quinta-feira, 31 de maio de 2012

Beleza circunstancial e a Marcha das Barangas


Não é de hoje que o padrão de beleza vigente oprime as mulheres. E digo especificamente as mulheres porque embora ele esteja aí para todos é no corpo feminino que ele é cobrado com mais força e veemência. Homens aparecem são retratados e congratulados por sua formação, inteligência e tudo o mais. Já nós somos o tempo todo questionadas pela nossa beleza (ou a falta dela) e só isso (vide Dilma Rousseff, que tem mais matéria criticando seus cabelos e suas roupas do que falando sobre qualquer outra coisa).

A Marcha das Vadias, que aconteceu em diversas cidades do Brasil no último sábado tem como seus maiores inimigos os machistas. Estes que odeiam ver mulheres organizadas, unidas. E obviamente esses mesmos machistas são os que curtem julgar uma mulher por nada mais nada menos do que: a aparência delas, com base nos padrões de beleza vigentes. Para eles, a palavra “feia” é a maior ofensa que se pode proferir a uma mulher (e gorda também né, porque gordofóbicos que são, acreditam que feia e gorda são praticamente sinônimos).
Pois então o que mais choveu de “críticas” as ativistas chamando-as de barangas, não é brincadeira. Basta procurar as imagens para concluir que a aparência das manifestantes é o maior foco dos haters. Além é claro de outros clássicos como “mal-amadas”, “mal-comidas”, mas obviamente tudo isso tem origem no fato de serem feias, dizem eles.

 A famosa organização ucraniana Femen, que protesta a respeito de diversos temas, tem o foco da mídia voltado para apenas algumas das manifestantes, as que tiram a blusa e estão perfeitamente encaixadas no padrão de beleza vigentes: Altas, loiras, magras. Entretanto mesmo elas quando olham para as câmeras em momento de fúria, aos berros em seus protestos, são imediatamente desvalorizadas (tanto é que essas imagens não são geralmente publicadas por aí, estão em maior número no site/facebook/etc da própria organização). Toda beleza é desconsiderada quando nela não está presente um rosto sereno e pacífico ansioso para agradar seu opressor, mas sim um grito transgressor.

E aí está a maior prova de que a beleza é circunstancial. Ou seja, uma pessoa é considerada bonita ou feia dependendo do contexto em que se encontra. Uma mulher que está indo contra o status-quo, questionando os valores que lhes foram impostos e o privilégio masculino será, com certeza, chamada de feia.

Coloque as mulheres da marcha de vestidinho e salto alto. Coloque-as sorrindo para uma câmera, bebendo um champagne (porque mulher que se dá ao respeito não bebe cerveja, todo mundo sabe), piscando para um homem. Coloque-as em um filme pornô, em um programa de TV num domingo a tarde, coloque-as  de biquíni buscando entreter os homens e pronto. Automaticamente muitas delas serão imediatamente colocadas na categoria de gostosas.

E se é esse o critério que querem nos colocar, eu peço a licença para falar em nome das vadias que marcham em todo o nosso país: Seremos feias. Se ao nos ver andando por aí, questionando seus valores, gritando nossas reivindicações, exigindo transformações sociais, tudo o que você consegue pensar é que somos um bando de barangas, então ótimo. É isso que queremos ser: Um bando de barangas.

Não queremos servir para o entretenimento masculino, não queremos seguir caladas para que vocês possam simplesmente nos achar bonitas. Sinto muito informar, mas seu julgamento a respeito da nossa estética não é mais tão importante assim. Somos mulheres organizadas e com voz. Voz essa que usaremos sempre. E sempre para nós, não para concordar em te manter nessa confortável posição que o patriarcado te colocou.

Com muito orgulho somos vadias, somos barangas. Somos a favor da igualdade e contra o seu privilégio.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Nota do Ativismo de Sofá sobre trolls.


Se você lê blogs e usa redes sociais, provavelmente já se deparou com a figura do troll. O troll é aquela pessoa que busca desestabilizar as pessoas em um grupo que está discutindo determinado tema. Ele tem a finalidade de atrapalhar discussões sadias; para isso, ofende o interlocutor, zomba de seus argumentos, desvia o assunto propositalmente e coloca "lenha na fogueira". Eles não estão abertos a mudar de opinião, refletir e ter um debate saudável: simplesmente querem fazer você passar raiva.


De todas as modinhas que já vimos começarem, passarem e até mesmo permanecerem, a pior de todas é a do troll. Trollar viola as regras de boa convivência entre pessoas, mas essa violação das regras não tem a finalidade de contestar, não há reflexão e questionamento ali. Quem faz isso simplesmente o faz porque acha engraçado desrespeitar as pessoas, vê-las nervosas, alteradas, ofendidas. O que há por trás do troll não é uma pessoa que acha que a internet deve ser levada menos a sério, e sim alguém que se diverte com a reação negativa do “interlocutor” ao se sentir ofendido, desrespeitado, ridicularizado. 

Troll já teve outro significado um dia. 
Essa idéia de desrespeito e ofensa como fonte de diversão não está só na figura do troll, está no humor que se afirma ácido, “politicamente incorreto” e contestador, mas que só reafirma o statu quo e os preconceitos existentes. Ofender faz parte do humor há tempos, mas trollar é a nova-velha modinha da internet. Esse tipo de humor, a trollagem, parte da ideia nociva de que a serventia das pessoas é nos entreter. Sendo a violência, moral ou física, engraçada para muitos, eis aqui a nova função do ser humano: ser ofendido e ter seus posicionamentos e opiniões desqualificados sem sequer poder responder ou reclamar sem ouvir um "se não sabe brincar, devolve os hominho".

Não sabemos brincar de incentivar violência contra grupos vulneráveis, não sabemos brincar de ofender e também não sabemos rir disso. Devolvemos os hominho e esperamos que mais gente o faça junto conosco, porque estamos cansadas dessa babaquice geral e dessa gente que não vê problema em dizer "te sento a vara, moleque baitola" e "te sento a mão na cara, vadia".


Autoria de Thaís Campolina com colaboração da Elisa Prando.


terça-feira, 29 de maio de 2012

O corpo é meu! O Facebook não é nosso!


A marcha das vadias lavou minha alma. Lavou a alma de muita gente. Eu não sei muito bem o quanto eu precisava daquele momento na minha vida, eu sei que ele foi muito importante para mim. Desde que eu conheci o feminismo e fui lentamente tomando consciência de todas as pequenas violências que sofria, que tolhiam a minha liberdade em muitos aspectos diferentes, muita coisa foi embora de mim. Mas principalmente muitas pessoas foram embora. Só que ao mesmo tempo, eu não me sentia só. E nesse sábado eu não estive só mesmo. Cerca de três mil pessoas em Brasília estiveram comigo, botando para fora em alto e bom som muito daquilo que dizemos todos os dias discretamente: queremos ser respeitadas e isso independe da forma como falamos, nos vestimos (ou não nos vestimos), nos relacionamos. Só que muita gente por aí nem sabe o que o verbo respeitar significa. 

Foto da fan page da Marcha das Vadias DF
Aquela velha história de que mulher tem que se dar ao respeito carrega uma carga de machismo e moralismo tão grandes, que eu juro que não entendo como eu não consegui enxergar isso até alguns anos atrás. "Se dar ao respeito" não é respeitar suas escolhas, suas preferências, sua liberdade de ir e vir, de agir como quiser... Via de regra, "se dar ao respeito" é repetido por aí como sinônimo de privação de liberdade individual. Se você usa roupa curta, não se dá ao respeito. Se tem vida sexual ativa, goza e gosta muito, não se dá ao respeito. Se não tá afim de um relacionamento afetivo monogâmico, não se dá ao respeito. Se anda ficando com quem tá afim sem pensar em namoro, não se dá ao respeito. Respeito é uma palavra que precisa ser ressignificada. Respeito, como é repetido por aí, está diretamente ligado à invisibilidade da sexualidade feminina. Eu sou vadia e me dou ao respeito. 

Respeito não se pede, se conquista. Exigimos que nos tratem com respeito, e fazemos isso sem implorar de pernas e bocas fechadas, mas mostrando para a sociedade o quanto a sua noção de respeito é falha. Para isso é preciso união. É como nós gritamos na marcha: "Ah! que é isso! Elas estão organizadas!". E estamos mesmo, cada vez mais. E estamos conseguindo visibilidade também. Um movimento nacional que só em um final de semana reuniu cerca de 10 mil pessoas? Isso não passa despercebido. E com certeza aumentaremos em número e em consciência. Feminismo é um aprendizado constante. 

Foto da fan page da Marcha das Vadias DF 
Entretanto, a luta ainda é necessária. Prova disso é a forma reacionária e moralista como o facebook tem encarado as fotos das mulheres que estavam na marcha com os seios de fora. Que fique claro: não são fotos pornográficas. Seios não servem apenas para entreter os homens, mostrar os seios na marcha é uma atitude política, porque o nosso corpo não é apenas sexual, ele é político. Ele é tão político, que em alguns países as mulheres precisam escondê-lo inteiramente ou podem morrer caso não façam. O facebook parece ignorar essa característica e tem apagado sistematicamente as fotos das moças de topless. Infelizmente, a mesma rede social que apaga fotos não pornográficas de mulheres exigindo uma sociedade mais justa, não apaga imagens racistas, homofóbicas ou misóginas. Ultimamente nem tenho mais usado a opção "denunciar" do Facebook, tenho ido direto ao safernet e à PF denunciar esses conteúdos. Isso posto, é de se perguntar porque a nudez choca mais que a violência cotidiana. 

Foto da jornalista Luka Franca
censurada pelo Facebook
Não é a primeira vez que isso acontece no facebook, em outro momento fotos de mães amamentando foram retiradas arbitrariamente da rede social. MÃES. AMAMENTANDO. O corpo feminino é sempre sexualizado ainda que ele não seja usado para fins sexuais. Me diga, você se alimenta cobrindo o rosto? Porque um bebê precisa se cobrir para se alimentar? Foi necessário protestar com mamaços virtuais para o Facebook permitir fotos de mães amamentando seus filhos. Se você acha que o Brasil é um país libertário em que tudo pode, pense de novo. Não é bem assim, a onda conservadora que assola o país também esbarra nos nossos corpos. por isso é preciso gritar: "Meu corpo, minhas regras!" Fazer ouvir a voz de quem nem sempre, no dia-a-dia pode externar esse sentimento sem receber toda sorte de julgamentos morais. 

Ao contrário dos homens, que ao sentir calor não pensam duas vezes em tirar a camiseta, mulheres não tem esse privilégio. Guess what? Mulher também sente calor. Mas toda a nudez feminina será censurada. Toda nudez será objetificada, será rotulada, será retirada dos perfis do Facebook como se fosse ofensa. E ofende também o fato de que nem sempre os seios exibidos são durinhos, apontem para cima, caibam na mão. Com certeza o peitaço no fim da marcha das vadias de Brasília foi o final perfeito para a marcha de um movimento libertário como o feminista, porque contradiz essa idéia de que a mulher é um pedaço de carne. O nosso corpo não é inerte, não é produto, não é objeto, ele também fala por nós.  Lamentamos profundamente que a maior rede social do mundo tenha uma visão tão tacanha do corpo feminino.

Foto por Leiliane Rebouças

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Manual da Abusada – 1a Edição

Depois das revelações da muito conhecida Xuxa, sobre ter sido abusada até os 13 anos de idade, muita polêmica surgiu. A clássica culpabilização da vítima foi, claro, um dos grandes focos. Mas houve também outros argumentos mais “alternativos”, como o de que ela teria sido pedófila também, por conta do filme que fez com um menino de 13 anos (sendo que na época ela tinha 16), ou aparecendo com roupas curtas nos programas infantis (ah, essas vadias que ficam por aí exibindo seus corpos). Mas principalmente houve quem questionasse a legitimidade do discurso dela, afinal, foi um sensacionalismo tremendo e ela podia estar querendo ibope (porque mulher sempre quer fama, né? Já repararam como ninguém fala que um homem dando uma “declaração x” é por ibope?) e se foi falar, por que só agora? Por que tantos anos depois? Ah, nesse mato tem cachorro!

Diante das milhares de discussões das quais participamos nos últimos dias, ficou clara a existência de um “manual do abusado” cujas regras todo mundo determina e as utiliza como forma de julgar quem se declara vítima de uma determinada situação. São basicamente normas que você, amiga que já teve seu corpo violado, precisa saber e agir de acordo, caso o contrário o abuso que você sofreu não tem valor, nem importância alguma, ok? Se você não seguir ao pé da letra, imediatamente você deixa de ser vítima e passa a ser a culpada da história – afinal, você está infringindo as leis do Manual do Abusado – portanto, não venha choramingar.

Como percebemos que ainda não há uma versão escrita desse manual, resolvemos publicá-lo aqui para vocês, dessa forma tudo fica bem explicadinho e você não corre o risco de sair cometendo gafe por aí, né? Aqui vai então o Manual da Abusada, contendo as principais regras expostas pelos nossos queridos questionadores da legitimidade do discurso de uma mulher estuprada:
  • Se você foi abusada, é proibido seguir a sua vida e ser feliz em qualquer instância.
  • É proibido também ser bem sucedida, especialmente de uma forma que te traga visibilidade midiática.
  • É estritamente proibido utilizar shorts e saias acima do joelho, blusas decotadas, justas, ou qualquer coisa que possa incitar tesão em um homem.
  • É proibido apresentar-se nua.
  • É absolutamente proibido usar essa nudez de forma lucrativa, tal como posar para uma revista masculina.
  • No mesmo tópico das duas últimas regras, é proibido gravar filmes com cenas de nudez.
  • Confira na distribuidora do Manual do Abuso mais próxima a você qual o prazo de validade para a sua denúncia, caso o contrário ele pode expirar e você acabar falando sobre o assunto muito tempo depois do que as outras pessoas acham apropriado.
  • Ao tocar no tema, lembre-se de estar em um ambiente privado e com a atenção do mínimo de pessoas possível.
  • Nunca, jamais, sob hipótese alguma faça sua denúncia em um meio de comunicação midiático, muito menos em horário nobre.
  • Ao falar sobre o abuso, é proibido chorar.
  • E, por fim, é proibido ser envolvida em outros contextos de abuso ao longo da sua vida.
    Fique atenta ao Manual da Abusada, cara amiga que teve seu direito a decidir sobre próprio corpo brutalmente desrespeitado. O não cumprimento de suas regras leva a gravíssimas demonstrações de intolerância dos preconceituosos de plantão.


Ps. Para os que não conseguiram interpretar ou não estão familiarizados com a linha ideológica do blog, deixamos claro que o texto é inteiramente irônico. Toda o nosso apoio e solidariedade à Xuxa e às milhares de anônimas abusadas, silenciadas diariamente pelo grito do desmerecimento alheio.

terça-feira, 22 de maio de 2012

"Ser um homem feminino, não fere o meu lado masculino" (Pepeu Gomes)


Você aí, homem, alguma vez já teve cerceada a sua liberdade de agir? aparentemente, não, não é? Mas teve sim. O machismo é delimitador não apenas para mulheres. Por mais que você seja branco, heterossexual e rico (o grupo mais privilegiado da nossa sociedade), o machismo atinge você também. Porque embora ele coloque a mulher em posição de submissão e o homem, de dominação (e que fique claro: não há comparação possível em relação às desvantagens do machismo para as mulheres) ele também interfere no comportamento masculino. Ou você nunca ouviu a expressão "homem que é homem ____________" (complete com qualquer idiotice aqui)? Homem que é homem não chora, homem que é homem faz tarefas domésticas, homem que é homem não leva desaforo para casa, homem que é homem não sente, homem que é homem provavelmente também não pensa e jamais questiona. 

Camiseta polêmica do atlético
mineiro em tom rosa clarinho
A lavagem cerebral que forma os machinhos de plantão começa ainda na infância: mesmo antes de nascer, o quarto da criança pode ser de qualquer cor, menos rosa. Porque homem não veste rosa. Nem a parede do quarto de um menino veste rosa. Digamos que esse menino agora tenha uns dois anos. Ele brinca, cai, se machuca e chora. A primeira reação do pai (e muitas vezes da mãe também) é incutir na cabeça da criança:  "homem não chora". E quando essa criança estiver socializando com outras, certamente virá o "homem não brinca de boneca" ou ainda "homem não brinca com menina". E qualquer comportamento no sentido oposto é caracterizado como "coisa de mulherzinha". A nossa sociedade é tão misógina que "ser homem" é uma grande qualidade e "ser mulherzinha" é um defeito.

Porque a amizade masculina não
pode ter demonstração de afeto?
beijo, abraço, mão dada?
Mais tarde na adolescência, começa o momento de provar que é machão e, infelizmente, esse momento, não termina jamais. O tal do "homem que é homem", "seja homem", "aja como um homem", os acompanha por toda a vida. E a isso é dado o nome de machismo. É o machismo (e não o feminismo) que padroniza comportamentos. E também é o machismo que faz com que na eventualidade de uma separação, a mulher tenha a guarda dos filhos. Isso porque, segundo a nossa lógica machista, a mulher é que possui o papel natural de mãe, de cuidadora. Aos homens o mundo, às mulheres o lar.

Meme machista/ homofóbico
Homens botam sua masculinidade num pedestal tão alto que passam a vida toda tentando alcançar. Rapazes, fica a dica: esqueçam a masculinidade, sejam apenas homens. Se homens abrissem mão dos privilégios que o machismo oferece, veriam que o feminismo traz a vantagem da liberdade. No feminismo, todos os gêneros tem a liberdade de agir sobre as suas próprias vidas. Assim como o feminismo não afirma que a mulher que é mãe, que trabalha em casa, que cozinha é menos mulher (ou mais mulher), ele também afirma que homens não são menos homens (ou mais homens) por chorar, brincar de boneca, usar rosa, cumprimentar amigos com beijos, ser amigo de mulheres, não entender de futebol, não gostar de cerveja, não saber dirigir, não trabalhar fora de casa, cuidar dos filhos, varrer a casa, enfim, por viver.

É importante salientar, porém, que assim como eu, branca, apóio os movimentos que buscam igualdade racial mas entendo que essa luta é dos negros, é necessário que homens sejam feministas, apóiem as mulheres feministas, mas entendam que o seu papel é coadjuvante. A luta contra a opressão masculina é da sociedade mas é principalmente das mulheres. Questionem seus papéis de gênero enfiados goela abaixo pela sociedade patriarcal, se não o fizerem por empatia às mulheres, façam porque eles também restringem o seu comportamento, a sua liberdade.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Guestpost: "A arma mais poderosa na mão do opressor é a mente dos oprimidos." (Steve Biko)


Nesse mês em que comemoramos os 124 anos da tardia abolição da escravatura, publicamos com imensa alegria mais um texto tratando da questão racial. Dessa vez escrito pela Cíntia Farias, uma querida amiga e leitora do Ativismo de Sofá. O assunto são as cotas raciais, aprovadas em recente julgamento do STF. A quem interessar, o julgamento pode ser visto na íntegra aqui.

"A arma mais poderosa na mão do opressor é a mente dos oprimidos." (Steve Biko)

Dia desses eu estava almoçando na casa de familiares quando alguém comentou ter visto uma pesquisa sobre a maioria da população carcerária no Brasil ser formada de negros. Logo destaquei que aquela maioria não se repetia nas universidades. E todos concordaram que aquela era uma constatação escandalosa. Muito segura, eu ironizei: "E depois dizem que as cotas raciais nas universidades  são um absurdo!", e, para o meu espanto, ouvi a seguinte resposta: "Mas de fato é! Isso é atestar que o negro não tem capacidade de passar no vestibular por seus próprios méritos... Esse é o verdadeiro racismo!", disse minha tia, indignada. E ela prosseguiu: "Quando eu fiz faculdade eu passei sem precisar de nada disso.". "E quantos negros tinham por lá?" eu perguntei. "Só eu." foi a resposta, que, por mais esperada que fosse, não deixava de me causar perplexidade.
  
Ministro Fux, durante o julgamento da ADPF 186
Confrontar o dado de que apenas 1% do alunado de uma universidade é formado por negros, como era o caso da UnB até pouco tempo atrás, e não ser conduzido à imediata conclusão de que algo está muito errado mostra que a exclusão produzida pelo racismo no Brasil atua tanto objetiva quanto subjetivamente. Se por um lado somos alijados das salas de aula do ensino superior, dos cargos públicos de destaque, das grandes corporações, dos anúncios de TV e assim por diante, de outro, somos levados a uma grave falha de percepção da estrutura excludente em que estamos inseridos. É como se nos dissessem o tempo inteiro "tudo está em seu devido lugar".

Sempre que se fala em cotas raciais, somos expostos aos inacreditáveis argumentos de cunho genético - vejam que, geneticamente falando, Neguinho da Beija-Flor é 70% eurodescendente Devíamos chamá-lo de "Europeuzinho da Beija-Flor", por mais adequado, não acham? Também não se pode ignorar a clássica afirmação de que "somos todos mestiços" afinal esta é a terra da miscigenação. Portanto, se todos temos a mesma origem, não há lugar para um sistema que promova um grupo em detrimento de outros, certo?  Errado.
Atriz na novela "Duas Caras" da Rede
Globo submetendo-se à tortura ideológica
Se biologicamente o conceito de raça não encontra respaldo, é socialmente que ele mostra toda a sua força.  A política de cotas não cria uma situação de segregação racial, porque esta já está cansada de existir.

Também muito comum é condenar a reserva de vagas nas universidades pelo critério racial ao fundamento de que ela apenas mascara "o problema real", qual seja, a falta de investimento na educação básica. O que os defensores deste pensamento talvez ignorem é que 1) não há apenas um "problema real";  2) ações afirmativas são apenas uma das diversas políticas que podem (e devem) ser implementadas pelo Estado. Elas são, por definição, medidas temporárias direcionadas a grupos específicos de indivíduos, com o fito de eliminar situações de desigualdade construídas historicamente. Portanto, as cotas raciais em nada prejudicam ou afastam o dever do Estado com a educação, ao contrário, prestigiam-no.

Assim é que o discurso acerca de um mundo meritocrático em que raças não existem ou não fazem diferença serve somente ao fortalecimento da estrutura de desigualdade. Fazer coro com essas afirmações significa, na prática, aliar-se à hegemonia racista.

*Escrito por Cintia Farias, 25 anos, mulher, negra, nordestina e atenta.


terça-feira, 15 de maio de 2012

Regra número 1 do racismo: Você não fala sobre o racismo.


Elizabeth Eckford, primeira negra a ter autorização de entrar numa universidade americana. (1957). Ela teve que ser protegida  por uma escolta militar tamanha a revolta dos demais estudantes. 
Quando eu estava no ensino médio, minha sala do terceirão era composta por aproximadamente 300 alunos (pois é!). Um dia, um professor de sociologia que eu admirava muito entrou na sala e perguntou “Quem aqui é a favor de cotas raciais?” ninguém ergueu a mão. Absolutamente ninguém. Eu fui uma das pessoas que não ergueu a mão. Na hora da pergunta fiquei super em dúvida. Eu lembro de ter virado para meu colega e dito “não tenho uma opinião formada”. E não tinha mesmo, não tinha porque era totalmente ignorante no assunto. Tudo o que eu sabia é que era algo que contemplava o próprio racismo, que atestava a incompetência e que dividia a sociedade. Isso era absolutamente tudo o que eu havia ouvido até então sobre as cotas raciais. Eu lembro que a gente enviava perguntinhas por bilhetes para os professores e vez ou outra eu perguntava sobre as cotas raciais. Afinal, o governo não ia colocar algo ali simplesmente para dizer que uma pessoa negra não tem capacidade de passar no vestibular, né? Devia ter um argumento, devia ter um outro lado. Mas ninguém me falava. Nenhum professor respondeu nada além disso para as minhas perguntas. Nem para mim. Nem para nenhuma das outras quase trezentas pessoas daquela sala. Todas brancas. Ao ver a resposta da sala esse meu professor disse “vou refazer a pergunta, porque uma pessoa esqueceu de levantar a mão.” Ele refez a pergunta e levantou a própria mão. Esse professor foi a primeira pessoa que começou a elucidar para mim a questão das cotas. Ele falou rapidamente, pouca coisa, mas lembro que se posicionou no sentido de compreender que aquilo era “uma tentativa”, em suas palavras. A partir daí é que eu comecei a sair da nebulosidade que ronda a questão das cotas e começar a compreende-las. Mas foi muito tempo depois que a questão começou a ser esclarecida para mim. Com exceção desse professor, no meu colégio classe média ninguém me falou. Ninguém me explicou que as cotas geram diversidade étnica nos mais diversos setores, ninguém me disse que o objetivo das cotas é providenciar um futuro no qual não seja tão raro ver um negro professor e uma advogada de cabelo Black Power. Ninguém me possibilitou questionar por qual motivo durante a minha vida toda em escola particular eu nunca estive na mesma sala de aula que uma pessoa negra. O argumento elitista branco que sempre me foi passado foi esse simplismo raso de “racismo às avessas”, que se nega a buscar a raiz, o cerne da questão. O branco não fala sobre as cotas, porque é mais fácil opinar dessa maneira superficial a buscar explicar verdadeiramente o sentido delas e seus objetivos. Simplesmente porque isso seria admitir que vivemos em um país racista e que, provavelmente, você é uma dessas pessoas. Na superficialidade é fácil declarar-se contrário e, óbvio, doutrinar em causa própria, sem ter que encarar a profundidade do preconceito. É muito difícil explicar as cotas, porque isso significaria admiti-las e compreende-las. Onde ficaria então o nosso privilégio?

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Dialética da Popozuda: Linguagem, Poder, Sexualidade


"Então mama, pega no meu grelo e mama
Me chama de piranha na cama
Minha xota quer gozar, quero dar, quero te dar"


Aviso axs navegantes: este é um post pró-Valesca Popozuda. Se você é do tipo que não suporta a moça porque _______ (insira aqui algum juízo de valor), eu desaconselho fortemente a leitura deste texto. Ou não, já que o debate saudável é sempre bem-vindo :-)


Já perdi a conta das vezes que li e ouvi coisas do tipo: “as mulheres lutaram tanto pela liberdade e agora vem um lixo humano desses e faz uma COISA assim” (tudo sic, com grifos apavorados meus). E a polêmica da vez ficou por conta do novo hit da Valesca, Mama, que conta com mais de 1 milhão de visualizações no iutúbi (trata-se de um pagode “proibidão” feito em parceria com Mr. Catra). 


Pois bem. Não demorou muito e vimos o fatídico comentário circulando nas redes sociais, todo envergonhadinho da “liberdade” concedida às mulheres. E sinceramente? Esse comentário e suas variantes só evidenciam o quanto a luta ainda é necessária. Dá muita preguiça de explicar, mas não tem outro jeito: em uma sociedade patriarcal como a nossa, a noção de moralidade também se dá em termos de opressão. E não é preciso uma bola de cristal para adivinhar que, ainda que a sociedade esteja em pleno avanço e as mulheres tenham conquistado um espaço público cada vez maior, ainda falta muito para que a sexualidade feminina não assuste.

Pensemos um pouco na sexualidade humana como socialmente construída. Por muito tempo, o silêncio a respeito era a palavra de ordem. Foi assim até que um dia os cientistas, do alto de seus aventais, resolveram dar caráter acadêmico a tudo o que uma outra galera, a de batinas, dizia que era “normal”. Estava posta a Scientia Sexualis que, segundo Foucault, foi a maneira ocidental de discursivizar (e por que não controlar?) o sexo. Falar de sexo passou a ser necessário e até desejável. Porém, a sexualidade feminina continuou a ser paulatinamente ignorada, tratada sempre como mera coadjuvante no processo de dar prazer ao homem. 

E por que eu tô fazendo toda essa digressão? Pra explicar que não, você não é obrigadx a gostar da Valesca. Você não precisa adicionar o funk à sua playlist. Mas não custa parar para refletir que, para além da dicotomia liberdade x libertinagem, é preciso pensar nos processos de poder que normatizam a gente, inclusive sexualmente. E isso inclui uma séria análise de quais discursos estamos defendendo. Porque, a partir do momento em que a nós, meros mortais, foi dado o direito de colocar o sexo em palavras, algum poder nos foi sim conferido. E uma Valesca falando abertamente de sexo, de forma crua e não-floreada, está se utilizando desse poder e mostrando à sociedade que uma mulher também pode sentir prazer.

Com tudo isso, chegamos noutro ponto que precisa ser discutido aqui: a questão social que envolve as músicas da Valesca, incluindo a música Mama. Há um incômodo com o fato de a Valesca se colocar como uma mulher que tem vida sexual ativa e diz isso abertamente? Sim. Porém, a bronca toda não se restringe a isso. O que incomodou e ultrajou até a galere de bom nível intelectual foi mesmo a linguagem utilizada. Porque a linguagem é popular. E a elite tem pavor de tudo que considera “vulgar”, especialmente em se tratando de sexo.

Dessa forma, se considerarmos todo o processo que levou o ocidentinho a transitar de uma situação de total proibição de verbalizar o sexo, para a total transformação deste em discurso - primeiramente através das confissões dadas aos padres e mais adiante em forma de “receitas” dadas por especialistas para “melhorar” e, porque não, regular o ato sexual - veremos que ainda estamos muito presos e guess what? A prisão se dá, essencialmente, pela linguagem. Em outras palavras, o que ficou muito evidente nessa discussão toda é que a elite ainda sente a necessidade de sutileza, de trejeitos para falar de sexo, se negando a aceitar que tem cu, buceta e pau tanto quanto a classe popular. O sexo explícito dessa forma dá a impressão de algo sujo, bem distante da realidade de uma elite que quer fazer sexo com álcool gel. 


Portanto, Valesca e suas variantes são uma afronta à lógica vigente, que determina o que tem ou não valor artístico, segundo sua própria visão do que seria adequado a cada gênero. Lembremos que os Mamonas Assassinas falaram coisas como “sabão crucru, não deixa os cabelos do saco enrolar com o do cu” e não foram julgados. A Valesca fala da própria sexualidade utilizando palavras similares e é julgada. Assim como uma Rihanna que toca a própria vagina em seus clipes e, ao contrário do que ocorria com um Michael Jackson ou Axl Rose, é execrada pelos moralistas de plantão. A própria Letícia (cem homens) tem um exército de trolls prontos a odiá-la pelo simples fato de ter o controle da própria sexualidade e verbalizar isso. 

E o debate não se esgota aqui. Ainda há muito o que ser falado. Há, inclusive, que se pensar no fato de a Valesca ser ou não feminista (já adiantamos que sim, ela é feminista, e isso independe dela se auto-intitular, ter consciência ou não disso). Porém, como o post está assaz extenso, deixemos o debate feminista para outra feita. Beijos Valescanos! 

* Post escrito por Flávia Simas com colaboração de Paula Mariá, Gizelli, Elisa e Thaís Campolina. 

domingo, 13 de maio de 2012

O terrorismo da gravidez


O dia mais assustador da minha vida foi assim: Era uma tarde de verão, eu havia faltado no meu novo – e maravilhoso – emprego por ter passado mal, algo que parecia ser meio enxaqueca, meio crise de labirintite, meio mal estar, fraqueza, falta de ferro, enfim, estava tudo meio esquisito no meu corpo. Eu fui pegar os exames que havia feito no começo do dia. Era bem pertinho, fui então a pé, já pensando em depois de conferi-los passar na doceria para comer um pedaço de bolo. Eu fui andando na rua, passando exame por exame eu cheguei a causa de meu mal-estar: Beta HCG quantitativo.

Eu estava grávida. E aí meu mundo caiu. Me escorei em um prédio e me agachei no chão de uma das avenidas mais movimentadas da cidade. Chorando em soluços desesperadamente. Ali senti minha vida acabar, pensei em todo o horror que uma gravidez inesperada representa, pensei em todos os meus sonhos sendo destruídos, na minha vida sendo esmagada. Tudo o que eu era foi quebrado de repente com o resultado de um exame.

Mas o estranho nessa história é a verdade é que eu sempre quis ser mãe. Pensava em adotar, sozinha, depois dos 30, mas de qualquer forma, queria ser mãe e nunca escondi isso de ninguém. Minha imagem de um futuro maravilhoso sempre teve uma criança que eu iria buscar na escola de bicicleta e que me ajudaria a pintar uma parede da casa enquanto ouvíamos Ceumar. Mas não aconteceu assim. Aconteceu que eu engravidei aos 20 anos e então tudo parecia perdido.

Eu me descobri grávida na sexta-feira que antecedia o dia das mães. No domingo saímos para jantar eu, meu irmão e minha mãe, como forma de comemoração, claro. O garçom veio perguntar o que iríamos beber e eu me lembro exatamente da resposta que pensei: “Eu ia pedir vinho, mas não to podendo beber, por causa da gravidez”. Era assim, desse jeito leve e repentino que eu queria contar para eles. Esse foi o exato momento em que eu senti qual era meu verdadeiro desejo, foi minha epifania, na qual eu simplesmente soube que queria aquela criança. Mas eu me calei.

Imaginei mentalmente toda a cena: Eles com cara de surpresa, meu irmão tirando sarro da minha cara e dizendo “bem-vinda ao clube” (ele teve filho aos 19), minha mãe me abraçando e dizendo “parabéns”, tudo tão bonito. Mas então travei. Não era aquilo que ia acontecer, não podia ser. Eles iam na real me detestar e dizer que eu estraguei a minha vida. Não é isso mesmo que uma gravidez-surpresa representa?

Nós, mulheres jovens e solteiras somos aterrorizadas constantemente pelo fantasma da gravidez. A carga de negatividade colocada sobre ela é muito grande. Parece que uma gestação repentina é simplesmente o pior que pode acontecer a uma família. Sentimos que dessa forma seremos uma vergonha, é quase que uma culpa por estar “desonrando” nossos pais (quão ultrapassado é esse conceito se o colocarmos dessa forma hein?).

A imagem que rondava a minha cabeça era terrível. A de uma adolescente, irresponsável, desinformada, descuidada e sem juízo que engravidou antes da hora. Eu não podia ser essa adolescente. Qual é, eu fazia faculdade, era inteligente, ativista, trabalhava e... engravidei de repente. Essa imagem da gravidez repentina tão negativa está introjetada em nós de tal forma que nos esquecemos que, bem, métodos anticoncepcionais falham, deslizes acontecem e guess what? Pode acontecer com qualquer uma a qualquer momento.

Passei então semanas chorando dentro de casa, quieta, sem explicar para ninguém o que estava acontecendo. Sentindo que a minha vida havia acabado e que eu nunca voltaria a ser quem eu era – tendo ou não o bebê – estava tudo perdido. Eu, que antes disso nunca havia escondido nada da minha mãe, depois de acabar com todas as desculpas possíveis de serem contadas quando ela me perguntava qual era o problema, em algum momento, a beira da explosão, precisava desabafar.

Nós sentamos e eu disse: “Tá preparada?”, ela me respondeu que sim. Quase sem conseguir falar no meio de tanto choro contei que estava grávida, que havia sido uma burra (pois é! Eu achava que a culpa era só minha e que só mulher burra e desatenta engravidava), mas que daria um jeito nisso, que não ia ter o bebê, que não ia estragar a minha vida, nem a vida dela, falei, falei, falei. Ao final de todo o meu desabafo, traçamos o seguinte diálogo:

- Mas você já não tinha vontade de ser mãe?
- Tinha, mas não agora. Queria depois dos trinta, com tudo diferente.
- Eu entendo, mas ué se esse já está aí, por que a gente não aproveita fica com ele?

Calei.

- Minha filha, eu vou te apoiar integralmente.

Segui calada.

E foi assim, num passe de mágica que o meu drama acabou. Toda a tristeza, a angústia o desespero foi repentinamente tirado de mim com a mão. O apoio da minha mãe em duas frases de repente simplificou a situação e transformou aquele monstro que o meu imaginário tinha criado em um gatinho. Tá, eu teria um bebê mais cedo do que esperava. E daí? As coisas quase nunca acontecem do jeito que a gente espera mesmo.

Nós não somos nossa capacidade reprodutiva, muito menos o que escolhemos fazer com ela. Esse é um assunto que cabe apenas a nós. Ter filho aos 15, 30, 50 ou nunca é apenas uma das várias decisões de nossa vida e não deve jamais ser algo usado contra nós. Eu achava que engravidar de repente fazia de mim menos. Menos responsável, menos digna, menos capaz, menos notável. Mas isso tudo é mentira.

Hoje eu tenho a minha filha e tudo foi do jeitinho que eu esperava. Eu não tenho 30 anos, não temos nossa casinha, não pintamos as paredes, mas a sensação! A sensação de liberdade, felicidade, vida que eu imaginava que teria... é exatamente como eu pensava. De fato, o meu futuro ideal chegou, menos planejado e muito mais cedo, mas chegou.

A minha gravidez não diminuiu em nada quem eu era antes dela, tampouco transformou minha vida, quem eu sou ou qualquer coisa. Somou. Sempre fui inteira, sempre fui completa. Realizar meu desejo íntimo - e totalmente particular - de ser mãe não me completa, me transborda. 

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Um ano de união homoafetiva: O mundo não acabou!


Recordar é viver. Ou não.


No dia 05 de maio de 2011, pouco mais de um ano atrás, o STF reconheceu a União Homoafetiva. Me recordo perfeitamente (até porque não me deixam esquecer), dos argumentos contra a aprovação da ADI 4277 e ADPF 132, que versavam sobre os direitos dos homossexuais em ter reconhecida a união homoafetiva. Depois de um ano decorrido da decisão que elevou os homossexuais da categoria de cidadãos de segunda categoria à um patamar mais próximo ao de um cidadão comum, vamos relembrar as verdades absolutas ditas pelos setores mais reacionários e preconceituosos da nossa sociedade?

"A união homoafetiva vai acabar com a família tradicional"
Realmente, um ano depois tudo o que eu vejo é união homoafetiva. As outras famílias foram dizimadas, queimadas vivas, evaporaram, enviadas para marte com bilhete apenas de ida. Só que não. Aliás, queria saber se as pessoas que pensavam assim se "tornaram" homossexuais e não pretendem mais formar uma família tradicional. Sim, porque do modo como falavam parecia que o simples reconhecimento da união homoafetiva faria com que todas as pessoas heterossexuais mudassem de orientação sexual, né? E aí, você que tanto repetiu esse argumento... agora é homossexual? Não? Não me diga. Pois é. Se você é contra a união homoafetiva, não tenha uma, mas não cerceie a liberdade e a felicidade das outras pessoas.

"Querem implantar a ditadura gayzista"
É sério gente, não riam (mentira, podem rir!)! As pessoas realmente acharam que conceder um direito fundamental à um grupo marginalizado o tornaria poderoso o suficiente para "implantar a ditadura gayzista". Estou esperando até agora para me afiliar no partido gay. 'Cordei, cadê PG (Partido Gayzista)?

"Não é natural, um casal do mesmo sexo não pode gerar filhos, vai acabar com a sociedade"
Eu sou heterossexual e não tenho a intenção de gerar filhos, beijos! E também tem muita criança por aí abandonada pelos casais heterossexuais que poderiam ganhar um lar homoafetivo amoroso. 

"Crianças educadas por casais homoafetivos teriam grande inclinação a 'se tornarem'  (sic) homossexuais"
Espera aí, então, segundo essa lógica, casais heterossexuais não geram ou educam filhos homossexuais? Os gays nascem de chocadeira? Ah, vá...

"A adoção de crianças por casais homoafetivos priva as crianças do amor de uma mãe"
A adoção de crianças por casais homoafetivos dá à criança o amor que foi negado de alguma forma (voluntária ou involuntariamente). A criança que é adotada receberá o amor que não recebeu antes. Se existisse uma lógica para o amor dispensado, não haveriam ótimos pais solteiros, por exemplo. Sem contar que na eventualidade da união entre duas lésbicas, a criança ganha não uma, mas duas mães!

E, é claro, o argumento final: "Deus criou o homem e a mulher à sua imagem e semelhança e os destinou a ser uma só carne, o matrimônio NATURAL é entre homem e mulher"
Todo mundo tem direito a ser religioso, se assim preferir. Porém, seu deus não governa o meu Estado, QUE É LAICO. Lide com isso. Acredite no que quiser e me deixe curtir a minha vida em paz, cada um no seu quadrado, beleza?


Isso tudo posto, agora é o momento de voltar os olhos e a atenção para os próximos movimentos em busca da igualdade de direitos dos homossexuais. O deputado Jean Wyllys apresentou ao congresso uma PEC, proposta de emenda constitucional, para garantir o direito ao casamento civil a todas as pessoas, não importando a orientação sexual. Participe do abaixo assinado pelo casamento igualitário.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Guestpost: Coletor menstrual: prós e contras

Esse texto faz parte da Blogagem Coletiva 2@ Vermelha, um evento que surgiu com o objetivo de nos colocar para falar sobre menstruação, esse tema que pode ser símbolo, tabu, orgulho, vergonha, dor, alegria e muitas outras coisas dependendo da forma como é vivido por cada uma de nós. A leitora Natália Schmidt preparou um guestpost super bacana para nós contando a sua experiência com o coletor menstrual. Afinal, falar de menstruação é também questionar tudo o que está ligado a ela, desde a TPM até os nossos absorventes.

Coletor menstrual, para quem não conhece, é um recipiente (um “copinho”) reutilizável de material maleável (geralmente silicone) que serve para colher a menstruação. Funciona assim: você coloca no canal vaginal e ele se prende por meio de pressão nas paredes vaginais. Depois, é só retirar, esvaziar no vaso sanitário ou na pia (ou ainda, se quiser, diluir o sangue na água e regar as plantas !) e colocar de novo! Depois do ciclo menstrual, deve ser esterilizado e ele estará pronto para ser usado novamente. Hoje, existem várias marcas que comercializam (destaque para MissCup, que é a única marca brasileira), mas até um tempo atrás não era assim, e além de tudo, era difícil de se achar.

 Há 2 anos, fiquei sabendo do coletor menstrual pela minha irmã, li sobre e achei super interessante o fato de ser reutilizável e portanto ecológico (sempre me incomodei pela quantidade de absorventes que vai para o lixo). Além disso, é livre de pesticidas e outros produtos químicos dos absorventes tradicionais. Decidi experimentar. Na primeira menstruação, achei um pouco desconfortável na hora de inserir. Para colocar: a gente dobra o “copinho” e coloca, chegando na posição correta, é só soltar que ele desdobra e fica preso por pressão na parede vaginal. Por causa da pressão, senti um pouco de dor. Para tirar, mesma coisa. E vazava, bastante. Além disso, me incomodava com o “cabinho” do coletor em alguns movimentos. Fui reclamar com a minha irmã e me surpreendi quando ela me disse que para ela, tinha sido ótimo, e ela amou.
            Pesquisando, descobri que só vaza quando colocado da maneira errada. E que é preciso praticar até não vazar. Além disso, lendo no manual de instruções, foi muito alívio quando descobri que pode (e deve, se te incomoda) cortar o “cabinho” do coletor. O “cabinho” está lá para facilitar o manuseio, para dar mais segurança para quem ainda está insegura, mas se incomoda, deve ser cortado. Decidi então dar uma segunda chance.
            Na segunda vez, acertei o pé. Consegui colocar direito, nos primeiro dias, vazou um pouquinho, e depois não vazou mais. E o corte do “cabinho” foi realmente um alívio.
            Depois disso, foi “amor a segunda vista”! Sou assumidamente apaixonada pelo meu coletor menstrual, porque conforme o passar do tempo, eu fui me adaptando melhor, e percebi que ele foi uma das melhores invenções dos últimos tempos... rs
            Entre os pontos positivos, o fato dele ser muito mais ecológico que os absorventes tradicionais ganha destaque. Mas se fosse só por esse ponto, nós poderíamos adotar os absorventes de pano, não é mesmo ? Acontece que o coletor menstrual é também muitíssimo confortável. Depois do período de adaptação – e salvo raras exceções -, você não vai nem sentir mais, garanto  (as vezes, eu esqueço que estou menstruada). Pode ser praticado qualquer atividade física durante o uso, inclusive nadar. Você pode ficar, teoricamente, de 4 a 8 horas sem esvaziar, mas eu já cheguei a ficar 12 (!) horas tranquilamente (depende do fluxo). Além disso, é mais econômico. O custo de um coletor menstrual da marca Misscup, segundo o site, é de R$ 75,00, e pode durar de 2 a 10 anos (depende de alguns fatores, como a frequência de uso). Podemos gastar em torno de R$ 200,00 em absorventes descartáveis por ano!
            Os outros pontos positivos menos óbvios, mas não menos importantes: nessa cultura de desvalorização de tudo que diz respeito ao corpo das mulheres, e inclusive – e especialmente - a menstruação, utilizar o coletor menstrual é uma ótima maneira de quebrar mitos e conhecer melhor o seu ciclo. Eu, pessoalmente, amo menstruar, acho lindo, e o coletor menstrual me permitiu um contato muito mais profundo com meu ciclo. É muito legal ver a quantidade do fluxo – e perceber que não é uma hemorragia descontrolada, afinal -, perceber que aquele odor desagradável e forte da menstruação nada mais é que o absorvente comum abafando o local, entre outras coisas. Aliás, o coletor menstrual é também mais higiênico, menos propenso a desenvolvimento de alergias e de algumas pragas, como a candidíase. Além do contato com o próprio ciclo, o manuseio do coletor estimula o conhecimento do próprio corpo – o que infelizmente, é tão negligenciado na nossa sociedade.
            O único ponto negativo de acordo com a minha experiência é que esvaziar em banheiros públicos pode ser uma experiência não muito bacana. Eu sou desastrada por natureza, e dependendo da situação do banheiro público, eu não consigo retirar, esvaziar e colocar novamente sem me sujar. Para tirar e colocar, ainda sinto cólica por causa da pressão, mas não é nada que me incomode tanto.
            Enfim, sou uma mulher assumidamente apaixonada pelo meu coletor!
            Eu uso da marca Mooncup. No site das marcas Mooncup e Misscup tem mais informações e depoimentos. E no site do MissCup também tem uma pesquisa legal sobre a opinião das consumidoras. Vale a pena pesquisar e experimentar! :-)

Observaçãonem toda mulher menstrua e nem toda pessoa que menstrua é mulher.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

"Não está faltando babá, está faltando escravo"

*Post de autoria de Gizelli Sousa e colaboração de Thaís Campolina

A frase que dá título a esse texto é do Sindicato da categoria. Ontem, Um dia após o Dia do Trabalhador foi veiculada uma reportagem no portal do G1 cuja manchete era “Na caça a babás, mães de SP usam psicóloga 'head hunter' e Facebook”. A reportagem se assemelha a uma piada de mau gosto. Em um trecho, que merece destaque, uma das mães/patroas afirma: "O nível cultural delas melhorou demais, e a informação corre muito rápido. Elas agora são politizadas, descobriram o que é ter vida pessoal. Isso para nós, patroas, é pior".


Essa afirmação e outras tantas que demonstram descaso pelos direitos trabalhistas das babás, de conteúdo elitista e que consideram como empregado bom é aquele que vive em função do patrão e não tem vida pessoal, vieram acompanhadas de nome, sobrenome e profissão. Essas pessoas não tem qualquer vergonha de desvalorizar o trabalho alheio com base nos próprios preconceitos. 

Ao longo da reportagem, percebe-se que o cuidado dos filhos é visto como uma responsabilidade da mãe, não se fala em nenhum momento sobre os pais. A função de "cuidar" é considerada inerente à "natureza feminina". Por isso além de não se falar em responsabilidade paterna, profissões como a de babá em geral são marcadas pela divisão sexual do trabalho. São quase que unicamente femininas. 

O trabalho exclusivamente feminino é considerado de segunda classe, estão aí as empregadas domésticas para comprovar. Essa categoria profissional é a mais vilipendiada de todas. As domésticas não dispõem de limitação de jornada de trabalho, fundo de garantia por tempo de serviço (que fica a cargo do empregador), seguro desemprego ou benefício por acidente de trabalho. Está óbvio que esse fato beneficia as classes mais abastadas da sociedade e é reminiscência dos períodos de escravidão. 


Não obstante, as profissões de babá e de empregada doméstica são cercadas de preconceitos classicistas e protestos de negação de direitos trabalhistas. E ainda é matéria de um dos maiores portais de notícia do país o fato da profissão de babá se valorizar. Isso porque em geral os trabalhos ditos femininos são desvalorizados. Por exemplo, ainda hoje, não existe a profissão "dona-de-casa". A mulher que trabalha em casa em casa enquanto o marido trabalho fora sofre julgamento de valor. Como se o trabalho da dona de casa não fosse trabalho meramente porque não é remunerado. Essa característica o torna invisível e privado.


Mesmo o trabalho feminino que não é marcado pela divisão sexual é mal remunerado se comparados aos salários pagos aos homens para desempenhar a mesma função. Na sociedade em que vivemos, o dinheiro é a medida do poder. Não garantir às mulheres as mesmas condições de trabalho e remuneração que os homens é retirar-lhes das mãos qualquer possibilidade de empoderamento.