sexta-feira, 29 de junho de 2012

Orgulho lgbt*: a dor de quem ousa ser diferente.


Arte de Maika Pires Milezzi.
 Ontem, 28 de junho, fez 43 anos desde a "rebelião de Stonewall". Esse dia foi um marco por ter sido a primeira vez que um grande grupo lgbt* resistiu à ação violenta da polícia. O fato desencadeou dois dias de protestos, e em 1º de julho de 1970, houve uma Marcha que hoje é considerada a precursora da "Parada do Orgulho LGBT".

Ontem seria o dia perfeito pra se discutir a criminalização da homofobia (e da transfobia), seria um dia pra se falar sobre a necessidade de educar a sociedade para a tolerância, poderia até ser um dia de se discutir o casamento civil homoafetivo. Mas a pauta da Câmera dos Deputados foi a "cura gay". Um retrocesso. 

Na madrugada do dia 24 de junho, dois irmãos foram confundidos com um casal homossexual e foram espancados por oito homens. Um deles morreu, o outro foi para o hospital com ferimentos sérios no rosto. Um crime chocante motivado pela homofobia. Porém, a homofobia não se expressa apenas nos assassinatos, mas no dia-a-dia, existem muitas outras violências que criam um ambiente favorável para haver a violência final, que são essas agressões e homicídios. Uma delas é colocar a homossexualidade (e também a transexualidade** e a bissexualidade) como doença, um pecado, uma subversão de valores. 

A Rússia proibiu as "Paradas de Orgulho lgbt*" pelos próximos 100 anos. Motivo que levou os ativistas lgbt* a buscarem o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos para reverter essa proibição. O grupo lgbt* na Rússia não tem o direito de se manifestar nas ruas de sua capital. Direito, teoricamente, consagrado para a população heterossexual. Quem é gay, lésbica, bissexual e transexual é considerado cidadão de segunda categoria, seus direitos reconhecidos são ignorados e são desrespeitados, como se essas pessoas não fossem "dignas" o suficiente de serem parte da universalidade dos Direitos Humanos.

Talvez um dos mais importantes pontos a ser tocado é o uso do "orgulho gay" no lugar do "orgulho LGBT*". Ao falar em "gay", há uma exclusão de uma grande parcela de pessoas que também sofre preconceito pela sua orientação sexual e/ou pela sua identidade de gênero. Lésbicas, bissexuais e transexuais, ao não serem incluídos, têm seus direitos ainda mais marginalizados. Se gays são considerados um grupo de cidadãos de segunda categoria, imagine só as lésbicas, bissexuais e transexuais que nem sequer são citados em muitas notícias e na própria luta pelo reconhecimento de seus direitos.

A marginalização do grupo LGBT* invisibiliza as discriminações sofridas pelo grupo como um todo. É necessário falar que gays, lésbicas, bissexuais e transexuais não são doentes, não são loucos, nem depravados e imorais. São seres humanos que buscam uma vida plena, com acesso aos seus direitos, sem medo de morrerem por serem quem são e por amarem e/ou desejarem que quiserem.
Foto de  Gabriela Gasparotto. 

Campanha das Mulheres de Viçosa em movimento na Marcha das Vadias

Restringir os direitos desses cidadãos é impedir a plena participação deles na sociedade, é um atentado contra o próprio Estado Democrático de Direito. Afinal, a pluralidade é um componente da Democracia. O Estado, ao negligenciar a violência sofrida por esse grupo de pessoas, atenta contra seus próprios princípios e também contra os Direitos Humanos.
Não é normal impedir que um grupo de pessoas tenha acesso aos seus direitos civis, não é normal fechar os olhos a uma violência sistêmica contra esse grupo específico.

**A transexualidade ainda é considerada uma patologia. Já a homossexualidade, desde 1990, deixou de ser considerada assim pela Organização Mundial de Saúde. A discussão da Câmara foi sobre permitir tratamento para curar a homossexualidade, ou seja, "patologizar" novamente a homossexualidade.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Não me ensine a militar


Entrei há pouco tempo no feminismo, mas foi um mergulho de cabeça. E de lá para cá, tenho usado meus perfis em redes sociais, esse blog e a minha vida para militar. Lembro-me de quando houve a polêmica em torno daquela propaganda da Hope, da Gisele Bündchen. O que eu ouvi de "ah, vai mesmo reclamar sobre isso? porque você não vai reclamar do salário desigual para homens e mulheres!?" e variantes... O que acontece é o seguinte: Toda vez que nós, feministas, reclamamos de violência simbólica, aquela que ocorre de forma velada e no dia-a-dia, somos chamadas por alguém a nos calar. Ou porque dizem ter coisa mais importante para reclamar (Oi, quê?), ou porque simplesmente não deveríamos falar sobre feminismo (um exemplo clássico: "da corrupção que assola o Brasil ninguém fala"), ou ainda porque a pessoa é incapaz de enxergar a opressão que existe sobre as mulheres.


Imagem do tumblr
 Machismo chato de cada dia
A galera que diz que deveríamos falar da corrupção no Brasil merece um aparte. Absortas que estão em diminuir qualquer movimentação em torno de um grupo oprimido, as  pessoas se esquecem que é possível falar sobre duas coisas, os temas corrupção e feminismo podem coexistir! Sim, é verdade, é possível! :O E mesmo que não falemos de corrupção, ninguém é obrigado a apoiar todas as causas do mundo, cada um luta por aquilo que julga ser importante. Quem reclama que os militantes de algum movimento social, e não somente o feminismo, deveria militar apenas contra a corrupção normalmente não é militante de nada. Porque quem é ativista, de sofá ou não, tende (infelizmente, nem sempre) a respeitar mais a luta do outro. 




Há quem acredite que o feminismo está errado em se expor de peito aberto. E afirmo logo que esse grupo não enxerga além dos seus privilégios. Acreditam que há feministas que "queimam o filme" do movimento. O motivo? Estamos erradas em não sussurrar delicada e sensualmente no ouvido do opressor, mas gritar por igualdade. O feminismo é um movimento muito axiomático, de cunho ético e moral muito bem delineados. Não há distorção da informação, manipulação de palavras. Apesar de ser um movimento plural, a assertividade é uma característica comum da ideologia. E isso incomoda. Sempre tem uma pessoa, normalmente um homem heterossexual (sim, lidem com isso!), que diz que não estamos fazendo certo. Querem nos dizer sobre o quê e como militar! É de uma arrogância sem fim. 


Sobre isso, a @Carinaprates_, fez uma sequência de tweets muito boa:


1. Todo mundo é super revolucionário de esquerda até que o assunto é: mulheres."
2. Capítulo 1: O feminismo "ideal"
3. A graciosa feminista com um sorriso pueril nos lábio diz: "Com licença, senhor opressor, permita-me discordar do seu machismo?"
4. A delegada feminista diz para um marido que espancou a esposa: "Querido, o senhor não deveria ser tão duro com a sua amada esposa"
5. A feminista militante diz numa reunião mista: "Sei que os homens também são oprimidos pelo machismo, por isso devemos lutar por vocês"
6. No final da reunião, a graciosa feminista serve o café. Não por gentileza, mas porque foi escalada por homens para isso. Ela sorri.
7. A feminista "ideal" pergunta para os homens se pode resistir ao machismo e como fazê-lo.
8. E assim, ninguém "queima" o feminismo e atingimos o nosso objetivo. Igualdade? Não, boba, não incomodar os homens, uai.
9. Fim.



Para finalizar existe o grupo que vive em um planeta diferente do que eu vivo, onde não existe opressão e todo mundo está enxergando pêlo em ovo: as mulheres já estão em pé de igualdade total com os homens, o Brasil é um país miscigenado onde não existe racismo, os LGBTT's querem tomar os direitos dos heterossexuais, etc, etc, etc. Esses são os backyardigans que armam altas confusões imaginando tudo sem sair do quintal de casa. Adoram invisibilizar o problema alheio, porque se não há problema para ele, por que teria para os outros, não é?


Podemos dar um nome à essa invisibilização (que pode ou não ser feita com má fé) dos problemas femininos: "Backlash". Susan Faludi, escreveu em 1991, há mais de 20 anos atrás, o livro "Backlash" sobre o ataque da mídia contra o movimento feminista, que ganhava força na década de 80. E hoje, não é muito diferente. Há muita gente (não apenas na mídia tradicional) por aí numa guerra não-declarada ao feminismo. Disse Susan:

"Embora o contra-ataque antifeminista não seja um movimento organizado, nem por isto deixa de ser destrutivo. Com efeito, a falta de coordenação, a ausência de uma única liderança só servem para torná-lo menos visível — e talvez mais eficiente. Um backlash contra os direitos das mulheres tem sucesso na medida em que parece não ter conotações políticas, na medida em que se mostra como tudo, menos uma luta. Ele é tanto mais poderoso, quanto mais consegue transformar-se numa questão privada, penetrando na mente da mulher e torcendo a sua visão para dentro, até ela imaginar que a pressão está toda na cabeça dela, até ela começar a impor as regras do backlash a si mesma"  (tradução retirada do wikiquote).


Se você é homem, branco, heterossexual e de classe média/alta você até pode fazer parte de uma minoria que apóia e compreende o movimento feminista, mas via de regra, você é histórica e culturalmente a classe mais privilegiada. E esse seu privilégio fala mais alto toda vez que você tenta calar o feminismo. Porque quando você afirma que deveríamos lutar por algo mais importante, você simplesmente ignora o que é importante para nós. Ninguém está mais gabaritado para saber sobre o quê e como se deve reclamar do que o oprimido. A opinião externa, de quem analisa tudo de uma posição privilegiada, muitas vezes nem tem a intenção de oprimir, mas na real é isso que acontece. Fale como devemos nos comportar e é exatamente isso que você estará fazendo: Nos oprimindo ainda mais.

Chega a ser ridículo de tão patriarcal. É como se dissessem "coitadinhas delas, são bem intencionadas, mas não sabem o que estão fazendo". Novidade: Sabemos, sim. Homens, não nos ensinem a militar. Se vocês não querem fazer parte, não querem ajudar, não atrapalhem (muito): Não ousem tentar calar a nossa voz, porque não nos calaremos, na verdade a cada vez que tentarem falaremos mais alto. Fiquem na sua, mas saibam que a neutralidade sempre favorece o lado opressor. 
Fotografia da Marcha das Vadias de Brasília,
 de Sérgio Kremer Groff 

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Guestpost: Desmontando um falso argumento: "Só quem já nasceu é a favor do aborto"


Em tempos onde os direitos humanos das mulheres são considerados moeda de troca na construção de um documento internacional, Henrique Marques-Samyn escreveu um excelente texto que toca num dos componentes do "direitos reprodutivos e sexuais", o direito da mulher de decidir quando e quantos filhos quer ter e ao direito a opção do aborto seguro.

"Obrigada mãe, eu nasci", uma variação do falso argumento.
Qualquer um pode ser contra o direito ao aborto (com uma ressalva: ninguém é "a favor do aborto"; as pessoas são a favor, ou contra, o direito de a mulher receber auxílio médico para interromper a gravidez). Mas uma discussão razoável exige bons argumentos. Dizer que "só quem já nasceu é a favor do aborto" não é apresentar um argumento, e sim uma frase de efeito falaciosa.

Em primeiro lugar, analisemos o "argumento" como está formulado. O que quer dizer? Que só quem já nasceu pode ter uma posição favorável à descriminalização do aborto (a propósito, faria mais sentido substituir o "só quem já nasceu" por "só quem está vivo", mas isso acabaria com o jogo de palavras presente no "argumento"). Ora, isso quer dizer algo óbvio: que só quem nasceu (= está vivo) pode ter opiniões. Nada mais evidente: quem não nasceu pode ser contra ou a favor de alguma coisa? Quem não tivesse nascido poderia ter algum tipo de opinião? E quem não está vivo, um morto, pode ter opinião? Isso já basta para demonstrar que não estamos tratado de um argumento consistente.

Por outro lado, há quem use aquele "argumento" para sugerir que apenas quem teve o "direito de nascer" é contra esse mesmo direito, quando se trata de outras pessoas. Nesse caso, o pressuposto é que os pró-escolha agem hipocritamente, interrompendo a vida de outros, cerceando o seu direito. Mas as coisas não são bem assim. Aqui, cabe um esclarecimento prévio, e bastante simples, acerca da posição de quem defende o direito à interrupção da gravidez com auxílio médico: assim como se considera cientificamente que a morte cerebral indica o fim da vida, entende-se que a vida humana surge quando se forma o cérebro; isso só ocorre após as primeiras doze semanas, quando se desenvolve o sistema nervoso do feto. Na maior parte dos países nos quais o aborto é legalizado, a interrupção é permitida nessas primeiras doze semanas, antes que seja possível a formação do cérebro − logo, antes que seja cientificamente possível falar em vida humana. Não há, portanto, nenhuma vida sendo interrompida.

"As mulheres decidem, a sociedade respeita, o Estado garante, as Igrejas não intervem.
Educação Sexual para decidir, anticoncepcionais para não abortar, aborto legal para não morrer."
Vale dizer que, na verdade, quem é pró-escolha é, sim, a favor da vida: a favor da vida das mães e das mulheres, em primeiro lugar. Aqui, passamos a tratar de fatos: a criminalização do aborto não evita o aborto; apenas obriga a mulher a realizá-lo na clandestinidade. Sabe-se que o aborto ilegal é a terceira causa de morte materna no Brasil. São essas pessoas que os pró-escolha buscam defender, assegurando-lhes meios seguros e adequados para a realização de práticas que já fazem parte da realidade brasileira, independentemente da proibição do aborto. Com a criminalização do aborto, a situação em nosso país é a seguinte: mulheres ricas têm meios financeiros para interromper uma gravidez indesejada em maternidades de luxo (por um altíssimo custo, devido à ilegalidade); mulheres pobres recorrem a clínicas clandestinas, que realizam o aborto em condições inadequadas. A Pesquisa Nacional de Aborto, realizada em 2010 pela Universidade de Brasília (UnB) com o apoio da Agência Ibope Inteligência e do Ministério da Saúde, revelou que uma em cada sete brasileiras entre 18 e 39 anos já realizou ao menos um aborto na vida. São 5 milhões de mulheres. Seu perfil? Essas mulheres já são mães (81%), são casadas (64%) e são religiosas (pouco menos de dois terços são católicas; um quarto, protestantes ou evangélicas).

Por fim, cabe ressaltar que o principal pressuposto de quem defende o direito à escolha é que a mulher tem o direito de lidar com a própria gravidez de acordo com suas crenças e convicções. Se o aborto for descriminalizado no Brasil, uma mulher religiosa pode jamais sequer considerá-lo como uma opção para si, caso esse lhe pareça o modo correto de agir, conforme suas crenças; esse direito lhe será assegurado. Mas, numa sociedade democrática, não se pode obrigar uma mulher que não é religiosa a agir segundo os dogmas de qualquer religião − e esta é a situação na qual nos encontramos atualmente. Em outras palavras: a descriminalização do aborto só tenciona permitir à mulher que exerça sua autonomia, conforme seus próprios princípios. Seu corpo, suas regras!

Henrique Marques-Samyn, (@marques_samyn), escritor e professor da UERJ.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Eu acredito em amizade verdadeira entre mulheres


Dia desses, fui com algumas amigas à uma festa de conotação bem feminista. Lá tiramos uma foto segurando um cartaz com o título desse post. Um dos clichês mais repetidos por aí sobre as mulheres é que não existe amizade feminina, pois as mulheres são muito competitivas, fofoqueiras e invejosas (Curiosamente, muitas das pessoas que afirmam isso também dizem que não existe amizade entre homem e mulher heterossexuais. Então mulher só pode ser amiga de homossexuais e transgêneros?). E eu não poderia discordar mais. Eu tive a sorte de conhecer os dois lados. As amizades masculinas e as femininas. E as pessoas que perduram na minha vida são quase que em totalidade mulheres.
Não quero, com isso, negar a existência de mulheres que puxam o tapete das outras. Outro dia mesmo, uma amiga reclamou que teve a sua fé no feminismo abalada por causa de um grupo de mulheres competitivas com quem ela trabalha, daquele tipo que faz jus ao estereótipo: diz que é amiga, mas disputa homem, disputa atenção e ataca a sua autoestima. Eu sei que essas pessoas existem. Houve uma mulher que puxou o meu tapete também, mas também homens que fizeram o mesmo. A gente sempre vai encontrar na vida pessoas sem caráter, sem ética. Acontece. Creditar essas atitudes apenas à um gênero é simplista, machista, castrador. Convido nosso eleitorado feminino à reflexão. Se você é uma dessas pessoas, você já parou para pensar nos motivos para fazer isso?
A natureza da amizade feminina e da masculina é a mesma. Carinho, companheirismo, empatia. A diferença está no machismo com que as mulheres são vistas e que algumas de nós internalizaram. Eu explico: desde muito cedo a competição é instigada em todas as pessoas, só que de formas diferentes para homens e mulheres. Mulheres são objetificadas pela sociedade. Precisam ser lindas, precisam ser amadas, precisam recolher as migalhas de atenção de um homem. E para isso é necessário ser melhor que as outras mulheres. Seja para se encaixar num padrão de beleza limitador, seja para estar melhor colocada em sua profissão. Homens por outro lado também são estimulados na sua competição, só que competem de outras formas. Exemplo tão estereotipado quanto o da mulher competitiva é o do homem pegador. Homens precisam pegar mulheres para reforçar sua masculinidade. Então sim, há competição entre homens também, embora ninguém fale muito disso. Os dois casos de competição são ridículos, preconceituosos e não deveriam ser encarados como padrões comportamentais. Para exemplificar melhor a questão, darei exemplos pessoais que contrariam o senso comum vigente. 
Voltando muito atrás, no tempo, a primeira amizade que aqueceu meu coração foi de uma menina. Sabe, a coisa foi tão forte, que mais ou menos vinte anos se passaram, o Pará, meu estado natal, ficou para trás e ela ainda alegra a minha vida, com as lembranças da minha infância e com sua presença ainda que virtual. 
Da infância para a adolescência, a pessoa que mais me marcou não foi quem me proporcionou primeiro amor, o primeiro beijo ou a primeira transa. Foi a melhor amiga. A pessoa com quem eu dividi todas as minhas experiências mais profundas, meus sentimentos que eu não ousava contar sequer para o travesseiro, ela sabia. Às vezes parece que ela me conhecia melhor do que eu mesma. Talvez conhecesse. Acho que muitas de nós, mulheres, teve uma melhor amiga na adolescência que pode ou não ter se mantido em nossas vidas depois desse período conturbado. Me lembro com grande carinho das madrugadas que passei em claro só conversando e rindo. E também das intermináveis horas que passei chorando ao telefone com a voz carinhosa da minha amiga do outro lado me acalentando e ao mesmo tempo compreendendo a inquietude que é amar e não ser correspondido. Da faculdade, eu mantive uma amizade em especial, que está sempre por perto, participando imensamente da minha vida, inclusive profissional (onde muitas pessoas diriam que é o ambiente mais hostil, cheio de fofoca e intriga... Só que não).
Essas três amizades, sozinhas, já destruiram qualquer resquício dessa visão machista que eu poderia ter da amizade feminina. Porque elas se mostraram o perfeito oposto. Porém eu não parei aí, encontrei abrigo num grupo de umas quarenta mulheres, que são muito diferentes entre si, mas que dividem sentimentos de solidariedade, aceitação e carinho muito fortes. Há altos e baixos, há algumas discussões, mas o sentimento está sempre presente. Esse blog é um exemplo de como a amizade feminina é real. Somos todas amigas. Eu podia ter perdido todos esses momentos maravilhosos que tive na vida se tivesse olhado para essas mulheres incríveis com a superficialidade de quem só vê falsidade nas relações femininas.
Houve também uma época em que eu estive cercada de amizades masculinas, mas uma a uma elas foram caindo com o tempo e com a incompatibilidade entre essas pessoas e eu (e não entre os gêneros), assim como também deixei no passado algumas amizades de mulheres. Algumas vezes o erro foi meu, algumas vezes não foi. Outras vezes a vida se encarregou de me afastar das pessoas mais queridas.
A partir do momento que você, mulher, diz que "mulher é sempre competitiva, fofoqueira, egoísta", você se coloca no meio. Você támbém é mulher, esqueceu? Cair nesse senso comum pode impedir você de viver experiências maravilhosas ao lado de outras mulheres. Não seja competitiva e não alimente competição. Mudar essa visão estereotipada também depende de cada uma de nós, mulheres. É preciso parar de falar por aí que todas as mulheres são assim e vamos focar nas pessoas que não são. Somente olhando para outra mulher sem erguer esse muro de desconfiança é que nos daremos a chance de conhecer melhor umas às outras.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Índia é o pior país do G20 para as mulheres.

Fiz o post abaixo e fiquei na dúvida se deveria publicá-lo em meu blog pessoal ou aqui no Ativismo. Como eu e as meninas chegamos à conclusão que o assunto é sim relevante para o Ativismo, aqui está. Aviso àquelxs que não me conhecem: o post é bem pessoal, baseado inteiramente na minha vivência de 3 anos e meio na Índia.


Quero iniciar o post de hoje comentando uma notícia lida semana passada, que diz respeito ao relatório feito pela fundação Thomson Reuters, que coloca a Índia como o pior país do G20 para as mulheres. Indianos mais chegados meus ficaram espantados de ver que o país deles ficou atrás até da Arábia Saudita. Eu só pude pensar uma coisa: eu sabia. 

Eu sabia, e não é só porque eu também havia lido acerca desta outra pesquisa que abrangeu países além do G20,  concluindo que o Afeganistão é o pior lugar do mundo pra uma mulher nascer e viver, mas que a Índia está entre os cinco primeiros lugares. Segundo este outro relatório, mais completo ao meu ver, a Índia é pior até que a Somália no quesito vida infernal de suas mulheres. 

Daí que sempre que eu vejo discussões a respeito do grande e vergonhoso problema indiano, vem à tona a velha hipocrisia à qual eu tenho sido exposta desde que a Índia passou a ter um papel, digamos, mais relevante em minha vida. Trata-se da manjada desculpa do “ahhhhhh mas a Índia é assim só nos vilarejos mais pobres e distantes, nas grandes metrópoles isso já não ocorre mais”. 
 
Eu confesso que o “argumento” acima, exposto até no texto do portal Terra, me deixa duplamente emputecida. Primeiro, pelo mais óbvio: fica parecendo que o problema, na verdade, não é bem um problema, por não atingir as mulheres mais privilegiadas. “Ah, só acontece em vilarejo” pode ser traduzido por “ah mas gente pobre não conta”. WTF né.

Segundo, e agora a parada fica séria: qualquer "cerumano" que tenha vivido na Índia - e que o tenha feito para além de um ashram da vida - SABE que o tal do “argumento” é uma falácia. As mulheres mais ricas estão, literalmente, presas em gaiolas de ouro. E as de classe média, bem, eu não tenho nem metáforas para descrever a situação delas.  Vamos exemplificar pra ver se fica mais claro? Pois então. Eu sempre falei pro bofe que é muito estranho que praticamente TODAS as famílias com filhxs da minha faixa etária (cerca de 30 anos) que eu conheci ali tenham um filhO primogênito. Eu sempre estranhei e sempre estranharei isso. Porém, o comportamento da geral é “aborto seletivo só ocorre lá onde o judas perdeu as botas, minha feeelha, aqui na cidade grande não é assim não”. Ahã Cláudia. 

Olha. Ainda bem que existem pessoas lindas e delicinhas como o ator Aamir Khan, que teve a bravura de bater a real em todo mundo. Em um programa que foi ao ar recentemente e escandalizou a Índia como um todo, ele prova através de casos REAIS que a questão do aborto seletivo perpassa todas as classes sociais da Índia. Você pode assistir o programa (infelizmente as legendas estão em inglês) aqui. Aviso: você VAI chorar.

Mas... e exemplos mais pessoais? Tenho aos montes. A hostilidade para com as mulheres é tanta, que eu posso tentar listar: 

1. Quando alguém tem bebê em alguma empresa, um colega se apressa em mandar email para toda a equipe. Tudo normal, tudo lindo, só que não. Via-se claramente que a palavra “bênção” só figurava naqueles casos em que o bebê era um menino. “Não-sei-o-quê-lá-esh foi abençoado com um garoto”. Quando se tratava de menina, o email (se chegasse a ser enviado), dizia apenas “Não-sei-o-quê-lá-esh agora é pai de uma menina”. Às vezes rolava um “anjo”, decerto pra não pegar mal;
  
2.  Mulheres chorando no banheiro. Mulheres chorando na cafeteria. Mulheres chorando no pátio. Não só presenciei como consegui conversar com algumas. E a queixa era sempre a mesma: mals tratos vindos não só dos maridos, mas também das famílias dos maridos. Especialmente quando elas viviam nas chamadas joint families, que é a expressão que eles utilizam para se referir ao fato de que a mulher largou a sua família e foi ser escrava da família do bofe. E como é a vida de uma mulher que trabalha fora e vive com os sogros? Bom, pelo que eu presenciei ali, é assim: ela trabalha, geralmente, no turno vespertino/noturno. Entra às 4 e sai 1 da madrugada. Pega a van da empresa, que vai deixá-la na porta de casa por volta de 3 da manhã. Precisa acordar às seis para preparar o café-da-manhã para toda a família.

Terei de fazer um parêntese: o café-da-manhã indiano é um ritual. Preparar dosa, idli, chapatti ou outra coisa que eles gostam de comer, preparar o chai, cortar frutas para que tudo esteja FRESCO na hora do desjejum leva tempo. Algumas dão a sorte de ter uma sogra compreensiva que as permite um cochilo entre o preparo de uma refeição e outra. Outras não contam com isso, pois as sogras acham que dormir de dia é coisa de gente preguiçosa. Daí que o jeito é tentar tirar uma soneca no banheiro ou em algum quarto que as empresas disponibilizam para descanso. Como nada é tão ruim que não possa piorar, elas ainda têm a obrigação de dar cada centavo de seus salários aos sogros. Não minha gente, o dinheiro que elas ganham com próprio suor não é delas;  

3. Mortes. As mulheres morrem aos montes, não “só” de aborto seletivo. Sabe aqueles jornais que se você torcer sai sangue? Pois é. Notícias e mais notícias de mulheres que pegaram o lenço que lhes cobria os seios e se enforcaram. Mulheres que foram queimadas vivas por sogros/maridos ávidos por mais dote. O dote é probido por lei na Índia, mas permanece firme e forte sob a forma de “presentes” que a família da moça tem que dar para a família do noivo. Só que em muitos casos eles não se dão por satisfeitos com a quantia recebida por ocasião do casório. E pedem mais. E fazem pressão. E enchem o saco. E ameaçam de morte. E elas se matam. E quando não se matam, muitas vezes acabam sendo mortas. 

4. Banalização da violência doméstica. Mulher levando tapa na cara em filme kannada e a galera vibrando, rindo e torcendo para que ela apanhasse ainda mais? Pois é, já presenciei. Chocada, perguntei pra uma colega “como que vocês podem rir disso?”, ao que ela prontamente me respondeu “é porque você não entende kannada, ela mereceu”. Oi, comassim ela mereceu???? É triste ter que dizer isso, mas é assim que eles percebem a vida: como um mero desenrolar de ação e reação. Não, eles não sabem quem foi Hitler ou o que foi o holocausto. Mas de vez em quando aparecia algo na televisão. E sempre tinha alguém pra falar “nossa, o Hitler foi um grande líder”. E eu batia boca. E a resposta que eu ouvia, que eu tinha que ouvir e quase morria por dentro era uma só: “mas é certeza que os judeus fizeram alguma coisa pro Hitler reagir dessa forma”. Porque, pra eles, é tudo assim, na base do karma. A culpa é sempre sua. E o resto que se exploda. 
 
Precisa falar mais alguma coisa? Assim, antes que algum desavisado venha me falar que sou uma ingrata, que cospe no prato que comeu, que só fala mal da Índia, que eu dei “azar” de ter ido pra uma parte não tão privilegiada da Índia e todo um blá, blá, blá reacionário e castrador, fica a minha resposta: eu amo a Índia. Não sei do futuro, mas se tiver que morar lá de novo, o farei de coração aberto. Porém, meus caros, eu não sou cega. Ainda há muito o que ser feito pelas mulheres ali. E só lembrando que nós, brasileirxs, também temos muitos problemas. Afinal de contas, na lista do G20, o Brasil se encontra na décima primeira posição. Como 20 países foram analisados, não precisa de uma meditação em posição de lótus pra perceber que esse resultado não é tão satisfatório, né? 

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Quanta dor cabe em um corte de cesárea?

O primeiro título que havia pensado para esse texto era “eu, que fiz cesárea”, mas refletindo melhor percebi que eu não fiz uma cesárea, fui cesareada.

O pouco do contato que eu tive com informações a respeito de parto normal se deve ao movimento feminista. Confesso que não fui atrás de muita informação, hoje penso que devia ter entrado em grupos de apoio ao parto natural, ido atrás de gente que tinha feito, procurado uma doula, saber sobre a burocracia do plano de saúde e tudo o mais. Mas não fiz isso e essas informações não chegaram sozinhas até mim. Por que? Por que não bastou ficar parada para que um parto natural me fosse oferecido?

A cesárea em compensação enfiou o pé na minha porta. Desde o começo ouvia que ela era o melhor, mais garantida, menos preocupante, trabalhosa, dolorida, “uma benção” alguns disseram. Toda vez que eu dizia que ia tentar parto normal ouvia um “o que?” em resposta, geralmente acompanhado de “nossa, que coragem” ou mesmo “para, você é louca” e chegaram ao absurdo de me responder com todas as letras: “Não faça isso!”.

E foi assim com toda essa falta de informação e de apoio que eu com quase 41 semanas de gestação fui parar em uma mesa de cirurgia para a retirada da minha filha do meu útero. E foi horrível. É até difícil de explicar como me senti, mas vamos tentar:

Depois de anestesiada eu comecei a passar mal, minha pressão caiu, tive ânsia de vômito... e aí passou. Os médicos chegaram, se sentaram e começaram o serviço, enquanto eu deitada, inerte, me mantive pacífica e de mãos atadas (quase que literalmente, com aquele monte de fios, agulhas, máquinas me prendendo) no meu próprio “parto”. Depois que me cortaram foi médico puxando de baixo, anestesista empurrando de cima, todo mundo com suas máscaras de cirurgia se esforçando no propósito de tirar meu bebê do lugar de onde ela não queria sair.

Quando a pediatra a pegou e me mostrou, eu não via a minha filha ali. Eu via um pedaço de mim. E quando digo um pedaço é como um pulmão, uma perna, algo que me foi arrancado e que eu queria de volta. Eu me senti completamente mutilada, invadida, violada. E eu chorei. E não, não foi choro de alegria ou de emoção. Eu chorei de tristeza. Chorei a dor de quem acabou de ser violentada e sabe que agora nada mais pode ser feito, nada vai trazer de volta o momento em que aquilo não tinha acontecido.

Depois a pediatra segurou meu neném no meu peito por algum tempo. E eu sinto que esse deveria ser o momento mais espetacular e indescritível da minha vida. Essa deveria ser a hora da sensação mais arrebatadora que já tive, da transformação, da grandiosidade do meu ser, eu simplesmente não deveria ter palavras para descrever esse momento. Mas eu tenho: A anestesia voltou a me dar uma náusea muito, muito forte e aí eu olhei para a minha filha e disse exatamente “tira ela daqui que eu tô passando mal”.

Depois disso a Rita foi levada e eu sedada e fiquei lá por horas sendo costurada. Quando fui para o quarto ainda não sentia minhas pernas, não podia falar, não podia beber água, não podia levantar a cabeça, qualquer coisa que eu fizesse poderia me causar efeitos colaterais fortíssimos e então eu prossegui inerte durante boa parte do dia.

A lembrança desse dia me dói muito. Sinto uma inveja tremenda quando vejo as imagens de mães com seus filhos sangrando em suas mãos, louquíssimas de hormônios, com uma mistura de choro (esse sim de emoção) e riso, sentindo algo absolutamente indescritível, chega a apertar meu coração.

Ontem a Marcha do Parto em Casa ocorreu em diversas cidades do país. Mas não se enganem pelo nome, não lutamos apenas pelo direito de termos nossos filhos em casa se quisermos, lutamos pelo direito de escolha e, partindo da perspectiva de Gramsci, só há uma forma de alcançarmos esse direito: Com informação. Não há liberdade sem conhecimento.

Não podemos falar em cesárea por opção enquanto vivermos nessa nação cesarista que omite tanto fatos, dados e estatísticas a respeito do parto, quanto suporte e apoio. Não temos condições emocionais ou materiais de escolher um parto normal.

Queremos ser empoderadas novamente, que parem de nos dizer que a dor do parto é como a morte, que não temos força para ela, que não vamos aguentar. Queremos ser lembradas de que o nosso corpo está pronto para o parto, que nós estamos preparadas para isso, nós temos exatamente a força da qual precisamos. Queremos parar de ouvir mitos como “só pode esperar até 40 semanas”, “não dá para fazer parto se o cordão estiver no pescoço”, “ o bebê nasce roxinho porque falta oxigênio” ou mesmo “com parto normal a mulher fica larga” (!!!).

Queremos ser devidamente informadas sobre os maiores riscos de mortalidade materna com a cesárea,  sobre a sensação de prazer do parto, sobre nossas reais necessidades. Queremos a possibilidade de ter nosso bebê mamando na primeira hora de vida, do corte tardio do cordão umbilical e do vínculo direto. Queremos ter autonomia para decidir sobre o nosso próprio corpo e o direito de sermos protagonistas na nossa própria vida, inclusive (e especialmente) no momento em que geramos outra vida.

Queremos a informação e o apoio ao parto natural e ativo vindo bater a nossa porta ao invés desse cesarismo que invade a nossa casa. 

Ps. E para quem ainda não viu, aqui está o famoso vídeo que fez o Brasil morrer de amor.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Recalque Misógino


Na semana do dia dos namorados percebe-se que ao contrário do que deveria ser, o amor não é pra todos. Nas propagandas que anunciam promoções para o dia você só vê casais, héteros, cis e brancos. Como se amar mais de uma pessoa não fosse amor, como se casais de lésbicas de gays não existissem, como se transexuais não amassem e negros também.

Versão Só que não de uma imagem machista.
E sabe quem mais não merece amor? A mulher considerada vadia. Ela sente toda a pressão para estar acompanhada de um homem, como se ela precisasse dele. Sente que o valor dela depende se ela consegue arrumar um namorado ou não, mas a sociedade diz que ela não merece um namorado, ela não merece um amor e nem sequer pode reclamar que não está num relacionamento, simplesmente porque ela tem vida sexual ativa, porque o comportamento dela difere dos papéis de gênero, porque ela é uma mulher e se ela não foi "escolhida", ela não se dá valor e não merece nem amor, nem respeito e nem carinho. 

Essa (falta de) lógica misógina da nossa sociedade se mostra de forma ainda mais doentia: com piadas de "feliz dia dos namorados" utilizando imagens do caso Eloá. Brincar com o femicídio de Eloá não é politicamente incorreto, não é só uma piadinha inofensiva, não é uma crítica ao dia dos namorados, é negligência, é babaquice, é falta de ética e é misoginia.

A negligência está em ignorar as estatísticas assustadoras de mulheres que sofrem e sofreram violência por parte de seus parceiros e companheiros, ignorar o medo de várias mulheres de denunciar a violência sofrida, ignorar o tratamento recebido pelas mulheres que são vítimas de violência nos hospitais, na justiça e na delegacia e ignorar que até hoje os crimes como o do caso Eloá são considerados "crimes passionais".

Propaganda típica de dias dos namorados. Só loiros amam.
Na semana do dia dos namorados é importante destacar que amor e paixão não tem nada a ver com assassinato, com estupro, com ameaça, portanto não há que se falar em crime passional quando uma mulher é morta pelo seu companheiro, o nome certo é femicídio. Quem ama não mata e nem maltrata, quem ama não se acha dono do parceiro, quem ama respeita. 

Enfim, não se engane, o amor não é para todos. São poucos que tem a permissão de amar, e dentre esses poucos, praticamente não há mulheres. Afinal, em tempo de patriarcado, mulher que tem voz, se ama independente se ama outrx, se respeita e não é submissa, não merece respeito e nem amor, merece sim ser punida por ser assim.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Semana Mundial do Meio Ambiente - Consumo, logo existo


Propaganda do carro Fiat Bravo 2012

Assistindo ao intervalo comercial da programação da tv, dia desses, vi uma propaganda que me chamou atenção: Parece um dia normal de trabalho em um escritório. Um homem bem vestido tenta atender ao telefone sem sucesso, pois as suas mãos começam a desaparecer. Ele começa a ficar incorpóreo e invisível. Com a desmaterialização em curso, corre pela sala aos berros, se vê em uma fotografia na parede, cuja imagem também começa a sumir. Ele vai ao estacionamento e entra em um carro (Fiat Bravo) e, imediatamente, volta ao normal. Mas não pára aí: em uma volta pela cidade, várias mulheres páram para observar a poderosa máquina, ressaltando o clichê da mulher interesseira. No fim, o rapaz, agora nitidamente corpóreo, sai do carro, acompanhado de uma moça morena e encontra conhecidos que disparam a piadinha: "Estava sumido, hein?".

A propaganda apenas constata um fato: Consumir virou sinônimo de existir. Mas isso não é fenômeno dos dias de hoje. Alguns se lembrarão da propaganda de 1992, 20 anos atrás, direcionada para crianças, da tesourinha do mickey, cujo slogan era "eu tenho, você não tem" (essa propaganda inclusive teve sua veiculação proibida pelo CONAR, num capítulo interessante do debate da propaganda voltada para o público infantil). Em segundos, passamos da indiferença/desconhecimento ao desejo incontrolável por um produto. Descartável é a palavra de ordem. E status designa poder. A câmera comprada a poucos meses já está obsoleta e precisa ser reposta. O smartphone já tem versão mais atual. A estação mudou, a moda mudou. Nada dura, nada permanece. A efemeridade do que possuímos tornou-se parte de nós. Geração millennials (ou outra definição mais moderna), antenada, que somos... ninguém quer ficar para trás no curso da História. E a história das pessoas lentamente passa a incorporar a história das coisas.

O problema é que não estamos tão cientes assim de qual é a história completa das coisas que consumimos, a cadeia de produção que nos apresentaram não mostra toda a verdade sobre elas. O impacto de um modo de vida que preza pela produção de uma quantidade de lixo supérfluo tão grande pode ser compreendido no documentário "A História das coisas", de 2007 e incrivelmente atual. No vídeo (ambientado no panorama americano de consumo, american way of life, desejado por tantos outros países do mundo), muito didaticamente, são apresentadas os elos da cadeia de produção e o que há de invisível por trás das palavras extração, produção, venda, consumo e descarte. Nessa cadeia, destaca-se como a "seta dourada", aquela que indica o consumidor final. É o consumidor final o alvo da propaganda citada no início do texto. 

A idéia de que consumir traz felicidade é desconstruída por pesquisas que informam que embora o consumo aumente desenfreadamente, as pessoas não estão mais felizes. Esse conceito que nos é vendido diariamente é falso ou relativo. O dado assusta: Segundo o documentário, 99% do que é comprado vira lixo em seis meses. A felicidade que as coisas propiciam é tão efêmera quanto é a durabilidade do produto. Ou até mais transitória do que isso. Na verdade, parece mesmo é que esse descarte excessivo é extremamente frustrante.

Imagem promocional do filme
Delírios de Consumo de Becky Bloom
O consumo como conhecemos hoje surgiu como forma de manutenção da economia na crise pós-guerra. Disse o analista de vendas Victor Lebow:

“A nossa enorme economia produtiva exige que façamos do consumo nossa forma de vida, que tornemos a compra e uso de bens em rituais, que procuremos a nossa satisfação espiritual, a satisfação do nosso ego, no consumo. Precisamos que as coisas sejam consumidas, destruídas, substituídas e descartadas a um ritmo cada vez maior”.

E assim temos vivido. Ainda que não sejamos americanos, tornamo-nos, para efeitos práticos, uma sociedade de consumo que impulsiona a economia. Especialmente a economia de mercados consumidores, pois é na seta dourada que está o maior valor da cadeia. Só que, para além da estabilidade da economia, esse pensamento tem destruído a vegetação, poluído o solo e o ar, explorado pessoas (especialmente as que se encontram em maior vulnerabilidade social) e recursos naturais, contribuído para o aquecimento global, entre outros tantos resultados desastrosos. O preço da manutenção desse sistema é alto demais. E não me refiro ao valor financeiro, mas ao valor social e ambiental. Só que estamos tão imersos nessa realidade em que o dinheiro é a medida do poder e da felicidade, que fica difícil visualizar como ter de volta essa satisfação espiritual e de ego, a que Victor Lebow se referia, fora da seta dourada do consumo.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Menstruação: autoestima e ódio ao feminino.


There will be blood - Foto de Emma Arvida Bystrom
            O ensaio fotográfico publicado originalmente na revista canadense Vice, nomeado de "There will be blood" foi republicado no Brasil no portal da yahoo e em outras mídias. A aceitação das fotos foi péssima.     
             Nojento, desnecessário, nada sexy e horrível foram palavras utilizadas pelo maioria do público para descrever as fotos. Tanto homens, quanto mulheres manifestaram toda essa ojeriza pela menstruação. Os comentários inclusive ofendiam as modelos fotografadas, chamando-as de vadias nojentas e falando até que elas envergonhavam a espécie. O choque foi grande, afinal, a misoginia no ódio ao sangue de menstruação não é tão clara, mas ela se mostra sem disfarces nesse comentário. Para a comentarista, uma mulher que exibe sua menstruação é menos mulher, é uma mulher sem valor, é nojenta e não esconde envergonhada o "seu feminino" e por isso merece ser xingada dessa forma.

         O "nada sexy" merece um parágrafo especial porque mostra como a mulher é vista como enfeite, ela só é bem aceita pela mídia e pela sociedade se estiver magra, maquiada, photoshopada, enfim, não natural. A mulher como ela é, menstruada, com dias bons e dias ruins, sem photoshop é criticada justamente por sair dessa função que o patriarcado a colocou, que é a de objeto, enfeite, troféu. Passiva e bela, sendo admirada e servindo ao deleite masculino heterossexual. A mulher menstruada não enfeita, ela choca. Ela não está ai pra ser admirada, afinal, ela é natural, ela é humana. A mulher vista como sujeito, a mulher vista como ser humano ainda choca. E isso assusta.

Menstrala - Pintura de Vanessa Tiegs
       A depreciação pela menstruação é correlata ao ódio pelo que é designado como corpo feminino e também a diversos problemas de autoestima, afinal, como haver aceitação do corpo se as mulheres ainda vêem a menstruação como algo sujo, feio e nojento? Ver seu organismo dessa forma faz mal, é odiar uma parte de si. Odiar a menstruação, escondê-la, evitar falar nela contribui para a repressão sexual feminina e para a falta de conhecimento do próprio corpo. Esconder e silenciar contribui também para retirar das mãos das mulheres a própria sexualidade e o direito ao próprio corpo, porque o medo do que o outro vai achar, o medo de ser nojenta, suja e feia coloca a mulher numa posição de objeto do patriarcado. 

A misoginia em relação à menstruação coloca o corpo designado ao nascer como feminino pra servir aos outros e não a si mesma e prejudica a autoestima, por criar inseguranças que impedem que a pessoa exerça sua sexualidade e conheça o próprio corpo. Ver a menstruação como nojenta, é ver também a vagina, o útero, o ovário e todo o sistema reprodutor definido como feminino como algo a ser "limpado" ou escondido. A insegurança feminina a respeito do cheiro da vagina, bem como da depilação íntima como parte da higiene e até mesmo da "feiura" da vagina são componentes do ódio ao feminino e do ódio à menstruação. E chegamos ao "nada sexy" porque se mostrar natural, se mostrar humana, não tem aceitação, porque é sair do papel que o patriarcado nos colocou, que é de passiva, submissa e objeto.

Observação: nem toda mulher menstrua e nem toda pessoa que menstrua é mulher. Entenda melhor lendo textos no "Transfeminismo"