom. É bom que já tenhamos evoluído a ponto de que a violência doméstica não seja praticada no meio da rua em plena luz do dia e nem motivo de orgulho (converse com suas avós, pergunte como era a vida das mães delas, das vizinhas e se prepare para as histórias que irá ouvir).

Entretanto, esse mesmo tema é extremamente complexo quando a cena em questão não se enquadra no imaginário das pessoas. A indignação que falei só se dá a um nível básico. Como falar de homens que agridem as companheiras é algo muito generalizante, quem escuta se sente à vontade para formar a estrutura que quiser em sua cabeça. E na maioria dos casos, a cena visualizada pelas pessoas é extremamente pré-moldada, existem nela papéis que devem estar sendo cumpridos, caso contrário, não se enquadra. Isso fica muito claro quando ao invés de falarmos de violência de gênero, falamos de exemplos práticos do dia-a-dia. Falamos das mulheres de verdade que foram agredidas e esperamos as reações.

A mulher que não deve ser agredida pelo marido tem um papel muito claro: ela é uma trabalhadora, boa esposa, boa mãe. Ela é casta, mas cumpre sua função sexual para agradar ao marido. Ela faz de tudo para deixar a casa sempre limpa e arrumada, a comida sempre na mesa e de vez em quando, até pede uma ajudinha com a louça, mas deixa passar se estiver na hora da corrida ou do futebol. Nessa mulher não se bate nem com uma flor.

Entretanto, na mesma proporção que não ouço as pessoas dizendo que “mulher tem mais é que apanhar mesmo”, ouço os aplausos às clássicas surras das novelas da Globo. Vez ou outra, uma mulher é agredida, ofendida e humilhada pelos mais variados motivos. A última vilã, Carminha, apanhou de seu marido ao ser “desmascarada”. Essas mulheres, por não se enquadrarem na caixa da “mulher ideal” incutida no imaginário popular pelos mais diversos motivos (desde falta de afeto à raiva incontrolável mesmo), imediatamente perdem o direito à defesa.

Foto tirada pela Lari Schip no Ato pelo Fim da Violência Contra a Mulher em Curitiba.
Eliza Samúdio, que não foi só agredida, mas morta pelo seu companheiro, então, cometeu o terrível crime de: ser vadia. Ela não era casada com o jogador, nem uma “namorada séria”, o que já a deixa fora da caixa da mulher ideal. Não obstante, também já havia se envolvido com pornografia e, bem, era linda de uma forma bem padrão. Me arrisco sim a dizer que se Eliza não fosse uma mulher tão padrão de beleza, não estaria sendo tão julgada por esse aspecto, estaria sim sendo rechaçada publicamente por outro crime: o de ser feia; mas não estaria respondendo tanto por sua sexualidade.

É preciso olhar mais a fundo. Tirar a violência doméstica do campo isolado em que ele se encontra e ver que ela nada mais é do que fruto da violência simbólica. Nessa entrevista, o diretor do filme Amor? fala sobre as relações representadas no documentário. Ele diz que embora todas as histórias de fato tenham a agressão física, ela acaba sendo apenas um ponto, um detalhe. A agressão é o ponto material, fruto de toda uma violência simbólica.
Esse linchamento moral constante que é feito das mulheres divide-as entre as “mulheres de verdade” e as que são qualquer outra coisa (e tenho certeza que se você usa o facebook, já deve ter visto algo do tipo). E aqui é importante falar do chamado “perfil de agressor”, entre muitos outros fatores, um homem que agride jamais bateria em uma mulher... de verdade. Uma mulher que não merecesse, uma mulher que estivesse sempre dentro da caixa da mulher de verdade, que apanha do marido cruel que ele colocou em sua mente. Ele não é um marido cruel. Ele apenas quer as coisas certas.
Do Machismo Chato de cada dia.

Julgar vítimas como possíveis causadoras, merecedoras de sua própria morte é uma demonstração clara de alguém que não acha que o respeito é algo inerente que todos nós merecemos, independente da nossa beleza ou sexualidade, independente de estarmos dentro ou não do padrão moral que o outro julga como correto. “Mulher de verdade” somos todas nós, e quando falamos de “violência contra a mulher”, estamos falando também de todas. Estamos falando, inclusive, dessa violência velada, verbal, psicológica, que constantemente nos julga, destruindo-nos como pessoa e não permitindo que entremos em contato com quem nós verdadeiramente somos por medo. Medo de, de repente, não se sentir mais incluída no grupo das mulheres de verdade, e aí toda e qualquer agressão contra nós será legitimada.

Violência não se justifica, se elimina. E se elimina cortando o mal pela raiz, tirando da nossa cultura toda essa normatização de ódio às mulheres.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

A carne mais barata do Mercado Livre


Nem uma semana depois do dia da Consciência Negra, apenas alguns dias depois de eu ter escrito um texto cujo título é "a carne mais barata", falando da representação dos negros nas mídias, a querida Charô, do Blog Contravento, me informou que alguém achou engraçadão botar um anúncio no mercado livre. "Vendo escravos". R$15,00. Quinze reais, amigos. É o preço da carne negra no mercado livre. E ainda sou obrigada a ouvir por aí que tudo é humor e que racismo não existe. Veja só o print:








Deixe-me explicar uma coisa, o fato de ser humor não exclui o discurso racista. Essa brincadeirinha aí é crime. Sabe aquele livrinho chamado "Constituição Federal/88"? pois é, ele versa o seguinte:


"Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:



XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;"


Adelaide, o racismo
no horário nobre da TV

O humor racista é parte de uma cultura de ódio enraizado. Nos chocamos quando vemos esse tipo de coisa acontecer assim, tão abertamente quanto no anúncio do mercado livre, em que o ódio pode ser visto a olho nu. Mas ele se esgueira de muitas outras maneiras. Seja através do humor blackface, a exemplo de Adelaide, personagem do Zorra Total, ou de um jocoso comentário sobre o "cabelo ruim" de alguém. Todas essas manifestações que passam batido no nosso dia-a-dia merecem atenção. Não dá para se calar diante da perpetuação do discurso racista em comentários, programas de TV, na internet e etc. O discurso só muda de forma, mas continua possuindo o valor racista opressor.



Dia desses eu discuti com um contato meu no facebook por causa dessa publicação:
humor machista e racista


Vejamos, além de machista, por determinar que a mulher é objetificável, que seu corpo deve atender ao desejo de um homem, é principalmente racista, pois os quadrinhos retratam uma mulher negra sendo humilhada por um homem ao ser comparada com uma mulher branca. Quando confrontei o meu contato no facebook a resposta é que eu estava vendo pêlo em ovo. Claro, que foi. Afinal, racismo não existe, não é?

Quem não se lembra do rapazinho do meme "Para nossa alegria!"? Só digo uma coisa: pode ter sido engraçada a forma entusiasmada como ele canta a música, eu ri também, muita gente riu... mas é só isso mesmo? Fico me perguntando se fosse uma pessoa branca ali cantando da mesma forma, teria virado meme? Rir de gente negra e pobre é o modus operandi da nossa sociedade, vamos filtrar melhor o que nos faz rir, galera. Vamos ficar atentos à esse humor que se fazia em 1900. Não queremos um mundo sem graça, queremos humor sim, mas queremos que ele não humilhe as minorias historicamente oprimidas. O problema é que há tanto tempo o humor é feito dessa maneira que as pessoas parecem não querer mais rir de outra forma, somente a humilhação é engraçada.


Para denunciar o racismo na internet (o absurdo anúncio do mercado livre, por exemplo) é só entrar no site safernet

terça-feira, 20 de novembro de 2012

A carne mais barata

Essa é a semana da Consciência Negra, que serve para nos fazer refletir sobre a inserção do negro na sociedade. Infelizmente, não estamos de parabéns. Temos aí uma constituição que nos posiciona como iguais, o racismo é crime inafiançável. E ainda sim, somos racistas. Somos MUITO racistas. Fato que é flagrante quando tocamos no assunto mídia. Tentarei focar esse texto em observações pessoais sobre a internet e a TV, sobre como nos posicionamos nesses veículos a respeito da aceitação e representação dx negrx e, portanto, também sua inserção.

Na internet, covardes se escondem sob a máscara do anonimato e se acotovelam entre redes e portais para destilar seu ódio, criam sites hospedados em outros países para nossa legislação não alcançá-los. Usam o humor para agredir, justificando-o pelo que ele não é: politicamente incorreto. Não há incorreção em ser agressor e não transgressor, isso é trivial, é comum, banal, ordinário. Ou seja, nada original. E nem sequer é humor, ou então voltou a ser engraçado chamar negrx de macacx. Espera, nunca foi! A piada nunca teve graça. O que é engraçado para essas pessoas é apenas o ataque gratuito, rir da humilhação. Aí sim, posso afirmar que a humilhação dxs negrxs sempre foi motivo de júbilo para uma parcela da população. Herança do nosso passado escravagista, demonstração evidente da igualdade que nunca alcançamos.
Demonstração de racismo
contra as cantoras Pepê e Neném

As redes sociais têm provado ser território hostil para xs negrxs. Ultimamente a coisa tem piorado, os racistas estão amparados nas redes, por milhares de pessoas que perderam o medo ou a vergonha de demonstrar ódio, ou até mesmo pela anuência da administração dessas redes. A punição ao crime de racismo parece estar caindo em desuso, ao menos na internet. Lembrando que estamos num país em que se fala em "leis que não pegaram", que são uma falha em nosso sistema jurídico, penal e porque não dizer, também social e cultural. Leis que não são devidamente amparadas não tem o efeito de mudar uma cultura de ódio tão enraizado e que se propaga na medida em que nada é feito para contê-lo. Existem alguns casos de condenação ao ódio racista nas redes, mas são poucos e as penas são leves.

Recentemente o facebook passou a responder às denúncias que fazemos contra páginas, comentários e etc. E se antes o silêncio incomodava, as palavras parecem pesadas demais para suportar. Como lidar quando você está diante de clara expressão de preconceito e o facebook responde que não há nada demais no conteúdo? Todas as denúncias que fiz foram rejeitadas. TODAS.


Imagem da página de
Facebook Preta e Gorda

Felizmente a internet também é palco de ativismo contra o racismo e existem páginas sensacionais que fazem a diferença. Estou completamente apaixonada pela página "Preta & Gorda", por exemplo. Que faz um trabalho lindo de divulgação de imagens bodypositive, haja vista que o padrão de beleza vigente é racista e gordofóbico. Incentivar a autoestima das mulheres é muito importante.



Suburbia
Se na internet o cenário está piorando, pode-se dizer que em outras mídias ele não melhorou. Li alguns textos sobre as duas produções da Rede Globo com protagonismo de personagens negrxs, "Lado a Lado" e "Suburbia", e o que li aqui, aqui e aqui não é animador. Continuamos escrevendo histórias de negros escravos e brancos salvadores. Alguém por aí deve achar que é um grande favor axs negrxs não representá-lxs como bandidos, mas como incapazes de salvar a si mesmos. Como pessoas que são "quase" da família. Os "quase" aceitos, sempre "quase". Representá-los como bandidxs e representá-lxs como incapazes são duas faces de um mesmo problema.


Lado a Lado
Lado a Lado, que possui uma representação interessante, apresenta belíssimas cenas, um elenco formado por muitxs negrxs, é uma pena que isso seja possível apenas em novelas cuja temática seja a escravidão. O problema é: xs negrxs são a maioria da nossa população, ainda sim, só se lembram de representá-lxs na TV em novelas de época. Sem contar que as novelas de época atuais pegam bem leve em representar esse período, reforçando a idéia de que o branco opressor não era tão mal assim. Compreendo que seja doloroso rever as cenas de açoite dxs negrxs em novelas mais antigas que retratavam o Brasil antes da abolição (no caso de Lado a Lado, é pouco tempo após, portanto a temática é do negro escravo é bastante presente), mas é bastante danoso cobrir os olhos para o horror do passado. Se eu tenho alguma resposta sobre como chegar ao meio termo? Não. Gostaria, mas não tenho. 

O protagonismo não significa muito quando não vem revestido de cuidado com o contexto. Houve uma única "Helena" negra de Manoel Carlos, interpretada por Thaís Araújo. Embora a personagem fosse diferente do estereótipo que vemos sempre, pois era negra e rica, modelo internacional, com carreira de sucesso e etc. é bom que relembremos uma cena, gravada de forma indelével em minha memória. A cena em questão mostra a personagem Tereza, interpretada por Lilian Cabral, esbofeteando Helena, que se ajoelhou em sua frente para lhe pedir perdão. Alguns dirão que ela não apanhou por ser negra, mas por ter indiretamente causado o acidente que fez com que a filha de Lilian Cabral se tornasse tetraplégica, mas queridos, o signo é relevante. A imagem que já está gravado em nossa mente é o da mulher branca coagindo a mulher negra, uma cena que não pode ser jamais dissociada de um contexto. Não desprezem essa representação, pois ela tem significado histórico e cultural. É a sinhá e a escrava mais uma vez. 

Tereza bate em Helena

E já que mencionei a protagonista de Thaís Araújo, que até onde me lembro já teve três papéis principais, vamos lembrar de outra protagonista recente: Maria da Penha, a empreguete. Não é curioso que numa novela com três protagonistas apenas a mulher negra fale "incorretamente"? Curioso é modo de falar, gente. Essa presunção de que x negrx fala "incorretamente" ou que é iletrado é racismo mesmo. Além de ser uma representação bastante elitista, dada a profissão da personagem que também é estigmatizada, por ter uma baixa remuneração e ser essencialmente uma das profissões dominadas por mulheres. Assim, combina-se numa só personagem três tipos de preconceito: o machismo, elitismo e o racismo. E é claro, devo ressaltar que Maria da Penha foi a única das três empreguetes que sofreu assédio sexual em seu ambiente de trabalho.

A mulher negra possui outro espectro não contemplado pelos estereótipos “bandido” ou “incapaz”. A mulher negra é objeto. Há pouquíssimo tempo, na novela Fina Estampa, tivemos um exemplo marcante dessa questão. Não sei se todos se lembram, mas Fina Estampa era uma novela urbana. E dentro dessa ambientação de uma grande cidade, uma mulher negra era a única personagem de todo o elenco a banhar-se sensualmente ao ar livre com uma mangueira, cena que se repetiu diversas vezes até o fim da novela. Dagmar, sua flor nos cabelos, seus banhos noturnos sob a lua. Uma romantização do ódio contra as mulheres negras. A hipersexualização da mulher negra nas novelas é recorrente. Dagmar não foi a primeira, nem a última. Vale lembrar que na mesma novela havia a personagem branca e loira chamada Teodora, também uma mulher desejada, contudo em momento nenhum de toda a novela ela chegou perto de interpretar algo próximo dos pitorescos momentos sensuais de Dagmar, momentos em que o racismo e o machismo se misturam ao ponto de se tornarem indissociáveis. A objetificação da mulher branca e da mulher negra tem contextualizações distintas, embora ambas sejam violentas.

O Cirilo de 20 anos atrás
A forma como apresentamos xs negrxs (ou pior ainda, não representamos) nas mídias interfere diretamente na forma como os negros são acolhidos na nossa sociedade e vice-versa. É um sistema opressivo que se retroalimenta. A questão da representação é tão patente que estamos fazendo um remake de uma novela que inclusive, já era um remake! A primeira versão de Carrossel foi ao ar nos anos 60 na Argentina e teve sua regravação no México em 1989. Exibida no Brasil em 1991, permaneceu na "memória afetiva" do brasileiro ao ponto em que, 20 anos depois (ou 50 anos, se contarmos a primeira versão já realizada), estamos fazendo mais um remake. O antigo e requentado racismo está lá em todas as versões. O Cirilo Rivera, negro e pobre, desprezado, inocente, sonhador e passivo. Sofre com o racismo de Maria Joaquina, a branca e rica que ele nunca deixa de amar. Eu me recordo de quando assisti Carrossel. Na época eu não sabia o que era o racismo, pois era muito pequena, mas já nas primeiras salas de aula que frequentei, havia um "Cirilo". Havia um negro que era chamado por esse apelido que nada tem de abonador. E me surpreendi (na verdade nem sei porque ainda me surpreendo) com o vídeo que vi, do @Lasombraribeiro, falando que sua filha tem sofrido o mesmo preconceito. Está sendo chamada de Cirila na escola. Estamos falando de um espaço de tempo de 20 fucking anos. VINTE. Duas décadas. Estamos falando da geração Y, que já aprende a viver com um aparelho com internet nas mãos. E o velho preconceito continua em tantas salas de aula por aí, atacando a autoestima de meninos e meninas. Especialmente a das meninas, que sabemos também são alvo do machismo cotidiano.

Eu até poderia pular essa parte do texto, pois falar do Zorra Total, é chutar cachorro morto, uma vez que ESTÁ TUDO ERRADO. TUDO. Se duvidar cada quadro dá um texto para esse blog. Sabe quando no início do texto eu disse que chamar negro de macaco não tem graça? Pintar branco de negra também não. Qual seria o motivo que leva um ator branco a se pintar de negra para representar? Não seria mais prático chamar uma atriz negra? O motivo é o mesmo de sempre... Humilhação. Um branco ridicularizando a pele negra. Só que no caso da Adelaide, o ator que representa a personagem é negro. Um negro, pintado de negro. Bom, não sei se ele se identifica como negro, mas certamente possui traços característicos da raça negra. O que é bastante flagrante nesse caso é o alvo da chacota: a mulher negra. É isso que é exibido todos os sábados com a personagem Adelaide, do Zorra Total. Uma personagem, negra, pobre, desdentada, maltrapilha, que faz comentários desdenhosos de características dxs negrxs como por exemplo, a compleição de seus cabelos. Alguém realmente pode tentar justificar isso sem resvalar no racismo mais uma vez? Sem desqualificar as mulheres negras? Será que em algum lugar nesse país não tem uma mulher negra sendo chamada de "Adelaide" jocosamente apenas por ser negra?

A questão aqui não é esconder que o racismo existe, ou fingir que não existiu escravidão, mas é mesmo necessário que nos tempos de hoje, ainda estejamos sempre diante dos mesmos personagens, com novos atores, novas técnicas de filmagem, nova roupagem, mas o mesmo conceito? Porque não podemos representar negros em produções televisivas sem tender ao ódio ou ao paternalismo? Me recordo de alguns poucos exemplos interessantes e não estereotipados nas novelas recentes. Poucos. E mesmo entre esses, há certeza de que em certo momento os signos não são lançados novamente de forma velada ou pouco criteriosa? 

Caitlin Moran, feminista, autora do
premiado livro "Como Ser uma mulher"
Fora do panorama nacional, há pouco tempo a feminista Caitlin Moran deu uma declaração bastante controversa sobre as críticas que foram feitas ao elenco da série Girls, que não conta com atrizes ou atores negros. Caitlin disse que não dá a mínima para esse fato. Não estamos falando de uma pessoa que está de fora dos movimentos sociais, mas de alguém que se afirma feminista (e é, já que não existe um teste de admissão). Acho complexo pensar uma série que se passa em N.Y., num país com tamanha segregação racial, com alta concentração de imigrantes latinos, indianos, chineses e etc, sem que não exista sequer uma pessoa que não seja branca (considere que essa questão da imigração é muito importante no feminismo americano). Calar-se diante da falta de representatividade de grupos minoritários em uma série que tem uma temática feminista é muito errado. É White privilege, ou privilégio branco. Nós, feministas brancas, também devemos atentar para os nossos próprios privilégios, pois eles existem. Na série Girls, em específico, eu só posso lamentar profundamente que não exista uma protagonista negra. A série é muito boa, retrata de forma muito humana, multifacetada, os problemas daquelas jovens de 20 e poucos anos que ainda estão começando a vida adulta, lidando com relacionamentos falidos e opressores, com pouca grana... enfim, uma série sobre a vida imperfeita dessas moças, eu acredito que o panorama de uma jovem negra nas mesmas condições seria muito enriquecedor para a série. O tempo de se pensar num casting completamente branco já passou, nos dias de hoje isso deveria ser inimaginável.

Certamente esse foi um ano decisivo para xs negrxs em nosso país, com a vitória histórica no STF pelo direito às cotas em universidades. Por outro lado, o conservadorismo está crescendo e ainda hoje, as palavras da música de Elza Soares fazem sentido: A carne negra é a mais barata do mercado. E se olharmos a fundo para a situação, podemos estreitar melhor esse jargão, veremos que a carne da mulher negra é ainda mais barata. Infelizmente, ainda precisamos caminhar muito enquanto sociedade para que isso deixe de ser verdadeiro.

Esse texto faz parte da Blogagem Coletiva Mulher Negra. Durante os dias 20 e 25 de novembro, uma aproximação entre o Dia da Consciência Negra e o Dia Internacional da Não Violência Contra a Mulher. Acompanhe aqui.