segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Sufocamento materno e sexual

A princípio quero deixar claro que falo de maternidade por ponto de vista particular. Mas acredito que esse texto se encaixa na questão da parentagem em geral: pais, mães, parturientes ou não, enfim, todo tipo de família, nas relações que criam ao longo da convivência com xs filhxs.

Ser mãe é um tesão. Começo com essa frase porque é exatamente como tenho me sentido diante da maternidade. Com aquela excitação de quem está conhecendo partes de si mesmx até então, sabe? Enfim, um tesão.

Diante de uma etapa complicada, não planejada e revolucionária da minha vida tenho procurado muita coisa para me informar. Artigos, livros, isso e aquilo que me ajudem a compreender o assunto. Dentro disso descobri uma corrente muito forte de “ensinamento” e disciplina da maternidade e da criação dos filhos. Tolerância ao choro do bebê, necessidade de “independência” (sim, independência de um bebê, pasmem!), desapego e castigo são alguns dos pontos fortemente estimulados por esse segmento.

Nossa sociedade, apesar de apontar a maternidade como algo praticamente obrigatório, não nos permite o exercício pleno desta. A “civilização” não permite que nos vejamos como mamíferas, não podemos agir como os animais que verdadeiramente somos e, por consequência, não aproveitamos a maternidade da forma que desejamos. Afinal, prega o grupo dos civilizados que tal fase deve vir de maneira planejada, racional, e serve para nos “criar juízo”, não nos deixar mais loucas.

A repressão ao sentimento materno é muito parecida com o controle da sexualidade feminina. Querem nos dizer exatamente o que fazer e como fazer. Afinal, ninguém nega que se deva fazer sexo, mas só depois do terceiro encontro, só entre duas pessoas, só dentro do quarto, só em tais posições, só com pessoas do “sexo oposto” (e ai de quem não se enquadrar nas categorias de sexo predefinidas)... Enfim, o exercício da nossa sexualidade é lotado de regras e comportamentos considerados adequados. Não podemos dar ouvidos aos nossos desejos mais secretos, nossos instintos, às vontades particulares de nosso paladar e tato ou somos consideradas imorais. Ouvir mais nosso corpo e mente do que aos outros é um ato pecaminoso e socialmente inaceitável.

Por conta disso nem nós mesmos conhecemos e desenvolvemos nossas reais vontades. A sexualidade é sufocada a tal nível que não naturalizamos nossos desejos. Por mais que existam, sempre serão vistos por nós como errados. O mesmo acontece no exercício da maternidade. A forma de ser mãe está cercada de regras, de maneira que não nos permitimos no contato com a cria desenvolver nossa sensitividade e o retorno ao nosso estado mais primitivo que nos colocaria em um constante estado de comunicação não-verbal com nossxs filhxs.

Somos ensinadas a não aceitar o choro dx nossx bebê, a focar em sua disciplina. Uma mãe não deve pegar a cria ao colo toda vez que esta chora, também não deve dormir na mesma cama, deve desmamar porque afinal “criança andando que ainda mama é muito feio” (por mais que a Organização Mundial da Saúde diga o contrário), deve voltar a trabalhar após quatro meses e deixar a criança na creche... Milhares de regras que nos dizem o que devemos ou não sentir frente à situação de ser mãe.

É claro que não nos perguntaram se preferimos deixar que nossxs filhxs chorem no berço a pegar-los no colo e fazer carinho, também não interessa se gostamos de dormir e tomar banho com elxs. E se a maioria das mães se sente culpada por voltar a trabalhar tão cedo (por favor, que licença-maternidade é essa?) já dizem que é por estar apegada demais. Não considera pensar que simplesmente a mulher em questão pode preferir estar com x bebê?

A maternidade selvagem é reprimida tanto quanto a sexualidade feminina. Vivemos uma sociedade que acredita ser civilizada demais para praticar orgias e amamentar xs filhxs até a idade que elxs quiserem. A pressão social nos sufoca e quer nos ensinar a sentir, de forma que não ouvimos nosso corpo e intuição não podendo aproveitar assim o melhor de nós mesmxs.

Bem como o sexo é pessoal, cada mãe deve se permitir desenvolver, ao longo da convivência com sua cria, um jeito singular de comunicação e compreensão das necessidades e desejo de ambos. Para que cada mulher possa aproveitar a maternidade da maneira que desejar. Com apego, com carinho, com amor.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

80 anos de conquista do Sufrágio Feminino e os entraves atuais da participação política feminina


No dia 24 de fevereiro de 1932, o decreto nº21076 passou a considerar eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo.

A luta do Sufrágio Feminino no Brasil foi longa, as primeiras discussões a respeito no Congresso datam de 1891. Os argumentos contra o voto feminino baseavam-se na mulher ser considerada angelical, fútil e fácil de ser convencida. A mulher era considerada incapaz de refletir sobre política e os rumos da nação, sua presença em qualquer debate político era evitada, ou só tolerada se houvesse permissão dos homens presentes. A conquista pelo Sufrágio Feminino só veio acontecer 40 anos depois. E mesmo nessa época, havia muita gente relutante. Há 80 anos, a divisão entre público e privado em relação aos papéis de gênero era ainda mais contrastante.


A propaganda política das sufragistas brasileiras se baseava principalmente no fato que diversos países, incluindo, Nova Zelândia (O primeiro país a permitir o voto feminino), Austrália, Áustria, Bélgica, Estados Unidos, Finlândia, Dinamarca, Holanda, Itália, Jamaica, Suécia, Polônia e até mesmo um estado brasi
leiro, o Rio Grande do Norte, já permitiam o voto feminino.

Em 1928, na cidade de Mossoró no Rio Grande do Norte, o voto da mulher em eleições aconteceu pela primeira vez no Brasil. Fato que só ocorreu porque a Lei nº 660, datada de 25 de outubro de 1927, sancionada pelo governador do Rio Grande do Norte permitiu que não haveria mais distinção de sexo nem para votar e nem para ser eleito. Após esse acontecimento, muitas mulheres brasileiras passaram a buscar na justiça a liberação judicial para votar e serem votadas e a luta pelo sufrágio feminino ganhou ainda mais adeptos. E já no ano seguinte, no município de Lajes, Alzira Soriano de Souza foi eleita e se tornou a primeira prefeita brasileira.

Em 1931, Getúlio Vargas concedeu o direito ao voto para mulheres solteira, viúvas com renda própria ou casadas com permissão do marido, mas as manifestações feministas continuaram para enfim, há 80 anos, fosse permitido o voto feminino, sem restrições. A primeira Constituição a conter a previsão do sufrágio universal, sem restrições, foi a de 1946.

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Apesar da conquista do Sufrágio Feminino, a participação política feminina ainda encontra muitos entraves. Esses, principalmente culturais e materializados no fato que a maior parte do poder se concentra nas mãos de homens. Dilma Rousseff foi a primeira presidenta do Brasil e foi eleita há apenas dois anos, nessa mesma eleição houve mais oito canditados, sete deles homens, e a candidatura da Marina Silva, representante do PV que teve um porcentual de votos alto, só perdendo para Dilma e José Serra.

Tais fatos são impressionantes, porém a porcentagem de mulheres na Câmera ainda é muito pequena, cerca de 8,77%. E o problema não está só no Poder Legislativo, mesmo dentro dos movimentos sociais e dos partidos de esquerda, é perceptível como as demandas consideradas femininas ficam em segundo plano, ou nem são discutidas. Percebe-se também que as mulheres têm mais dificuldade de provar o valor de sua militância nesse mundo considerado masculino . Hoje é dia de comemorar uma conquista feminista, é, porém também é dia de refletir essa pouca participação política, e a pouca aceitação das mulheres no espaço público, principalmente dentro dos partidos.

A participação feminina na política é necessária para a luta pela igualdade, mas só irá acontencer quando as mulheres forem vistas como parte do espaço público, forem vistas como iguais, como seres de voz, opinião e pensamento. Enquanto as mulheres forem vistas como objetos e reprodutoras/cuidadoras, a representação feminina no Congresso continuará mínima, os movimentos sociais e partidos políticos continuarão calando as mulheres por causa de seu gênero e dificultando sua militância e continuaremos comemorando o direito de votar e ser votada, sem de fato, fazermos parte da política de forma significativa.



Recomenda-se: A mulher e o voto

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Mulheres notáveis


O evento de facebook "Mulheres Notáveis" tem objetivo de homenagear as mulheres que foram invisibilizadas pelo dominação masculina, divulgar seus trabalhos e suas vidas e assim, contestar os papéis pré-definidos culturalmente e historicamente do que é ser mulher.

A maneira escolhida para homenagem é a troca do avatar do perfil para a foto de alguma mulher notável. Para quem não gosta de trocar de foto de avatar, também há outras sugestões de como participar, por exemplo, quem utiliza o facebook novo, pode trocar a foto de capa e também há a possibilidade de apenas postar a foto da homenageada no mural do evento. A troca de fotos começou no dia 08/02 e vai acabar no Dia Internacional da Mulher (08/03).

O evento até agora (23/02) tem quase 800 participantes. Devido o sucesso e a ativa participação dos interessados, foi dada a idéia de montar um blog para aproveitar o material que está sendo divulgado no evento.
Confira a postagem introdutória do blog: Mulheres Notáveis, escrita por mim.

A presença feminina na história é escassa, mas não exatamente por ausência de mulheres importantes, mas sim por causa da invisibilidade do sexo feminino num mundo onde a dominação é masculina. A presença das mulheres na ciência, nas artes, na filosofia e na participação política é ainda muito desvalorizada e pouco reconhecida.

A ciência, a filosofia, as artes, os esportes e a política são territórios e assuntos considerados masculinos devido aos papéis de gênero e seus destinos. O gênero masculino tem o papel de tratar dos assuntos públicos, enquanto o feminino tem o papel de tratar dos assuntos privados. A diferenciação entre o público e o privado parte da histórica divisão dos papéis sociais que posicionam as mulheres como cuidadoras da casa e dos filhos e os homens como os responsáveis por assuntos externos, como a carreira, o dinheiro e a política. Insistir na diferenciação dos gêneros em público e privado também nutre uma idéia de que é simples separar as duas esferas, que o pessoal pode ser separado do político e que ambos funcionam baseando em princípios diferentes, porém é possível visualizar que eles funcionam baseando na mesma lógica, tanto que a divisão sexual do trabalho acontece tanto no âmbito privado, quanto no público. Além disso, a divisão dos papéis sociais baseia-se na divisão dos papéis de gênero, o gênero feminino é visto como o cuidador, devida a possibilidade das mulheres de engravidarem e amamentarem e por isso é ligado ao âmbito privado, onde as relações domésticas acontecem.

As características valorizadas na sociedade patriarcal são as definidas como masculinas pelos papéis de gênero, como ser corajoso, leal, ativo e racional. Mesmo atualmente, numa época onde a maioria das mulheres também trabalha fora, ou seja, se arrisca na esfera pública, o feminino ainda é considerado subalterno dentro da política, das empresas, das ciências, dos esportes e da filosofia, porque a idéia de inferioridade feminina persiste, a divisão sexual do trabalho persiste e a esfera pública ainda é considerada império masculino. O feminino, ainda hoje, fica sempre em segundo plano por ser considerado frágil, passivo, maternal e até mesmo irracional.

Os papéis femininos pré-definidos culturalmente de mãe (reprodutora/cuidadora) e também objeto sexual aprisionam as mulheres nessas duas categorias e também na eterna dicotomia de santas e putas. O não reconhecimento dos trabalhos femininos e a pouca valorização das mulheres que vão além desses papéis alimenta a dominação masculina, visto que a suposta inferioridade feminina se manifesta na definição desses papéis. A invisibilidade das mulheres notáveis que tanto fizeram e fazem contribui para manutenção dos papéis de gênero culturalmente definidos.

O evento “Mulheres Notáveis” visa homenagear as mulheres notáveis da história, que tem os seus nomes muitas vezes apagados nas apostilas escolares e nos livros de história, filosofia e também de ciências. E contestar os papéis pré-definidos culturalmente pelo patriarcado do que é ser mulher, mostrar que as mulheres não são enfeite, ou apenas corpos femininos e mães. Enfim, mostrar que ser mulher é muito mais do que os papéis de gênero definem. Mulheres são plurais. E também demonstrar que a não divulgação das muitas mulheres cientistas, políticas, ativistas, militantes, artistas e atletas contribui para a idéia de que a dominação masculina é natural e certa.

O blog propõe ser um acervo das mulheres que estão sendo homenageadas no evento e de outras mulheres notáveis. Além das mulheres notáveis, também postaremos personagens e mitos que chamaram atenção pela ousadia, coragem e significados. Haverá diversas colaboradorxs e pelo menos semanalmente haverá uma ou mais postagens.


quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Paz, Carnaval e Futebol

A música é da Cláudia Leite (de quem, particularmente, não sou fã), entretanto devo concordar com ela no seguinte: Não mata, não engorda e não faz mal. Acabou de passar a minha época favorita do ano. Ah, o carnaval! Essa grande festa cheia de brilho, de cor, de fantasia e de brincadeira. Adoro! Mas esse texto não vem falar de particularidades, de gosto pessoal. Gostar ou não gostar do carnaval (ou de qualquer outro dia, qualquer outro feriado, qualquer outra coisa) é uma questão íntima e cada um sabe de si. Minha crítica é com relação as críticas que se fazem a paz, ao carnaval e ao futebol.

“A corrupção rola solta e o povo aí se preocupando com futebol e com carnaval”, se você nunca ouviu uma frase nesse estilo: PARABÉNS, você acaba de ganhar uma casa mobiliada na Europa, basta ligar para 0800... enfim, você é uma pessoa de muita sorte. A classe média intelectual adora desmoralizar o gosto popular, falar da política do “pão e circo”, ah, a política do pão e circo! Essa malandrinha que se ilude achando que alguém pode ser feliz sem um IPhone e uma assinatura da revista Veja.

Primeiramente quero dizer que é muita ignorância achar que carnaval e futebol são elementos apolíticos. Qualquer um que se preocupe em estudar o mínimo que for a respeito de ambas as coisas verá que tanto a festa quanto o esporte estão fortemente ligados a história política e cultural do nosso país (porque desculpa galera Cult, mas praia, caipirinha, samba e etc fazem SIM parte da nossa cultura, get over it). Eu, como torcedora roxa do Corinthians, conheço lindos momentos da história do meu time, como quando pedíamos por democracia em plena ditadura (créditos ao nosso querido Doutor Sócrates) e, tenho certeza, os outros times também tem muita história bonita para contar. O carnaval, então! Ainda tem gente que ousa dizer que não é uma festa genuinamente brasileira... por favor, né! Valorizar mais a inspiração européia do que a história da escravatura, dxs negrxs, do samba e do que o Carnaval representa hoje em dia para nós é desconsiderar e desmoralizar o povo brasileiro.

E por falar em desmoralizar o povo brasileiro, é exatamente isso que o argumento da “política do pão e circo” faz. Rebaixa a população a um nível quase de objeto, de mero receptor da mensagem (exceto a classe média inteligente, claro). Nós somos colocados numa categoria de sujeitos inertes. O governo joga o que for mais fácil no povo e nós aceitamos caladinhos, sem protestar, sem contestar, sem escolher, sem um pingo de atitude... como se a população não tivesse capacidade sequer de escolher aquilo que gosta, como se fôssemos fantoches (já disse e repito: exceto a classe média, que é consciente e inteligente) diretamente dependentes das mãos de quem está “por cima”.

Bom, sinto informá-los, mas não somos. A população tem poder, tem escolha e por menor que sejam suas oportunidades, tem pequenas atitudes políticas dentro de seu meio. Não manifestamos nossa atitude política apenas da hora do voto. Cada uma dessas pequenas atitudes está lotada de contexto, de simbologia, de manifestação cultural e política, inclusive sambar no carnaval.

Por fim, a classe média ignora o direito do povo a felicidade. Um povo que não vive no modelo ideal não pode ser um povo feliz. Claro que a classe média tem direito a ir aos bares, beber sua cerveja, fumar seu lucky strike e rir aos finais de semana. Mas o trabalhador brasileiro não. Gostar de carnaval e futebol é tido como sinônimo de ignorância, afinal, não pode se alegrar um povo consciente e inteligente. Pois não é. Festar não é ignorância, gostar de seu país, de suas tradições e cultura não é falta de consciência política. Aproveitar as coisas boas desse lugar abençoado por deus e bonito por natureza1 não significa ser manipulado e passivo frente aos outros aspectos que nos rondam. Felicidade não é burrice. Burrice é esse elitismo todo que acha que só é inteligente quem estudou em escola particular e gosta de jogar xadrez.

No carnaval, esperança, que gente longe viva na lembrança, que gente triste possa entrar na dança, que gente grande saiba ser criança.2

1 Jorge Ben
2 Chico Buarque

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Blogagem Coletiva - Repúdio ao caso do Estupro Coletivo em Queimadas-PB.



Essa semana, mais um caso de violência contra a mulher foi assunto comentado nas redes sociais e blogs feministas. Trata-se do abominável estupro coletivo, que ocorreu em Queimadas, na região do agreste Paraibano. A polícia prendeu dez homens acusados de estuprar seis mulheres e matar duas delas.

O caso em si já é horrível, mas os detalhes são ainda mais cruéis. Luciano Pereira dos Santos comemorou o seu aniversário com uma festa, seu irmão, Eduardo Pereira dos Santos, convidou as mulheres que seriam as vítimas do crime que planejaram: Alguns homens armados e encapuzados invadiram a festa e separaram os homens e mulheres em cômodos diferentes.

Nesse ponto, as vítimas foram vendadas. Luciano e Eduardo se vestiram como os bandidos e estupraram seis das oito mulheres presentes na festa (excetuando-se apenas a esposa e a namorada de Luciano e Eduardo, respectivamente). Enquanto eram violadas duas vítimas reconheceram os estupradores e por isso foram assassinadas. Os dois rapazes chegaram a ir ao enterro das jovens, mas foram presos ali mesmo, na frente das famílias.

Ao se deparar com uma notícia tão chocante, a primeira reação da sociedade é chamar a estes homens de monstros ou animais, atribuir-lhes a pecha de selvagens. Não discordo de todo que há pouca civilidade neles, o problema é que as pessoas tem essa idéia que o criminoso é alguém distante, alguém que jamais conseguiria viver em sociedade. Ignoram que a crueldade é bem típica do ser humano, em todos os lugares do planeta. Chamar o criminoso de monstro é alegar que homens não cometem crimes tão cruéis, sendo que todos nós fazemos parte de uma cultura que estimula homens e mulheres a perpetuarem a violência contra a mulher em diversas modalidades, seja estupro, violência doméstica física ou psicológica.

Retirar dos criminosos da Paraíba, e de todos aqueles que agridem as mulheres, suas características humanas exime o homem comum da culpa de toda a violência simbólica que ele comete. Ao fazer isso ignora-se que há toda uma cultura que contribui para a idéia de que a mulher é um objeto, que não pode decidir por si e, no caso de Queimados, a situação é tão flagrante que a mulher é oferecida como um presente de aniversário. Especula-se inclusive que o estupro foi armado porque uma das mulheres teria recusado um dos estupradores. Ou seja, a mulher não pode ter opinião.

A alegação de que os criminosos são monstros/animais ignora que a violência de gênero é um problema estrutural. O machismo e a misoginia não são "doenças individuais", são problemas sociais. Não é coerente achar que está tudo bem rir de piadas que envolvem estupro, como aquelas feitas por Rafael Bastos ("estuprador de mulher feia merece abraço") ou Danilo Gentili ("esperar a mulher ficar bêbada demais pra dizer "não" é coisa de gênio") e depois chocar-se com notícias de violência contra a mulher.

Uma sociedade que aplaude uma piada de estupro, culpabiliza a mulher quando estuprada por causa de seu comportamento sexual e suas roupas, uma sociedade que vê o estupro como um vacilo da mulher e uma oportunidade para o homem é uma sociedade que produz crimes bárbaros, mas toda essa barbárie não é fruto de um monstro ou de um animal. É fruto de um ser humano que conhecia as vítimas e que agiu como se as mulheres fossem apenas meros objetos.

Na verdade, é uma contradição, afirma-se que o agressor é um animal, um monstro, um louco, um predador, atribuindo a este o instinto em vez da racionalidade, mas ao mesmo tempo, quando observamos todo o planejamento em volta do crime, podemos dizer que na verdade, eles foram frios ou calculistas.

O que realmente choca, é que tivemos três casos em evidência na mídia: O estupro no BBB12, o julgamento de Lindemberg Alves (algoz de Eloá Pimentel) e o estupro coletivo na Paraíba. E em nenhum dos três casos a grande mídia usou os termos "misoginia", "machismo" ou "feminicídio". O Estupro do BBB, nas palavras do Rei (por mim, deposto) Roberto Carlos, virou "brincadeirinha". O assassinato da Eloá, virou crime "passional" ou como a advogada de Lindenberg prefere chamar "uma decisão errada". E o crime de Queimadas, "uma monstruosidade". Assim, ninguém encara o que realmente acontece e nem toma parte na sua própria culpa ao incentivar o machismo cotidiano.

Escrito por Gizelli Sousa, com a co-autoria de Thaís e Elisa para a Blogagem Coletiva organizada pelas Blogueiras Feministas.

Para acessar os demais textos da blogagem coletiva, basta clicar aqui.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

A Lei Maria da Penha, sua constitucionalidade e efetividade.


Nessa quinta-feira (09/02/12), o Supremo Tribunal Federal decidiu pela constitucionalidade da Lei Maria da Penha, afastou a possibilidade da aplicação da Lei dos Juizados Especiais aos crimes que tratam de violência doméstica e assim mudou o tipo de ação penal desses crimes para ação penal pública incondicionada. A ação penal pública incondicionada não permite que a vítima desista da ação e o próprio Ministério Público pode dar início a ação, não precisando mais do consentimento da vítima. Antes dessa mudança, a ação era pública condicionada à representação, ou seja, necessitava da denúncia da vítima e permitia desistência. Tais mudanças não são meras discussões jurídicas, visto que o problema da violência contra mulher é um problema social, ainda mais quando se trata da violência doméstica.
A declaração de constitucionalidade da Lei Maria da Penha foi uma vitória para os direitos humanos das mulheres porque tem um valor simbólico gigantesco, assim como a existência dessa lei. A base da argumentação da inconstitucionalidade dessa lei é que homens e mulheres são iguais perante a lei e que uma lei especial para a proteção das mulheres seria uma afronta ao princípio da isonomia.
O princípio da isonomia não trata de uma igualdade formal, uma vez que igualar os desiguais dessa forma, é ignorar as pluralidades sociais que compõem um Estado Democrático de Direito e impedir a participação plena de todos os cidadãos. A igualação de grupos sociais diferentes só faz com que as diferenças fiquem mais claras e se fortaleçam. Quando o Supremo afirma que a Lei Maria da Penha é constitucional, ele afirma que a igualdade que vigora na atualidade é a material, aquela que é um procedimento legal que tenta incluir o excluído, ou seja, desiguala os desiguais, a fim de promover maiores chances de participação social, política, acesso aos direitos, enfim, ser cidadão. A Lei Maria da Penha é uma discriminação lícita, permitida pela nossa Constituição e por diversos tratados internacionais como a Convenção Belém do Pará. A discriminação lícita se difere da ilícita por ser constitucional e ser baseada na idéia de igualdade material, a finalidade de desigualar os grupos sociais é uma tentativa de corrigir as discriminações ilícitas e efetivar a participação social daquele grupo, enquanto as discriminações ilícitas são uma violação dos direitos fundamentais e dos direitos humanos, já que são formas de preconceito e são baseadas em estereótipos, tradição e hostilidade.
Considerar a Lei Maria da Penha constitucional é legitimar a luta das mulheres, uma vez que é admitir que há diferenças entre as violências sofridas pelas mulheres e pelos homens, principalmente no âmbito doméstico.




As diferenças entre os tipos de violência sofridos são baseadas em diversos fatores, o principal é que a atitude violenta do homem, nos casos de violência contra a mulher, é oriunda da cultura patriarcal, ou seja, da idéia de que as mulheres são inferiores e que os homens é que detém o poder social, logo a mulher deve obedecer ao homem. Sob essa ótica, percebe-se que tanto a violência, quanto a dependência emocional e também financeira, e principalmente o medo de denunciar são um problema só, sendo que tais fatos estão relacionados com a submissão do feminino ao masculino, logo a desvalorização do feminino. O problema da violência doméstica atinge todas as classes sociais, mas as mulheres negras e pobres lidam ainda com questão da dependência financeira, que dificulta ainda mais a possibilidade de denúncia, pois a idéia de que as mulheres devem obediência a quem as sustenta ainda persiste na cultura brasileira. Mas o problema de violência contra a mulher não atinge apenas as classes mais pobres, mulheres bem-sucedidas profissionalmente e com melhores condições financeiras podem ser vítimas de violência doméstica e não denunciar mesmo que independam do companheiro para o próprio sustento, isso acontece porque houve a interiorização da submissão e de que o feminino é inferior. Além do medo de ser julgada socialmente, já que é perceptível o quanto os crimes contra as mulheres não são levados a sério, são pouco noticiados e quando são, a vida pessoal da mulher é julgada pela população e muitas vezes pelo próprio Estado baseando-se em valores patriarcais. A importância da mudança do tipo da ação penal para pública incondicionada baseia-se justamente no fato que a dignidade da pessoa humana e a saúde da mulher agredida devem ser protegidas, visto que principalmente nos casos de agressões domésticas, a cultura patriarcal aumenta as possibilidades da vítima ser condescendente com o agressor, fato destacado pelo ministro Ayres Brito. E o ministro e relator do ADC, Marco Aurélio de Mello completa “As agressões contra as mulheres não são questões privadas”, uma frase que parece simples, mas é carregada de significado, por ser contrária a ditados muito populares, como “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”, e a frases muito faladas, inclusive por profissionais de Direito, como “Ela apanha porque quer”, “Tem mulher que gosta de apanhar”. A mudança do tipo de ação penal demonstra que o Estado finalmente percebeu que a questão da violência doméstica é um problema que atinge a esfera pública.

A possibilidade de utilização da Lei dos Juizados Especiais foi afastada pela transformação do tipo de ação penal. Argumenta-se que a celeridade é importante para o funcionamento do judiciário e que afastar a possibilidade da utilização dos Juizados Especiais e retirar a representação da ação penal aumentaria ainda mais a morosidade do Judiciário, pois bem, o princípio da dignidade da pessoa humana, a proteção à saúde e também à vida são princípios fundamentais e afastá-los sob esse argumento seria uma violação dos direitos fundamentais e dos direitos humanos. A utilização da Lei dos Juizados Especiais permitia a possibilidade de suspensão da pena, penas alternativas e também a possibilidade de suspensão do processo, o que enfraquecia o poder coercitivo da lei, logo, diminuía a proteção às mulheres e o alcance da finalidade dela. O Brasil é signatário da Convenção de Belém do Pará que tem a finalidade de prevenir, punir, erradicar a violência contra a mulher e, por isso, assumiu obrigações internacionais, como a de proteger as mulheres da violência, logo, se a lei feita para proteger não alcança efetividade e o Brasil não busca melhorá-la, ele viola o tratado.
As transformações que ocorreram na Lei Maria da Penha tem a finalidade de diminuir a impunidade dos crimes cometidos no âmbito doméstico, e assim, melhorar ainda mais a aplicação e efetividade dessa lei tão importante à luta pelos direitos humanos das mulheres. A ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha afirmou que decisões como as ocorridas nesta quinta-feira, “significam para mulher que a luta pela igualação e dignificação está longe de acabar”. E a ministra está certa, há muitas transformações a serem feitas, não só nessa lei, mas podemos comemorar essa vitória dos direitos humanos.

Escrito por Thaís Campolina.
Referências
  • Mulher e Discriminação, Raquel Diniz Guerra. Editora Fórum, Belo Horizonte, 2011.
  • Supremo julga procedente ação da PGR sobre Lei Maria da Penha. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=199853
  • Relator julga procedente ADC sobre Lei Maria da Penha. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=199827
  • ADC 19: dispositivos da Lei Maria da Penha são constitucionais. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=199845
  • Lei Maria da Penha e a igualdade entre homens e mulheres. Disponível em: http://cynthiasemiramis.org/2011/08/07/lei-maria-da-penha-e-a-igualdade-entre-homens-e-mulheres/
  • 09/02/2012 - Maria da Penha vale mesmo sem queixa da vítima, decide STF. Disponível em: http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2694&catid=43
  • PGR defende ação penal incondicionada para reprimir violência doméstica. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=199728